sábado, janeiro 21, 2012

"The girl with the dragon tattoo"


Fui ganhando fama, durante anos, de ter uma fé inabalável em David Fincher, e nos seus poderes cinematográficos. Ainda antes de ser moda, como o é agora, gostar-se do realizador norte-americano, eu proclama alto e bom som o quão ele era bom. Defendi "Fight club" quando não era popular fazê-lo (quando alguns amigos meus o viram, alguns anos depois da estreia, pareceram saídos de uma filme completamente diferente do que pensavam ter visto) e tem-me acontecido o mesmo com "Zodiac", que começa agora a ser classificado com a excelência que nele detectei. Eo conheço a obra de Fincher seja de que ângulo e direcção for. No entanto, as semanas que antecederam a estreia de "The girl with the dragon tattoo" abanaram um pouco a crença. Embora não o admitisse publicamente, temi esta estranha escolha de projecto. Achei "The social network" o melhor filme de 2011, e numa década em que Fincher começava finalmente a sair de um certo nicho onde queriam entalá-lo, voltar a esse mesmo nicho não me parecia a melhor opção. Seja dita a verdade: não conhecia minimamente esta obra, apenas pormenores superficiais que li por aí.
Depois de ter visto o filme, posso descansar: este é um filme Fincheriano de uma ponta à outra.
A história, despida dos pormenores, é quase de Agatha Christie: um jornalista, Mikael Blomkvist, caído em desgraça, é contratado por um milionário, Henrik Vanger, para investigar o desaparecimento da sua sobrinha Harriet, um mistério com 40 anos. Quando a investigação fica algo entalada, é contratada também uma detective provada chamada Lisbeth Salander, que faz da atitude e vestuário um sonoro "Vão-se foder" para quem queira ouvir, e mesmo para quem não queira. Juntos, investigarão uma trama que envolve, segundo o milionário, um conjunto de matulões, grunhos, sádicos, o mais detestável conjunto de pessoas que ele jamais irá conhecer: a família Vanger.

A partir daqui, a investigação desenrola-se mais ou menos como o previsto, com curvas em ziguezague e revelações e alguns buracos na narrativa expectáveis. Na verdade, o filme é menos sobre este mistério e mais sobre a relação entre as duas personagens, e principalmente sobre Salander. O que tem lógica, visto que o cinema de David Fincher sempre se centrou na ligação que se estabelece entre personagens, havendo sempre uma que mora nas franjas da sociedade. Sejam os binómios Somerset/Mills, em "Se7en", Jack/Tyler Durden em Fight Club" ou Eduardo Saverin/Mark Zuckerberg em "The social network", a obra deste realizador vive disto. Salander e Blokmvist passam metade do filme separados, na sua história particular. Blomkvist investiga o desaparecimento de Harriet, enquanto Salander tem de lidar com um funcionário público, que é o seu tutor no correspondente sueco à nossa Segurança Social, que trata Salander como uma escrava sexual em troca do dinheiro que lhe é devido pelo Estado. Nessa parte, o filme envereda por algumas sequências de violência sexual quase explícita, mas filmadas com gosto e pinta por Fincher, encenando momentos de horror de forma muito estética, nunca lhe retirando o poder. Claro que, quando Salander exerce a sua vingança (e ela surge, nada temam), Fincher podia pô-la a violá-lo com um extintor, que nós aplaudiríamos na mesma.

É quando os dois se unem e partem à aventura que fica claro que num filme onde os homens odeiam as mulheres, na sua maioria, a mulher é a mais capaz e assertiva, em todos os sentidos. Salander podia ser elevada a uma espécie de anjo vingador, mas na maneira como Rooney Mara (excelente) a interpreta, é uma espécie de fantasma, que percorre o filme de pulsão em pulsão, sem nunca se prender. A vida, e tudo o mais, parecem passar-lhe ao lado, e apesar de todas as contrariedades que lhe sabemos, e de outras que apenas podemos pressupor, ela recusa-se a transformar-se numa vítima. Ora, isto já pode ser difícil de engolir para quem imagina qualquer pessoa traumatizada como um destroço humano choramingas. Quererem convencer-nos que uma mulher pode ser tão capaz como um homem... É apenas a cereja no topo do bolo; e no entanto, Fincher, em todas as cenas, faz questão de deixar claro, que Blomkvist é quem necessita de protecção. desta maneira, este é um filme de subversão de expectativas; e querem coisa mais fincheriana do que esta? Não sendo totalmente intencional, é de um humor refinado colocar Daniel Craig, ou senhor James Bond durão, a fazer de um repórter que nunca se dá bem nos seus confrontos, e precisa, até ao final, que uma rapariga o salve de todas as encrencas. Isto para não falar da complexa intimidade sexual que se estabelece entre ambos, e que reforça a ideia de que Salander e os seus desejos não dependem de ninguém: apenas da sua própria vontade. É esta independência, em vários sentidos, que torna esta personagem feminina como algo interessante e fascinante de seguir numa obra de ficção.

Um outro tema que o filme retrata bem são as aparências. Uma das taglines utilizadas para o filme, "O que está escondido pela neve é revelado na relva", é um provérbio sueco que já indiciava isto. A ideia que temos da Suécia como país organizado justo esconde um passado nazi e certas correntes de extrema-direita que estão latentes e bem preparadas para despertar. A casa daquele que se vem a saber ser o responsável pelos crimes é o perfeito retrato de um país Ikea: na superfície, uma cozinha fabulosa, móveis lindíssimos, organização perfeita e confortável; na cave, todos os instrumentos de tortura imagináveis, incluindo um CD de Enya que é posto a tocar na cena mais divertida do filme, num efeito contrário ao que a cena pediria nas mãos de um realizador normal. A Suécia é um personagem presente no filme, desde a arquitectura das suas cidades e espaços, até à própria atmosfera invernal, que escondem sempre algo debaixo da perfeição. O nosso instinto voyeur é chamado ao serviço, tentando entrever por entre a neve e a calma, o próximo jorro de macabro e grotesco.

Já referi a excelência da interpretação de Rooney Mara como Lisbeth Salander, e nunca é demais reforçar isso. Não vi a versão o original sueco, nem li o livro, mas esta Salander convenceu-me como personagem. Uma espécie de fantasma prisioneiro, que compartimentaliza a sua vida numa casa dentro da sua cabeça, e veita ao máximo que os quartos comuniquem entre si. Mara consegue ser um granito não sentimental, sem nunca nos deixar de parecer humano. Os seus olhos não deitam só fogo e enxofre. Há ali também uma qualquer faísca de emoções que se vão desvelando, lentamente, com o passar do tempo, e atingem o seu culminar numa cena final anti-climática, mas bela à sua maneira. Craig também vai bem, embora nunca se consiga desligar do ar durão que lhe associamos, mas a culpa não é dele. O filme tem também um elenco de secundários muito forte(com Plummer a aparecer com muita classe como o patriarca da família Vanger, e Stellan Skarsgard banalmente oleoso, no melhor dos sentidos). A realização de Fincher neste filme é muito segura e calculada, parecendo escolher a atmosfera em detrimento do espalhafato, e tomando as opções certas com intenções ainda mais acertadas. Não será, porventura, o mais seu potente trabalho de realização, mas é um trabalho de certeza e mestria, e que me faz pensar que de filme para filme, Fincher se está a tornar mais seguro. Espero, com isto, que Fincher não vire um Tim Burton do séulo XXI, constantemente a repetir-se, nos seus estilos e tiques. Este filme mostra que não há ninguém que trate a banalidade do mal tão bem como ele. O que quero ver ainda, como apóstolo, é o que Fincher trará a seguir, num patamar novo. Elogiem-se também a segura direcção de fotografia de Jeff Cronenweth e uma banda sonora eerie de Trent Reznor e Atticus Ross, que parecem retirar música do gelo.

Como ponto menos positivo do filme, queria destacar o final, que mesmo bem filmado como tudo, diminui a catarse da história até à potente cena final, subtil, mas certeira. Talvez tenha sido isso que me retirou do filme extremamente satisfeito, mas não maravilhado, como esperaria. No entanto, é um filme que tem crescido em mim, quanto mais penso nele. Isso só pode ser bom.
E nunca mais vou ouvir o tema "Orinoco flow" com os mesmos ouvidos...

1 comentário:

Carlos de Figueiredo disse...

Compreendo este ponto de vista, embora não concordando com algumas das afirmações que o sustentam. "The girl with the dragon tattoo" é, para mim, melhor que os últimos dois filmes de Fincher, mas mesmo assim insuficiente para me fazer voltar a dar-lhe os rasgados elogios de outrora. Também considero "Zodiac" um dos melhores filmes do século XXI e, possivelmente, o único filme realmente extraordinário que Fincher nos ofereceu desde "Fight Club". Fala-se agora em "20 mil léguas submarinas" como próximo projecto. A ver vamos...