quarta-feira, julho 16, 2014
Pai
A minha mãe não sabe, mas os meses que antecederam a morte do meu pai viram-me a tentar escrever um texto de elogio fúnebre a esse homem que, durante 31 anos, foi um estóico senhor que me teve como filho e mesmo assim, parecia ter orgulho nisso. A ideia não veio de um sentido de homenagem, mas sim de raiva. Quando um homem que é de facto bom morre, o mundo não devia encolher os ombros, e nós que nele vivemos temos a obrigação de subir a um ponto alto e berrar aos vales que a vida ficou mais pobre. Dos poucos funerais a que fui, ficou-me a secura das homilias sacerdotais tão cheias de palavras ocas e de floreados religiosos vazios que nunca conseguem descrever a dor real, e injustiçam quem, num caixão, foi uma vez um homem não só cheio de vida, mas que carregava em si, e sem se preocupar com qualquer tipo de moral bafienta, a noção do que é ser uma excelente pessoa hoje em dia.
Ao longo do tempo, no entanto, acabei por não cumprir essa vontade. Previa que, chegado o dia, eu não estivesse em grandes condições para anunciar como a perda do meu pai era mais do que a morte de alguém; para além disso, outras pessoas precisariam de mim numa capacidade menos oral. Verdade é que não me lembrei muito disto nos dois dias de maratona emocional que marcaram o ritual da ida do meu pai para algures que não o nosso convívio. Passou tudo numa espécie de zumbido estático, cumprimentos maquinais, alguns agradecimentos menos sentidos do que outros. Pessoas chegaram e partiram, algumas conhecidas e outras menos, e ainda um punhado delas cujo simples contacto físico e palavras me levantaram de um buraco menos irredutível do que aquele onde o meu pai se encontra agora. Apenas na manhã do funeral relembrei a urgência de recordar a todos a perda a que assistíamos, e curiosamente, tal aconteceu quando me apercebi de que não era necessário um carril de palavras nessa conclusão. Entrei numa igreja repleta de gente, ainda com mais algumas dezenas de pessoas no exterior. Era uma segunda-feira, dez e meia da manhã e espantei-me com tamanha moldura humana nesta homenagem surda ao Vitó. Isto diz muito sobre como o meu pai era visto e o que deixou por onde passou.
Não tentarei descrever aqui o que tornava o meu pai num homem com falhas, mas, acima de todas elas, num ser humano de coração excepcional. Nem sequer me alongo no tamanho dos seus paradoxos e contradições, que sempre fizeram dele um mistério para mim. Não me lembro de alguma vez tê-lo ouvido referir-se-me com orgulho, mas nunca me senti uma desilusão aos seus olhos: alimentei tal ideia porque jamais me senti à sua altura naquilo que os homens adultos chamam a si quando têm de assumir a responsabilidade de ser também pelo outros. Nenhuma vez falou comigo sobre os factos da vida, mas esteve, de facto, na minha vida. Sem ele, não teria tido uma infância normal e uma adolescência estruturada e só em adulto pude perceber o valor desta situação, quando, como professor, encontrei crianças com vidas destruídas porque os seus pais não tinham sequer um décimo da humanidade e da responsabilidade com que o meu me escudou. As nossas semelhanças não são muitas, e dizia várias vezes, à laia de piada, que em termos literários, não havia para o meu pai vida além do "Correio da Manhã". Ainda assim, tal como eu tentava percebê-lo e ao que o movia, também dei com ele numa noite a vasculhar livros sobre discos voadores que na altura devorava . Não que o meu pai fosse fã das letras, ou sequer da cultura: era alguém muito mais à vontade num mundo pessoal a construir coisas em vez de entendê-las. Mas era nesse mundo que se sentia ele e que sorria, e estranha ironia trágica que os primeiros sintomas da doença lhe tenham tirado precisamente as ferramentas com que construía esse mundo, e o instrumento que lhe permitia comunicar, mesmo que a espaços, o que pensava para além de si mesmo.
O que aprendi com o meu pai não me foi dito. Numa surda compreensão, entendi o que estava certo e errado, o que não deve ser feito e o exemplo de como uma infância difícil e pouco carinhosa não são desculpas para que os filhos sejam uma consequência de tal percalço. O meu pai amou-nos como entendia o que era o amor de um pai, e foi para lá das suas limitações na demanda de não nos ver a ansiar por algo que merecíamos e não tínhamos. Sinto sempre que podia ter vivido bem mais, mas se assim fosse não o teria feito nas suas próprias condições, termos e pormenores. Não teria sido nem o Vitó, nem o Simões, nem o Vitinho. Não teria tido aquela igreja cheia para se despedir, nem provocado choro a homens feitos a tal ponto que um confronto com o seu mortal invólucro fazia nascer a dor mais arrasadora e pungente que revolve vidas pacatas e que se vêem confrontadas com a nossa mortalidade e o absurdo inerente à vida desde que nascemos. Várias vezes ouvi a minha mãe gemer num choro que nada disto era justo. Que a vida não tinha sentido, e que não havia lógica.
A verdade é que não há lógica, e só algo deu sentido à passagem demasiado breve que o meu pai teve por este planeta: nós. O que ele construiu, o que ele deixou. Eu e o meu irmão como projectos de vida que se prolongam e perpetuam a sua memória; a dor da minha mãe como a prova visível do que o meu pai significava para todos; as condolências de uma multidão incapaz de fazer sentido de uma tragédia pessoal maior do que tudo e que ainda assim se juntam para celebrar não a morte de um corpo debilitado, mas sim a frondosidade perene de uma rija árvore que sobre todos nós ainda paira. Em criança, via o meu pai como uma floresta. Tudo o que presenciei nos últimos meses não me rouba isso. No cemitério, todos pensarão na morte. Mas na minha mente,onde o meu pai não morre e está sentado num banco, com os olhos no horizonte de um mar que sempre lhe foi uma cama balouçante onde o mundo parecia, por momentos, ganhar a poesia que não encontrava facilmente nos seus dias, ele continua a ser também uma floresta que paira sobre as ondas, onde posso correr e encontrar-me com ele, ouvindo nos suspiros das folhas tudo o que não me conseguia dizer, e no canto dos pássaros aqueles trejeitos de voz que o tornam no meu pai, e não no vosso.
A partilha do meu pai convosco acaba aqui. O meu egoísmo não deixa que se escape mais. É meu, não na sua morte, mas no que existe para lá da biologia. A da vida secreta das lágrimas. Onde a única coisa que morre é a dor e só para fazer nascer algo de muito mais belo: a vida eterna que o valor de um homem bom permite existir.
Ou seja, no que faz dele um pai, um marido e um amigo que não morre sem ressuscitar. Vence a morte, e ao mesmo tempo sublima a vida. O Vítor nunca se imaginou como alguém maior do que a vida. Mas é isso que o torna muito mais gigante do que a Morte nos pode roubar.
Choro.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
1 comentário:
Tão bonito e sentido! Bravo, Bruno! Recebe um bjnho e abraço apertado (Patrícia W.)
Enviar um comentário