terça-feira, novembro 06, 2012

As cinzas da Angela



O meu pai tomou na sua vida, tenho a certeza, decisões questionáveis. Ter-me poderá ter sido uma delas, de acordo com um certo segmento de conhecidos e ex-amigos; mas comprar o Correio da Manhã aos domingos, de há uns anos para cá, é reveladora de um atroz mau gosto que nunca suspeitaria existir num homem que devota a uma Vespa azul clara clássica um amor terno e paternal, passeando-se por ela na ruas de Ceira como quem acha que é dono de um qualquer feudo.

Ao domingo, o jornal traz um suplemento revisteiro que, custa-me dizer, inclui por vezes artigos interessantes. Por muito sensacionalista que o diário jornalístico seja, o seu apêndice domingueiro tem o senso notável de chamar a si bons temas de reportagem e alguns cronistas que trazem qualidade ao jornal (João Pereira Coutinho, mesmo que seja um direitista reaccionário; Adolfo Luxúria Canibal, uma surpresa para quem pensa que os Mão Morta são os Cradle of Filth portugueses), embora haja nomes dispensáveis (Pacman já lá não está, mas ainda permitem a Joana Amaral Dias a triste ilusão de que percebe algo de cinema e pode escrever sobre o assunto). A edição desta semana trazia um curioso artigo onde se pedia a diversas figuras públicas (sim, porque sem as suas palavras sábias, a sociedade morreria... e a revista não venderia) para escrever o que diriam a Angela Merkel, que daqui por uma semana visitará este extremo da Europa. Pois claro que é um passe para gente que percebe bastante de barulho, e pouco de tudo o resto, dizer enormes barbaridades. São José Correia revela sapiência quando afirma que não quer dizer nada (quando não se sabe do que se fala, estar calado, o silêncio e o recolhimento são as maiores virtudes), Rui Reininho invectiva-a a ir a sítios sobre os quais ele próprio já escreveu musicalmente, e o asqueroso Mário Nogueira, um sindicalista em versão parasita, igual a muitos outros que a minha mãe descrevia à mesa quando era pequeno (e substituíram, no meu imaginário, o Papão) lembra a Merkel, com um gosto questionável, os juramentos de Nuremberga.

Bastam uns minutos de passeio pela avenida pública do Facebook para descobrir que nem Nogueira está sozinho na suas patetices  nem a articulação de três ideias diferentes parece estar na moda em Portugal desde, pelo menos, o início do século XX. A primeira-ministra alemã é comparada a Hitler e vestida de nazi variadas vezes, e as suas palavras e imagem distorcidas até um ponto que me parece ridículo, que é, aliás, uma palavra que vai descrevendo o nosso país em várias situações, à falta de uma mais meritória e agradável. Já várias vezes comentei a estupidez e perigo de se cruzarem situações actuais com os espectros do totalitarismo que têm muito pouco a ver com as mesmas. Em Portugal, não é novo. Salazar é tornado zombie quando convém, e o Estado Novo parece estar aí à esquina a cada medida impopular. Nos últimos anos, publicou-se também bastante literatura acerca do ditador de Santa Comba Dão, mas como o historiador António Araújo teve a oportunidade de comentar numa excelente entrevista que li há tempos, a maior parte é lixo e mostra-se incapaz de lidar correctamente com este período da nossa História. É, aliás, questionável que tenha ficado completamente no passado, mas porque, ao contrário do que pensamos, ele não desapareceu realmente. Merkel, como símbolo da nossas frustrações (cargo que vai passando de corpo em corpo conforme os boatos que circulam no Facebook) é vítima desta tendência, que ultrapassa o nosso país, e chegou até à Grécia, num conjunto de manifestações patetas e inquietantes no seu perigo.

Angela Merkel tem a culpa de duas coisas: ter eleições para o ano e ser alemã. Os alemães são, sem dúvida qualquer, o putativo vilão dos últimos cem anos europeus. A 1ª Grande Guerra foi-lhes imputada (falsamente) e na 2ª Guerra Mundial, vencem sem dificuldade o prémio estilo vilanesco e o de plano mais horrível para dominar o mundo. Desde 1945 que a Europa tem cobrado isso à Alemanha. Mesmo que, da França à Polónia, todos tenham dado uma mãozinha e ajudado o senhor Adolfo com gosto (principalmente quando se tratou de caçar e matar judeus), os alemães idealizaram o plano. Portanto, foram 60 anos a lembrar infâmias e a chantagear emocionalmente, e não só, um país a quem foi cortado tudo. Para a adesão à CEE, por exemplo, a França chegou a exigir que o seu vizinho germânico nunca deixasse o PIB interno superar o francês; e até muito recentemente, era expressamente proibido o rearmamento alemão. O país teve de pagar uma enorme dívida do primeiro grande conflito mundial, e ainda de reerguer-se dos escombros no segundo. Quando se fala que o plano Marshall a Alemanha e que ela deve a mesma benesse aos restantes países, é preciso não esquecer que esse mesmo plano ajudou todos os países europeus que o desejaram. A diferença é que num espaço muito curto, e partir de um quase zero, os alemães voltaram à sua posição natural de dominadores económicos da Europa e seu principal motor nesse campo. Eu não simpatizo particularmente com o carácter alemão, mas respeito-os muitíssimo. Eis uma nação que foi deitada completamente abaixo por duas vezes, passou crises económicas cataclísmicas, e regressou sempre. Quando voltou, e se notou que sem ela a Europa não passaria de uma miragem, abdicou da sua moeda (a mais poderosa do Continente) em prol de uma divisa única. A conjuntura do euro acabou por beneficiá-la de certas maneiras que prejudicam países mais pobres, mas se eu tivesse abdicado da minha estabilidade financeira, depois de décadas de trauma e trabalho duro, quereria ter alguma compensação que garantisse a durabilidade da minha economia. Mas lá está, não sou político em Portugal.

A Alemanha cometeu erros na sua gestão desta crise. Sim, porque ninguém se engana quanto a quem está realmente a dar ordens na UE. No entanto, foi ela quem, durante muitos anos, contribuiu para os cofres europeus com os fundos que se acabaram por desbaratar no sul da Europa e não só. Merkel sofre do problema de ter de ser, ao mesmo tempo, chanceler do seu próprio país e líder de um continente inteiro de maneira não oficial; e as posições são muitas vezes incompatíveis. Anda ela numa corda bamba, a tentar equilibrar ambos os interesses, sabendo que o seu próprio país está a entrar num endividamento preocupante (parte da culpa é das suas responsabilidades para com a UE) e que lhe querem passar a conta da crise na forma de Eurobonds, que dizem basicamente queum punhado cria dívida, mas ela é dividida por todos e não se fala mais nisso. A Alemanha precisa da Europa muito menos do que a Europa precisa da Alemanha.

Que me recorde, não foi Merkel quem criou, no pós 25 de Abril, as condições ideias para os monopólios visíveis e não visíveis que dominam e mirram a nossa economia; nem que desbaratou fundos comunitários como se não houvesse amanhã; nem que criou endividamento de forma preocupante; nem que falhou aposta atrás de aposta no nosso desenvolvimento económico; nem que culpa a Troika e elementos exteriores de medidas e politicas que destroem a nossa capacidade de desenvolvimento, e estão fora de qualquer memorando.

Quem quer lançar tomates a Merkel e a acusa de nazi e prepotente e arrogante está, de forma indirecta, a fazer uma certa desculpabilização da nossa portuguesa incompetente. Como noutras alturas da nossa História, a culpa é do outro: do mouro, de Castela, de Espanha, dos Franceses, dos Ingleses... Há sempre uma estátua gigante para onde podemos apontar e atirar os nossos demónios. Para que continuemos a ser os portugueses vítimas; e Merkel calha bem nesse papel: a sua cara até parece esculpida em granito.

1 comentário:

J. Saro disse...

"A conjuntura do euro acabou por beneficiá-la de certas maneiras que prejudicam países mais pobres, mas se eu tivesse abdicado da minha estabilidade financeira, depois de décadas de trauma e trabalho duro, quereria ter alguma compensação que garantisse a durabilidade da minha economia."

Concordo genericamente com o texto, não detalhe a detalhe. Mas, já agora, uma ressalva: tenho ideia que não foi apenas uma questão de "acabou por beneficiá-la". Todo o PEC inicial foi construído à volta do Marco (os 3% do défice face ao PIB, 60% de défice acumulado face ao PIB, etc... tiveram base no ideal para a Alemanha).

A única ressalva, é que apostaria em muito mais que um "acaso".