quarta-feira, fevereiro 05, 2020

Fachinação 19: Conhece-te a ti mesmo


Deixo uma dica aos meus leitores que gostam de saber distinguir uma pessoa que leu umas cenas na Internet de alguém verdadeiramente informado. Cheguem junto de um grupo de pessoas - amigos ou simplesmente seres humanos entre os quais querem lançar a confusão incendiária - e comecem a falar de religião. Deixem o paleio rolar e, invariavelmente, ouvir toda a gente a falar mal ou a defender com unhas e dentes, porque neste tema é raro haver meio termo. o que é sempre engraçado, visto que boa parte dos sistemas religiosos pressupõe tolerância e entendimento, algo que parece existir pouco entre os seus mais acérrimos prosélitos. É neste momento específico, onde o terreno está fértil e bem adubado, que deve ser lançada sem hesitação esta declaração que fica pela metade: "Ah, mas o Budismo...". Prestem agora atenção à dinâmica da conversa.  Haverá uns que farão logo a ressalva de que o Budismo não é religião, não tem deuses. Que são só umas ideias, todas boas, todas no sentido da união das pessoas e da felicidade. Esta é a pessoa que leu umas cenas na Internet. Eu duvido seriamente que alguém contraponha algo a esta versão daquilo que o a herança que Buda nos deixou, portanto se encontrarem de facto alguém informado, depois digam-me que tenho curiosidade. Porque o Budismo tem um passe quase inatacável em discussões religiosas.A sua inclusão, e de outros sistemas que se dizem de pensamento (mas que têm inerente um aspecto cultistas mais ou menos subtil) inspirados nas suas ideias, noutras áreas da existência humana torna-a muito apelativa para todos aquele que, fixes demais para se incluírem num sistema de crenças organizado, abraçam as ideias orientais. São um bocadinho como aqueles católicos que são católicos e defendem toda e qualquer ideia cristã, mas "não vão à missa, porque não me identifico com essas coisas". Talvez por não se identificarem também com acordar cedo ao domingo de manhã. Sempre achei curioso este lugar quase isolado que esta doutrina tem na discussão sempre presente acerca do papel da religião na nossa sociedade e do nosso mundo. Interesso-me por estas coisas, e tenho pena que a única razão que atrai tanta gente a este tema seja a errada: defender ou achincalhar, sem entender, se calhar, que a palavra Religião pode designar muitos assuntos que nada têm a ver com espiritualidade. Uma Religião é simplesmente um conjunto de ideias ligadas que usamos para explicar o mundo e que tomamos como factos. A Ciência, com a sua sistematização de conhecimentos e saberes, é uma Religião, por exemplo. Estes sistemas moldam o nosso lugar no mundo e aquilo que nele procuramos e defendemos; e hoje em dia, quando a batalha das ideias está cada vez mais acesa e central naquilo que decidimos como sociedade em relação ao futuro, penso que uma conversazinha clara e definida sobre crenças e fés é o que precisamos. Mas essa conversa não existe. Também porque ninguém está interessado em tê-la. Só há interesse em discutir, esmagar, gozar.


Em Xiahe, o Budismo domina a vida das pessoas. Basta passearem dois minutos na principal rua da localidade e vêem de imediato as reconhecíveis túnicas encarnadas, com tira amarela, que caracterizam os monges budistas. Estes provêm do mosteiro de Labrang, o segundo edifício mais religioso de todo o Budismo. Fora da Região Autónoma do Tibete, é o maior e funciona em simultâneo como templo religioso e escola budista. Devido a restrições governamentais, mil e quinhentos alunos aprendem hoje em Labrang e juntarmos o corpo docente e outros monges, é provável que habitem dois milhares de pessoas neste complexo que inclui vários edifícios. A ideia é aproveitar a manhã para uma visita guiada ao interior do mosteiro, tirar umas fotos, contactar com quem lá vive e quem visita. Por estas alturas de Agosto, há uma enorme peregrinação a Labrang, um pouco como quem vai a Fátima a pé, e é provável que assistamos à chegada de peregrinos ao seu ponto final. Para terem uma ideias do que visitaremos, todo este conjunto de Labrang estende-se por três quilómetros, o que é de facto enorme. Quase uma cidade dentro de uma cidade. Uma profusão de cores nas paredes e nas decorações, dominadas por telhados verdes e dourados que espreitam este vale. Há capelas e residências, juntamente com seis tratsang (o nome dado às escolas), que tratam de temas como esoterismo budista, Medicina, Astrologia ou Direito que chamaríamos Canónico. Somos avisados desde cedo que fotografias só no exterior. Dentro dos templos, as máquinas são para ficar guardadinhas. Os monges reservam-se ao direito de nos multar em 500 yuan, caso sejamos apanhados. Vamos à boleia de um grupo numeroso de turistas, quase todos orientais, com alguns ocidentais metidos e com projectos próprios. Um casal espanhol escuta a nossa lusa língua e identifica irmãos ibéricos. Numa curta apresentação, revelam que estão a fazer uma longa peregrinação de dois anos por esta zona, aprendendo coisas sobre o Budismo, sobre como chegar à felicidade, abdicando da choldra do mundo moderno. Querem transformar-se, afinal o objectivo final da doutrina de Buda. O monge que nos guiará tem uma daquelas caras sem idade. Tanto pode ser um homem novo gasto pela vida como um tipo de meia idade com a jovialidade de um adolescente. Informa que tem 22 anos, mas juro que um sofá que existe na minha casa em Ceira parece mais novo, Antes de nos conduzir pelos edifícios, um apelo quase automático leva-o a uma pequena palestra sobre a Existência. Assim mesmo, com maiúscula. Prega um sermão em que somos nós os peixes. Como quase todos os que pretendem converter ou doutrinar, usa a linguagem obscura onde cada um pode reflectir as suas inquietações e nunca dás respostas, só perguntas. E mais perguntas. É a melhor maneira de parecer sábio mesmo quando se é inepto. Lança-as ao grupo, descompondo qualquer retorno que lhe demos. É algo fascinante de ver, mas alguns caem na cantiga. 


O espectáculo prolonga-se a cada explicação história e informação arquitectónica. Em 1709, tudo isto foi fundado. O responsável chamava-se Ngaging Tsunde e como todos os líderes religiosos, era uma reencarnação de uma reencarnação. Este trânsito de almas é fundamental para entender o budismo e o guia faz questão de nos recordar isto de cada evez que falas dos seus antecessores e camaradas de túnica. É um dos seis grandes mosteiros da maior Ordem budista, a do Chapéu Amarelo (não estou a gozar) e no seu auge, estudavam aqui quatro mil almas. Que já haviam sido almas também, entenda-se. Almas rodadas. A Revolução Cultural de Mao tratou de resolver essa questão, quando quase limpou o país de qualquer outra cultura que não fosse a comunista e a da Revolução. O guia não fala disso. Há sempre uma câmara a vigiá-lo e e o instinto de auto-preservação também deve estar embutido no DNA tibetano; mas eu sei porque conheço vagamente a história contemporânea chinesa. Ele também não explica que desde então, o mosteiro de Labrang representa um ponto simbólico dentro do desenho de Xiahe. É o centro da divisáo étnica da cidade. No lado ocidental, mais desenvolvido e rico, temos uma maioria Han criando negócio, vivendo, ocupando. No lado oriental, em casas mais pequenas e ténues, os Tibetanos originais, fazendo pela vida, subsistindo acima de tudo da actividade agrícola e da pecuária.. O guia também não refere isso quando, visitando a capela da escola de Medicina, explica que foi ali que se formou, porque sempre viveu com a ideia de usar os seus conhecimentos para ajudar os outros. Que o lugar do Budismo era entre as pessoas, ao seu lado. Em 2008, por exemplo, os monges de Labrang protestarm contra o Governo, numa onda que atravessei todo o Tibete chinês, que chegaram à violência. Mas este homem, pacífico e e tão longe do mundo, tão perto das boas intenções, não está para afrontar. Apenas explicar e converter. Continua a inquirir, com aquele sorriso galifão de quem aprendeu um segredo e sabe que nós estamos completamente à nora. Um bocadinho farto pela pose, respondo quando questiona sobre o que é a Felicidade. Vou tentar transcrever, assim de memória, o curto diálogo.
- É sentirmo-nos bem connosco e com o mundo.
- Ah, mas quem és tu? E quem é o mundo?
- Eu sou a pessoa com quem você está a falar. O mundo é este local onde estamos a conversar.
- Ah, mas quem sou eu? E o que é esta conversa?
- Você é a pessoa que está à minha frente. Esta conversa são as palavras que estamos a trocar?
- Ah, mas será que esta conversa existe neste mundo? E só existe este mundo? O que é existir?
O problema maior dele é que eu conheço este tipo de caramelos. Crentes e não crentes. Por ter estado quase vinte anos num agrupamento de escuteiros, cruzei-me com todo o género de católicos, desde os aceitáveis aos que só apetece fechar numa sala com um compêndio de humanidade; e por outro lado, formei-me na Faculdade de Letras, porventura o maior antro de presunção de toda a Universidade de Coimbra, com excepção talvez de Direito. O cruzamento entre católicos e ateus, no que concerne tipos de personalidade, é maior do que ambos os grupos gostariam de admitir. Sei os esquemas e os truques, a linguagem, o paleio vazio, a pose de quem tem as soluções, mas está tão perdido quanto qualquer outro. Apenas bebeu um sumo diferente e julga-se invencível. É gente para a qual tenho muito pouca paciência. Eu tenho um ponta ainda notória de arrogância, mas não me apanhem a tourear os outros com vazio. Como tal, respondo-lhe:
- Para quem está a estudar aqui desde criança, o senhor parece desconhecer coisas muito básicas.
O sorriso vacila um pouco e ele entende que não é solo onde vá crescer o que seja. Reparo no casal espanhol, que me olha com reprovação. Ela segura um bloco e tira notas. Começo a entender como é que nos livrámos de Espanha três vezes ao longo da nossa História, ainda que sejamos muito mais pequenos em tamanho.


O Budismo, se analisarmos friamente, está cheio de boas intenções e se não estivesse, não seria praticamente por mais de meio milhão de pessoas em todo o mundo. Surgiu na Índia e a sua mensagem, como a cristã, é muito fácil de resumir: trabalha, melhora-te e serás feliz. Baseia-se numa ideia central de mortes e renascimentos constantes até alcançar a perfeição definitiva e por consequência, a mesma Felicidade pela qual o monge me perguntou. A palavra que designa esse estado é conhecida mundialmente, culpa de três rapazes de Seattle: Nirvana.  Isto é o principal dos ensinamentos que Siddartha Gautama, um príncipe indiano que abandonou a sua vida de devassidão para procurar o modo de ser feliz e pelo meio mudou de nome para Buda, deixou às gerações futuras. Mas como acontece em todas as religiões, uma vez falecido o fundador, os seus seguidores interpretam cada um à sua maneira e distinção. No caso do Budismo, isso deu origem a duas grandes escolas de pensamento: o Theravada e o Mahayana. Há mais palavras de origem indiana metidas ao barulho, como dharma, sangha, paramitas e coisas do género; mas a principal diferença é que a primeira é mais antiga, conservadora e pretende ser a verdadeira representante da versão original dos ensinamentos de Buda. A sua divulgação deu-se  mais para Oriente, na Indochina e países costeiros dessa região asiática, e é também por esse motivo que acontecem aí um número notável de conflitos religiosos. Sim, o Budismo também envolve guerras religiosas. Quê, não sabiam? julgavam que era tudo paz e amor. Não, amigos, não é. Perguntem aos muçulmanos do Myanmar. A segunda escola, a Mahayana, abdica do aspecto mais ritual e doutrinal do Budismo e envereda por caminhos de filosofia e questões existenciais. É o tal Budismo que o ocidental julgar ser o único e o que mais lhe convém. Enquanto que a primeira mantém que o Nirvana só pode ser atingido depois de várias reencarnações e passagem na Terra, a segunda é mais prática e afirma que não, que uma só vida chega para conseguirmos entender isto tudo e abraçarmos a plena felicidade. Talvez pela defesa desta ideia tão apelativa e desejável seja hoje a forma mais popular de ser budista, a mais ensinada, a mais incorporada em técnicas de yoga, meditação, New Age e maneiras de alcançar a celebridade de Hollywood. É também a praticada em Labrang e a base dos seus ensinamentos é a constante questão da realidade que nos rodeia, dos nossos pensamentos, das nossas emoções, do que somos. Quer livrar-nos das inquietações e ânsias, pois a Felicidade última é viver sem ansiedades, desejos, objectivos. É ser com o mundo. O monge pensa que ao colocar-me questões me está a iniciar num caminho em direcção a esta falta de ansiedades. Se me conhecesse, saberia que o meu mundo está carregado de desejos não recicprocados e vidas que não se concretizam, de almas que desejo, de corpos que só passam ao lado, de sorrisos que não se se materializam, de planos que se estampam. Tanta coisa que o próprio Siddartha rotundo que seja, tombaria por terra sob o seu peso. Que tenho muito mais perguntas do que ele, mas sem ilusão de conhecer sequer as respostas. Num certo sentido, sou até mais budista. Vivo cheio de dúvidas. Mas sei perfeitamente que não encontrarão a sua dissipação nestes templos, misturando-se no fumo do incenso. 


Seja qual for a corrente, um aspecto importante do Budismo é a imersão. Imersão de sentidos, principalmente, para ajudar o cérebro a meter travão. Por esse motivo a meditação está carregadinha de mantras, aqueles sons guturais que se repetem à exaustão até serem apenas banda sonora na meninge. É quase impossível entender a importância desta abstracção mental e do quão poderosa consegue ser até termos, de facto, a experiência. Um dos últimos espaços a visitar é o refeitório. Normalíssimo por fora, cinzento de pedra e verdejante no telhado, apenas um beiral amarelo e vermelho lhe traz alguma personalidade. No interior, deparo-me com dezenas de monges sentados no chão, em linhas, em filas. Uma vaga púrpura e amarela, túnica em repouso, faces em inquietação e tédio. À sua frente, todos exibem um tapete quadrado, cores diferentes, em cima um copo. Não estão inactivos: cantam longos mantras de poucas palavras, enquanto num canto escuro, neste espaço que não está iluminado de maneira visível, quatro indivíduos zurzem na nossa mente com instrumentos de percussão. O barulho é agressivo, mas mas sem bater. Só ameaça, lentamente verga-te a esquecer o resto e coloca o mundo em obliteração. Alguns fumeiros, de considerável dimensão, destilam um vapor incensado e de outros aromas que tranca os narizes de qualquer veleidade de fugir do momento. As paredes forram-se de coloridos panos, longos, que no assalto aos sentidos quase saltam as cores do pé coxinho. Como se as formas saltassem das paredes. Já nem noto o grupo onde sigo, parei e vigio os monges, taciturnos e entediados, alguns abraçando a experiência como é seu dever, outros ignorando o momento num aborrecimento vocal. Mas cansa, tudo isto, esta musculação da percepção. Em bom tempo, sou arrastado para uma capela lateral onde um altar domina por completo. É o altar dos Lamas. Pequenas estatuetas representam o espírito dos antigos líderes do Budismo, sucessores de Buda. É o maior que vemos até agora, o que se entende. O guia diz-nos que os Lamas são muito importantes, que enquanto não descem novamente aos terrenos corpos onde reencarnam, aconselham e falam com Buda no tempo para lá da Morte. Se quisermos falar com eles também, podes sentar-nos e reflectir para o altar. Ao meu lado, perguntam se o actual Dalai Lama será aqui representado quando morrer. Muito sério, numa mudança brusca de humor, o guia responde: "Aqui não falamos de política, só religião". O que é bizarro, porque o senhor careca de óculos que está exilado na Índia - bem a calhar para a situação geopolítica asiática - é, final o líder supremo do Budismo em todas as suas formas. Mas a China fez dele um mártir e Lama abraçou esse papel com entusiasmo. Religião e Política são dois primos que tudo fazem que não lhe tirem o prazer de matar pardais à pedrada.


A última paragem é na escola de Astrologia. A sala que visitamos é pequena e está atulhada de objectos científicos. Ou ditos científicos. Coisas que têm importância para os eruditos budistas, desde livros em sânscritos com ar muito antigo, ícones, gravações em pedra, pergaminhos em pele. Olho-os com alguma curiosidade, como se percebesse tudo o que significam ou até o próprio sânscrito. Nem uma coisa nem outra. Mas no centro da sala, destacado, está um globo terrestre. Observo-o e deduzo que deve ser das peças mais recentes em exibição. Isto porque, numa olhada rápida e com os meus conhecimentos de representação geográfica ao longo da História, noto que África está já dividida nos territórios que saíram da Conferência de Berlim em 1885. Para além disso, observando o fundo do globo, a Antárctica está perfeitamente representada da maneira como a conhecemos hoje. isto é um pormenor importante por dois motivos: em primeiro, oficialmente, este continente gelado apenas foi descoberto em 1818 e as suas primeiras representações mais ou menos fiéis em cartografia datam da segunda metade do século. Em segundo, e isto baralha muitos historiadores, há representações da Antárctida em mapas anteriores - os do período da Expansão portuguesa, por exemplo - mas tal como estaria antes de ficar coberta por gelo. O que aconteceu à volta de quinze mil anos. Assunto para outros textos, prometo. Não sou eu o único a notar. O monge é questionado sobre o globo e garante que este chegou ao mosteiro há uns duzentos e cinquenta, trezentos anos. O que é impossível, pelos motivos que lhe expliquei. Confronto-o com isso. Ele ri, está a segundos de me chamar ignorante e afiança que o seu professor e mestre lho disse e portanto, só pode ser verdade. O que não é. A sabedoria oriental do Budismo incide na auto-descoberta. As questões podem ser lançadas contra o outro, mas nunca devem regressar a quem as fez. O pobre monge parece desconhecer que há vida para lá dos mantras e das quatro paredes do mosteiro. Que uma Religião é um método de explicar o mundo e não de fixá-lo em pedra, imutável. Buda, deitado de lado, medita e o planeta avança entretanto. Em Xiahe, num mosteiro no entanto, o incenso fixou o conhecimento nas palavras de um homem, que as transmitiu a outro. A verdade sobre o mundo feita rumor. Quem disse que precisamos de redes sociais para criar desinformação?


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