sexta-feira, março 12, 2010
Óbitos
O meu avô morreu de segunda para terça. Isto em termos técnicos, se entendermos a morte de um ponto de vista biológico como o fim dos trabalhos do corpo e transformação do respectivo em cadáver. Na verdade, o meu avô morreu há alguns anos, quando o seu cérebro, devido a complicação de um acidente de mota que ele teve há algumas décadas, lhe pregou a partida definitiva e enterrou aquilo de que eu me lembro dele no pior cemitério de todos: a própria mente. Roubado de si próprio, incapaz de funcionar por si mesmo, o meu avô estava num lar e de cada vez que o visitava, procurava nos olhos dele qualquer coisa que se pudesse assemelhar ao passado. Mas o passado, quando queremos recuperá-lo, acaba sempre por fugir-nos. Só aquele que não interessa é que cai sobre nós aos trambolhões.
Os olhos são um pormenor que me liga ao meu avô. De facto, e recuando três ou quatro gerações, eu e ele somos as únicas pessoas do lado familiar da minha mãe a não ter olhos castanhos. Acho que sempre senti que, de certa forma, algo dele tinha entrado em mim, geneticamente falando. Conseguiu desviar-se de quatro filhos, e encaixou em mim, o seu primeiro neto. Nada mais apropriado, pois vivi equilibradamente entre os meus pais e os meus avós maternos até aos dez anos. Com a morte da minha avó há três anos, e com a dele agora, a infância parece ainda mais longínqua. A memória ainda é a única defesa que temos contra o tempo, mas quando se perdem as referências, parece que também se perde a memória. Ainda mais quando a pessoa que conhecemos já não existe no cadáver que vemos num caixão há algum tempo.
Ainda assim, sem sabê-lo, o meu avô acabou por confortar-me na morte. Há algum tempo que venho a duvidar que o que quer que gere os meus sentimentos está irremediavelmente partido. Há alturas em que devia ser suposto sentir algo e simplesmente pareço um bloco de calcário, mas menos giro quando sujeito a transformação. Mas quando eu vi o caixao do senhor Carlos Albino a descer para a cova, uma arreliação qualquer começou a nascer e de facto, o avô Carlos confirmou que sim, que ainda sou humano. Até quando? Não sei. De qualquer forma, é bom que descubra. Ou então a ausência de eu mesmo é outra coisa que terei de partilhar com ele.E de certeza que, mesmo debilitado da mente, ele teria compaixão suficiente para querer que isso me acontecesse.
Uma coisa é morrer obrigatoriamente; outra é por opção. Esta última é muito mais cadavérica.
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1 comentário:
um grande beijo, bruno, e até breve!
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