quarta-feira, maio 07, 2014
Ele, ela e eles
2014 ainda tem tudo para ser um ano de compacta devastação à espera de espaço para varrer a minha caixinha emocional dos cantos às paredes, mas inesperadamente, dois factores tornaram esta jornada anual em algo de agridoce. Um foi a aparição, directamente de nenhures, da Daniela e de toda a suspensão da realidade que acontece mal ela entra em cena. Seria um fenómeno que Max Planck estudaria, até porque envolve a teoria dos quanta. Mais especificamente, quanta devoção ela me tem e que parece não conhecer limites. Partilhar horas com ela e ser a esponja da sua infindável capacidade de entusiasmo não só me descongela um pouco, como cria um outro mundo, o terceiro aparte do real e daquele dentro da minha mente. O outro factor é a carreira épica que o Benfica tem feito esta época.
É mais universal de compreender o efeito do primeiro. Penso que qualquer pessoa que já se viu embalada num berço de paixão nascente entende porque é que uma explosão de vida consegue atenuar uma paisagem de morte. Mas um outro tipo de paixão, aquela que se pode nutrir por algo que não respira e anda é mais complicada de explicar. De facto, posso ir mais longe, dizendo que ao contrário da Daniela, o Benfica não me devolve o amor que lhe dou. Está ali há 110 anos, e já teve mais amantes do que um actor porno rotinado teve na sua carreira. Sou apenas mais um que por aqui passa, se perde por completo e se entrega a uma devoção que é irracional e que embora não correspondida, é generosa e recompensadora. O Benfica reduz-me a racionalidade, e lança-me em noventa minutos de impropérios, desgoverno e no caso deste ano, alegria constante e vontade de sorrir. Há também um sentido de camaradagem quando se ama um clube. O que descrevo não é específico do Benfica, e crentes noutras religiões da bola poderão identificar-se com este redemoinho de emoções dos quais não se sai. Uma velha máxima diz-nos que apenas não podemos trocar de duas coisas: a nossa mãe e o clube de futebol.
Vejo habitualmente sozinho os jogos da minha equipa, mas na última quinta-feira abri uma excepção e estando o Benfica tão perto de uma final europeia, decidi que iria espernear de alegria ou vociferar de tristeza com outros irmãos benfiquistas. A catarse de fazê-lo, seja no bom ou no mau, é uma experiência de vida que recomendo a todos os que queiram sair satisfeitos em pleno desta sua viagem no planeta e suas manhas. Seguiram-se noventa minutos de topografia humana completa: montanhas de tensão, planícies de adeptos e todo um planalto andino vestido de vermelho, tendo em conta a maioria sul-americana que milita agora no meu clube. Chamar nomes a italianos nunca me soube tão bem, e partilhar frases feitas e clichés com outros adeptos fez-me sentir, mesmo que por segundos, absolutamente normal e descomplicado. Estranho sempre quem menospreza o futebol, ou o desporto, por ser simples e estupidificante. Que mal existe em ter algo de estúpido na nossa vida? Nenhum, digo eu. Sem coisas estupidificantes, passaria os meus dias aninhado a um canto, em posição fetal. Se bem que aqueles dez minutos de desconto dados pelo árbitro quase me fizeram o mesmo. Quando soa o apito final, todos berraram, todos tinham razão: o Benfica tinha explodido dentro de nós e cada um reagia de acordo com a sua ocasião, que o clube é democrático. Vi homens feitos a chorar, e não tinham ganho nada com aquilo a não ser uma centelha de conhecimento dos limites da sua própria máquina de euforia. Abracei alguns, sem no entanto partilhar as suas lágrimas e juntos, todos gritámos ao Benfica, advogando a prática de sodomia entre os jogadores da Juventus e a bola de futebol. Ser humano também isto.
Chamam-nos loucos da cabeça, e mesmo que não sendo do Benfica, é uma certeza quando se vibra com futebol. A Daniela também já começa a sofrer com o Benfica e diz-me sempre que vai ficar sem dedos em breve, de tanto fazer figas. Pensei sempre que iria levar à loucura qualquer rapariga que decidisse embarcar numa relação comigo, mas nunca pensei que a arrastasse para algo ainda maior do que a minha própria loucura. No entanto, ela gosta, e como eu gosto do Benfica e da Daniela, biso na baliza adversária onde ultimamente as bolas só iam ao poste.
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