quinta-feira, junho 07, 2012

Grass roots movement


Já por várias vezes esparralhei nesta parede opiniões acerca da obsessão salazarista que nos percorre, como nação e população. A cada medida política que nos desagrada, brandimos memórias desses tempos e apodamos figuras e situações como perfeitamente naturais num período de Estado Novo permanente onde o 25 de Abril foi apenas um soluço. Penso que, de facto, uma passagem de 50 anos não será suficiente para acalmar este medo, ou arma demagógica, conforme o seu foco de contágio. Penso que o Estado Novo ainda se mantém ainda hoje, não o nego, mas de maneiras muito mais subtis, seja no aparelho económico, ou numa atitude esclerosada de maioria moral que nos afecta mais do que pensamos.
No entanto, ao desenrolar-se um dos mais graves incidentes do Portugal democrático, parece impossível não regressar a esses tempos, como inspiração. A história básica e oficial do "caso Relvas" é já conhecida de todos, e vários opinadores com uma superior capacidade de análise que eu não tenho foram divulgando o seu ponto de vista sobre o assunto, muitas vezes até ao ponto de exaustão. Tenho acompanhado a carreira de Miguel Relvas ao de leve, desde os tempos do Barrosismo, e sempre tive a ideia, penso que correcta, de ser um sabujo sem espinha, que sobrevive no mundo político. Graças à sua amizade de muitos anos com o actual Primeiro-Ministro, ocupa agora um dos cargos principais do aparelho de Estado, e de semana em semana, diz asneiras e contradiz-se. É isto, afinal, o ganha-pão de muitos políticos. Faz parte do seu métier. É por isso que cada vez mais os políticos são não o farol dos nossos problemas, mas sim o palhaço que nos entretém e distrai.

Por isso, o que me preocupa em todo este caso, e a sua verdadeira gravidade, não está no facto de poder ter existido uma promiscuidade e conluio entre indivíduos para favorecimento mútuo. É grave, sim; mas não é novidade; e ao contrário de países como Espanha ou Islândia, ou mesmo Itália, o lusitano povo vem apenas para a rua juntar-se e berrar um pouco. A situação não mudará assim. Onde a canalhice de tudo isto assume proporções épicas é na utilização de um sistema de serviços secretos como perdigueiro pessoal. Novamente, não é caso único numa democracia. No cliché mais democrático do mundo, os EUA, J. Edgar Hoover fez isto durante quase 40 anos; a isto mesmo se dedicaram algumas outras democracias ocidentais no período de Guerra Fria. à medida que a desclassificação de documentos secretos é uma realidade, descobrem-se podres que certamente fariam envergonhar gente moralmente elevada; mas a Guerra Fria é uma espécie de área cinzenta no Ocidente, e varre-se para debaixo do tapete. No entanto, ao explodir em pleno século XXI, num mundo aparentememte pacificado, este escândalo rebenta, e as suas implicações vão muito para além de quem jantou com quem, e quem foi investigado.

Em primeiro, até que ponto são permeáveis os nossos serviços de segurança? Se um simples telefonema de um antigo espião é o que basta para serem accionados mecanismos que deviam servir, puramente, a segurança nacional, como podemos confiar nesta salvaguarda tão importante quando a maior parte dos combates de hoje são contra forças clandestinas organizadas? Em segundo, que tipo de influência junto da nossa segurança podem ter indivíduos que não lhe pertenceram? Levam informações quando se instalam nos seus novos e lucrativos empregos? Usam-na para obter vantagens nos seus negócios? Sendo assim, teremos nós, portugueses, privacidade real? Em terceiro, espanta-me a facilidade com quem um membro do Governo, assim de repente, obtém informações sensíveis com o objectivo de condicionar um dos pilares de uma democracia, por muito doente que esteja nos dias de hoje; e também me espanta a cara de pau desse mesmo indivíduo, que contorce uma narrativa para se adaptar a novos acontecimentos descobertos, e lhe é permitido que continue a exercer um cargo que lhe dá poder de decisão sobre algumas das questões que mais dividem o país, como seja a extinção de freguesias. Os limites de confiança que nós temos nos aparelhos governativos forma esticados ao ponto da não existência, e ainda assim, essa linha que já não existe retesa-se, invisível

John Locke é um filósofo político que aprecio bastante. Sei que não está na moda ler filosofia política. É muito mais giro retirar as nossas posições políticas de comediantes e comentadores de sound-bites; no entanto, por muito que eu adore Jon Stewart, Stephen Colbert e, no caso nacional, Ricardo de Araújo Pereira, sei que os fundamentos daquilo que é a teoria do poder de estado vem de obras que radicam em ideias do século XVIII, como as elaboradas por Locke. Nos seus dois Treatises of Government, Locke expõe basicamente tudo aquilo que é contemporâneo, numa altura em que ainda chamaríamos de moderno. A constituição portuguesa é um índice daquilo que o filósofo inglês escreve, e que homens como Silva Carvalho e Miguel Relvas deviam temer. O princípio mais básico é, claro, o do contrato social, que muito sumariamente explica que a única razão pela qual um Governo tem poder se deve ao contrato estabelecido com as massas de que este só estará bem entregue nas mãos de homens capazes, que governam em função da felicidade e bem-estar dos demais. Defendendo que todos temos direito a Vida, Saúde, Liberdade e Posses, Locke seria um crítico deste estado de coisas se por acaso não tem nascido há 200 e tal anos; e no seu Segundo Tratado, deixa ainda claro, com uma lógica implacável, que quando o poder em questão não cumpre o contrato social, a população tem o direito de pegar em armas e deitá-lo abaixo. Também isso existe na constituição portuguesa.

Com tudo isto, ainda bem que Locke não tem telemóvel ou telefone; seria muito chato chamar um cadáver a depôr numa comissão parlamentar.

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