sexta-feira, outubro 24, 2008

Cérebro em estado de liquefacção


Dizes-me que olhe para a parede branca. Eu não posso conter um riso desconfiado. Desde que compraste aquele livros de psicologia barata, escritos pelo Gustav Eriksson, ou Erik Gustafsson, nunca mais foste a mesma. Quando te conto os meus problemas, tiras algo do teu arsenal de truques baratos, guardados nessa mochila que carregas como quem parece carregar um peso qualquer que não gosta de deixar por aí. Mas não te deixas convencer com a minha cara descrente. Dizes que já nasci com ela e que vais mudá-la, nem que seja à força de cinzel. Nem o meu lema pessoal "Podes mudar o mundo, mas não me mudas" te demove. Por isso, desta vez com uma voz menos melosa e sem o teu sorriso enzimático, repetes: olha para a parede branca.
Eu olho e maravilha das maravilhas, é branca. Uau. Posso-me ir embora?
Não, não posso. Dei a resposta errada. A parede não é branca.

Ela pode ser doida. Pode não, é. Toda a gente se lembra do que aconteceu na festa de anos do Marco. Lá por se acreditar num mundo cheio de cor, isso não implicava que o pobre do rapaz tivesse de encontrar os seus cães como se tivessem saído de um catálogo da Benetton; e melhor é nem mencionar viagens de balão, porque ainda hoje estou para explicar aos meus pais como é que dois tijolos lhe entraram telhado adentro. Há maneiras mais civilizadas de resolver desacordos relativamente a pontos de vista. Principalmente quando estes envolvem o ciclo sexual dos louva-a-deus.
Voltei a concentrar o meu olhar e continuava a ver brancura. Por muito que confiasse nela, acreditava mais nos meus olhos. Não querendo desfazer, eram mais giros, e se ambos tivessem duas pernas, podiam muito bem disputara a capa da FHM com qualquer mulher gira que lá aparecesse, e também com a Luciana Abreu. OK, desisti. O que há na parede que não seja branco?
Não te vês na parede?
Muito bem: agora, para além de questionar a sua sanidade e a sua visão, tinha de questionar todos os seus professores de Física, que façharam redondamente na missão de lhe inculcar os fundamentos e leis do tempo e do espaço. À medida que este joguinho decorria, esquecera o que me tinha levado a assentar o meu arredondado rabo naquele cadeira. Para mais, uma boa prateleira e um cabelo sedoso só conseguem compensar uma série de características evaporadoras de libido, e ela já me revelara gostar da carreira de Eddie Murphy pós 1990. Só aí, uma das mamas tinha deixado de ter valor. Levantei-me e tranquei o meu olhar no dela. Ela percebeu que eu a estava a chamar de doida.

Ok, ela não é assim tão perspicaz. Penso ter murmurado uma qualquer referência ao Júlio de Matos e ela não é burra. Mas é parva. Disse-me que se só via branco, não podia estar comigo. Detestava quem não via o mundo a cores. E virou-me as costas para se ir embora. Tudo por causa de uma parede branca. É mesmo à gaja, nem faltava o gesto dramático e grandiloquente. Talvez devesse namorar um arco-íris, atirei-lhe. Persegues um sonho, nunca ninguém verá tantas cores como tu.
Ela parou. Reuni as palavras sonho e cores numa frase descrente. Era como se tivesse cometido blasfémia. Virou-se na minha direcção, furiosa e caminhou, com a mão levantada, preparando um estalo. Ela era assim, de extremos. Fora o que explicara aos dois GNR a quem ela furara os pneus do jipe, na procissão da Rainha Santa.
Agarrei-lhe a mão e encostei a minha cara à dela, deixando alguns milímetros de segurança. Ela respirava, quente, com um ligeiro odor a pizza de cebola e queijo.
És patética. Procuras cores em vez de as criares. Tens uma parede branca e pedes-me para ver cores, quando as podíamos estar a pintar. É como a Floribela, excepto eu não tendo o cabelo louro nem uma criada gorda.

Não sabia se ia chorar, se ia rir. Mas beijou-me, com uma língua que imitava as pinceladas nervosas de Van Gogh. Se aquele beijo tivesse demorado mais dez segundos, ter-me-ia feito um esboço dos desenhos da Capela Sistina no meu céu da boca.
Vamos lá então, disse ela. Ainda te lembras onde moro, não lembras? Porque não sou eu que vou a conduzir e tu vais ter muita dificuldade em prestar atenção à estrada no caminho.
Não tinha percebido nada. Nem queria perceber. Tudo começara numa parede branca.
Bem, o importante é o que se segue; e se fizer a coisa bem feita, ela vai ficar de todas as cores.

7 comentários:

Post-It disse...

Ai, as mulheres! (E os homens :P).
Gostei: perspicaz e engraçado.
Podes continuar! ;)

méli disse...

..."Ela respirava, quente, com um ligeiro odor a pizza de cebola e queijo."

É das frases mais românticas que tenho lido nos últimos tempos...

Eh!Eh! :D

Anónimo disse...

Seria aquela nova pizza da Pizza Hut? Ou a da Pizzaria do André?

João Almeida disse...

...e tu que és um perdido por pizza!

Mt bom!

Post-It disse...

Adivinha quem veio passar o fim-de-semana à terriola dos estudantes? ;)
(para mais informações contactar Pimpinela)

susana disse...

gostava de dizer que a leitura deste texto preencheu algum tempo cerebral: um p lê-lo, outro para pensar sobre o que li... do teu blog levo este texto e a frase "Aprendi que gostamos das pessoas pelas suas qualidades, mas amamo-las pelos defeitos que elas têm" ... vais desulpar-me mas levo-a comigo debaixo do braço... vou passeá-la pelo mundo. Susana

Anónimo disse...

you're a complex guy, honey:
fiona