Fiz meu o sonho de um amigo, o
Cruz, e na verdade fui egoísta, porque também era amigo do sonho. A ideia era
subir um rochedo, por nenhum outro motivo que ver acender o interruptor
que se esconde debaixo do horizonte, lançando o beijo com que o Sol se volta a
apaixonar pela Terra, reeditando um namoro eterno que se repete e nos apaixona
também nesse tango que luz e sombra dançam. Onde muitos vêem direcções, eu
prefiro ver sentidos, e o Cântaro Magro era o que me fazia sentido. Sentar-me
no seu topo, como quem domina uma besta indomável; dormir no seu dorso debaixo
de um cobertor de breu e estrelas, com a música das esferas em repeat e aguardar por esse momento que
nos relembra porque é que acordar e ressuscitar são primos direitos, embora em graus diferentes. O sonho do amigo não era esse, mas o meu sim, e por isso digo
que é egoísta esta intenção de tomar para mim as intenções de outros.
Quando todos somos humanos, há sempre um chão comum, e todos pisamos esse chão
do maravilhamento, de abrir a boca ao espectáculo do mundo.
Outros sonharam também, e todos
partimos. Gordo era o sonho, mas o Cântaro que o guardava num cofre dizia-se
Magro, o que me parece apropriado, visto que subi-lo é um bom programa de
dieta. Mas chamava-nos um engodo curvilíneo e rochoso, nas bordas do Cântaro. Os
primeiros homens construíram monumentos para honrar os deuses, e todos esses
deuses eram preenchidos pelos elementos que os rodeavam: as montanhas, os
astros, as paisagens que esmagam e abismam, e nos colocam a soberba no nosso
devido lugar. Esta ideia de ser menos do que somos surgiu do bom senso: se este bisonte em forma de calhau é tão maior do que eu, como posso questioná-lo? E
subir montanhas tornou-se na prova definitiva de que estávamos prontos para ser
mais do que menos. Uma lenda diz que o verdadeiro espírito do Renascimento
começou quando o italiano Petrarca alcançou o cume do Mont Ventoux só para
saber o que estava do outro lado. Como se conquistar aquele macio rochoso e
ermo marcasse a emancipação do Homem. As nossas intenções era bem mais prosaicas,
mas revestidas daquele lirismo que enche quem se enamora das altitudes; e todos os que ali estávamos tínhamos uma relação platónica com o desafio
de trepar e de subir. Podem dizer que os motivos são caches, mas é mentira, é sempre mentira. Sobem-se montes e penedos para
regressarmos ao que já fomos, e mesmo que digam que o que foi não volta a ser,
sabe-se bem que se pode ser, sempre.
Alcançado o topo, eis o esplendor
no granito; e ao longe, o horizonte queimava em chamas que se desvanecem no
turno da Noite. Outra coisa não há a fazer senão sentar e a única dúvida é se
abrimos os olhos para tudo engolir, ou os fechamos para tudo absorver. Qualquer
uma das opções é gourmet, mas nenhuma delas substitui duas latas de atum: a
cabeça adora o Ideal, mas o estômago é bem mais amigo das proteínas do que
dessas côdeas etéreas. Distraímos o vento cortante debaixo de um rebordo de
calhau, entre cartas e paleio, e quando a hora do lobo chegou, cada um recolheu
à sua toca e puxou o fecho éclair. A
autoestrada celeste estava congestionada, mas entre tantos veículos parados,
alguns aceleras cadentes brindavam quem contemplava com ultrapassagens à
velocidade da luz, a mesma que marcava o compasso do meu coração. Tantas vezes
sinto que o meu corpo é incapaz de conter a beleza do mundo, e nessa noite,
enquanto puxava o sono com uma guita, era isso que berrava em mim. Olhos bem
abertos, deixando entrar tudo, com Ludovico Einaudi nos ouvidos, num lapso de
tempo onde se vê passar o infinito em segundos. As estrelas são tantas que
parecem poeira, e a poeira que se desvanece devia sumir, mas não: fica em cada
um de nós, nas frinchas das memórias, e só pode ser sacudida por um fenómeno
tão poderoso quanto o Universo, o Tempo. No entanto, naquela noite, porque o Sonho era
maior, tínhamos quase a certeza de vencer o Tempo.
Quando regressámos do outro lado
do sono, as cinco e meia marcavam o compasso de espera. O Cruz abeirava-se do
Cântaro como um esfaimado se acerca de uma mesa de banquete, e ao longe, os
tons cada vez mais alaranjados do horizonte anunciavam o que pressentíamos: era
o momento de começar o romance. Demora o seu tempo, mas vê-se um globo de luz a
flutuar atrás daquela linha, como se tivesse sido largado de uma qualquer mão
invisível. Vai subindo, e os recortes das montanhas gradualmente nítidos. Destapa-se um lençol, e muda-se a cama de rocha, onde as pregas e as
engelhas são os montes e montanhas e cântaros e fragões. O frio que nos esboça
a face em traços cortantes é apagado e nasce, num desenho aconchegado, o calor
do entusiasmo que provoca o confronto com essa fonte de vida que renova a sua
visita e o seu amor pela parceira onde temos os pés: um planeta que nos esmaga
e no entanto torna a nossa existência leve, com mais sentido do que
direcções. Ali, em pé, no topo do Cântaro, olhei o Sol e não tive medo da vida,
naqueles minutos. Não senti que havia um depois, apenas que existia um agora, e
que vivê-lo era a única coisa que interessava. Caches e eventos para segundo plano,
agora existíamos eu e o Sol. Guardei várias fotos na máquina, e na minha cabeça um
retrato impresso a fogo: eu, a Montanha e aquele que nos abençoou; e quando
meti a mochila às costas e abandonei o topo, senti-me mais alto do que uma Lua
em Quarto Crescente.