terça-feira, janeiro 03, 2012

"Tinker tailor soldier spy"


Assistir a filmes com cinéfilos origina sempre piadas quase herméticas. A prova cabal deste facto é verificável quando se assiste ao trailer de "Tinker tailor soldier spy". Ouve-se, à medida que os nomes dos actores vão desfilando, a enumeração de anteriores encarnações: "Um filme com Dracula... Sherlock Holmes... Mr. Darcy... Julio César... Bane... Xerife de Nottingham... O tipo de quem o Alien sai da barriga...". Quando o riso se acaba, surge uma ideia quase adquirida. A de que o elenco deste filme é, assim de caras, a razão mais óbvia para ir vê-lo. O refugo da interpretação britânica não tem lugar aqui.
Esse é, sem dúvida, o maior trunfo de "Tinker tailor soldier spy", um drama de espionagem à antiga, e que, por muito britânico que seja o pedigree, só podia ter sido realizado por um sueco, Tomas Alfredsson (que continua a sua senda de obsessão pelos anos 70, evidenciada por "Let the right one in", um excelente filme de vampiros a evitar por Twilightómanos) vem de uma terra que criou, desde séculos anteriores, uma refinada casta de melancolia que não se encontra em mais algum lado. O filme, que é mais uma deambulação existencial e menos um thriller "whodunnit" de espionagem, deixa-se barrar por este ambiente, e nas suas melhores cenas, é precisamente o tipo de coisas que nos afecta mais pelas coisas que se não se dizem do que pelo que é dito na cara: um olhar, um trejeito, um silêncio. A Guerra é Fria por fora, mas no interior é tudo menos isso.
O romance de John Le Carré é uma reflexão sobre o desgaste que uma vida de enganos pode ter num indivíduo. Habitar num mundo de mentiras e desconfiança é essencial quando é essa a nossa profissão, mas torna a vida fora dessa esfera um deserto imenso. O filme não foge disso, e a pergunta essencial que está no seu centro (e que dá origem ao infeliz título português) remete para a descoberta de uma "toupeira", ou seja, um agente duplo na alta cúpula da espionagem britânica. A tensão criada por toda esta odisseia não é conseguida de forma barata e fácil: o filme arde lentamente em lume brando e a pouco e pouco, vai-nos sobressaltando. Quando a solução desaparece, aliás, parece quase anti-climática (e óbvia, para quem prestou real atenção aos pormenores), porque precisamente não vem embrulhada em grandes flashes. É-nos mostrada com precisão clínica. A mesma que permite que os pequenos espaços de humanidade da história, como uma pequena aventura que o personagem de Tom Hardy vive numa missão, quase como anticorpos estranhos no meio de um tecido de racionalidade. Mas é por isso mesmo que são benvindos.
Penso que a cena que melhor define aquilo que o filme transmite é protagonizada por Gary Oldman e uma cadeira. Oldman, numa interpretação prodigiosa de controlo corporal e emocional, é um centro deste filme, e na cena em questão, abre um pouco do seu mundo a um silencioso subalterno. Conta a história de como conheceu a figura maior da espionagem russa, quase por acidente. Naqueles momentos, em espaços, vemo-lo reviver algo que o agita verdadeiramente e o humaniza. É uma cena de arrasadora subtileza emocional, que representa todo o ambiente do filme. Alfredson tem ao seu dispôr actores enormes, que mesmo em pequenos papéis, dão vida a personagens que ficam connosco. A elegância com que o sueco conduz a acção mostra como ser antiquado não é, em nada um defeito, e de como a espionagem de hoje em dia não tem de ser filmada como se fosse uma corrida de Formula Um. Compreendo que, em pontos, o filme possa ser frustrante para quem é mais apressado; mas os amantes dos pormenores, como eu, retirarão o gozo da segunda e terceira vez que virem o filme.

"Tinker Taylor Soldier Spy" é, portanto, estilo e excelentes performances. Fala da capa da mentira e do quanto ela rouba o mundo em nosso redor, quando vivemos a vida toda nela; e também de como a fidelidade é importante. Não só entre pessoas, mas também a valores de bom cinema que nunca devem morrer.

Nota: 9/10

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