sexta-feira, abril 25, 2014

Espiritismo de Abril



Comento-o em conversas e posso escrevê-lo aqui: considero que dos três feriados civis comemorativos de eventos importantes da nossa História, o 25 de Abril é o menos significativo. Não quero dizer com isto que não o ache importante, ou que aquilo que representa seja menor, e seria de facto estúpido se, como alguns, tratasse os eventos desse dia há 40 anos como um solavanco no nosso percurso como país, ou quisesse retirar-lhe o poder radical através de branqueamentos ridículos que têm acontecido de há uns 15 anos para cá (quando quiseram alterar a "Revolução" para "Evolução", por exemplo). Simplesmente, quando tudo é analisado, a Revolução não causou uma fractura tão grande quanto o 5 de Outubro (que alterou basicamente toda a mentalidade e disposição política portuguesas... ou pelo menos, tentou) ou a Restauração da Independência (sem a qual não tínhamos sequer país... quanto mais chaimites a passear nas ruas de Lisboa). A (re)conquista dos direitos fundamentais foi uma vitória retumbante e, a esta distância, tão óbvia, lógica e necessária que parece fácil desvalorizar. No entanto, as estruturas principais que controlavam o país, fossem económicas, sociais e mesmo políticas, mantêm-se: o poder está nas mãos dos mesmos; a riqueza, após um período revolucionário que parecia poder mudar isso, mantém-se com quem sempre esteve; e as instituições importantes na altura são ainda hoje os pilares da sociedade. É fácil cerrar o punho e erguer no ar um brado pelas conquistas de Abril, mas isso transforma-se na amnésia de que se baralhou para voltar dar .

Nunca foi tão imediato ser cínico em relação a Abril como nestes 40 anos, com o país a ser alvo de várias ditaduras reais e a constante histeria popular e política em relação à perda do chamado "espírito de Abril" (esperam-se médiuns para invocá-lo) a transformar-se por fim na versão lusa da história russa "Pedro e o Lobo": durante tantos anos se clamou contra o regresso do fascismo e da opressão sem que tal fosse um facto real, e agora, numa situação onde estamos a ser espezinhados de uma maneira evidente, todas as invocações dos mártires do Largo do Carmo são desvalorizados como os medos infundados de sempre. Começo a pensar que o principal problema de Abril foi ter sido bem sucedido contra todas as probabilidades: sem um banho de sangue, com um plano feito em cima do joelho e toda a utopia humana na ponta de um cravo. Criou-se uma sensação de que todos os sonhos se podiam cumprir se viéssemos apenas para a rua. No entanto, uma democracia é mais do que pôr os pés na rua, e o queixume não é arma. Eu sou filho desta Revolução, mesmo que não fosse sequer quando ela o foi, e sinto tristeza por aquelas que a viveram de todo o coração e vêem a esperança dos sonhos a cobrir o chão do Tempo em forma de poeira. A esperança é algo de muito perigoso, principalmente para quem espera, e depois se torna desesperado. Todas as revoluções têm os seus mortos, e o primeiro é sempre o Futuro. Sem nunca alcançar as proporções do que se quer, fica-se com o que nos dão, e o que nos dão é sempre pouco. O que é bom nunca nos chega, e está sempre além. É a razão da revolução: provarem-nos que não temos razão nenhuma em reclamar, ou seja, clamar outra vez. Fomos bem sucedidos, mas nunca sabemos bem como.

E repare-se que posso estar aqui a escrever estas palavras, algo que nunca me seria possível há 41 anos. O facto de poder fazer isto é o suficiente para alguns optimistas, ou conformistas encapotados, me darem a palmadinha das costas que diz "Vês como isto mudou?". Claro que mudou? Mas é justo ter para o século XXI as mesmas expectativas de desenvolvimento da década de 70 do século passado? Só para quem é idiota. Assistir à destruição da noção de Estado e de Bem Público é a maior derrota do 25 de Abril. Argumentos e esgrimas económicas que querem provar que um Estado bom é um Estado morto ignoram o óbvio e parecem dar férias à inteligência básica: o mundo não tem as mesmas regras, e um país que abdica de si mesmo mostra a mesma subserviência lamacenta do mundo salazarista. Hoje é o dia de se celebrar as conquistas de Abril, mas devia ser também a rampa do nosso ariete de descontentamento e lembrar, ao contrário do que alguns apregoam, que esta revolução tem uma cor política e os objectivos da mesma estão inscritos no documento constitucional, e alterá-los é negar essa revolução, por muito que a retórica bafienta de quem passa pelos sucessivos Governos queira servir de canto de sereia. Quanto mais leio, quanto mais vejo do mundo, mais uma certeza tenho: as revoluções são pouco revolucionárias. Podem ser invertidas com palavras e letras, e acima de tudo homens. Se são precisas centenas de homens para construir uma revolução, bastam dez para destruí-la; e esses dez de hoje reúnem semanalmente em conselho de Ministros e seguem um trabalho metódico traçado há anos, paciente e vitorioso, pelos derrotados que neste 25 de Abril sentam na poltrona e observam os sorrisos na rua, sabendo que é apenas um intervalo.

Os 40 anos do 25 de Abril não merecem este texto. Merecem esperança, merecem alegria, merecem um optimismo em relação ao futuro que não consigo ter. Merecem Sophia de Mello Breyner, mas quando a realidade assenta, merecem Zeca Afonso, José Mário Branco e Sérgio Godinho. Nós merecemos um país melhor, por muitos pecados que cometamos. Merecemos um país onde Abril não seja um ideal, mas sim um mês como todos os outros; onde a Liberdade não é uma conquista, mas algo tão lógico quanto viver; onde eu não seja julgado pelos arguidos; onde não se tenha medo de querer a felicidade; onde não se sobreviva apenas porque parece mal querer viver ou sequer desejar mais do que se tem; onde nos dizem que não há dinheiro para levantar o país, mas existem auto-estradas a triplicar, poços sem fundo de dinheiros públicos e instituições privadas que o Estado preza mais do que o Bem Público. 40 ladrões não merecem estes 40 anos, nem sequer celebrá-los, nem apropriar-se deles como se fossem seus e mais ninguém tivesse o direito de sorrir para Abril sem que isso parecesse uma ofensa. Ninguém pode ter as chaves de uma casa da Liberdade, senão esta perde o seu sentido.

O problema talvez seja esse. Há quem se julgue acima do país, acima de nós e pense que Abril lhes deu isso. Abril não deu nada: aconteceu e ramificou-se. Abril não é um instrumento, é um imaginário e uma mitologia; e como todos os imaginários e mitologias, estão a remetê-lo para o canto das ficções. Se continuarmos à espera de coronéis, continuará lá. Salgueiro Maia não é o D. Sebastião do século XX, por muito que estejamos à espera dos chaimites em casa.

1 comentário:

Post-It disse...

"... Começo a pensar que o principal problema de Abril foi ter sido bem sucedido contra todas as probabilidades: sem um banho de sangue, com um plano feito em cima do joelho e toda a utopia humana na ponta de um cravo..." - acho que tens toda a razão...