quinta-feira, novembro 13, 2014

Movimento



Arranquei quando o sol chorava, pois estava de lua. Girar a chave para dar um giro apanhou-me de surpresa, mas de certa forma estava à espera que o carro me levasse para longe dali e para perto de mim. Não me lembro bem o que me incomodou dessa vez. Talvez a grande pilha de pequenas coisas, ou pequenas coisas empilhadas à grande. Caiu-me tudo em cima, e a solução foi saltar dali para fora. Uma estrada é uma via de comunicação, mas quando estou fechado no interior de um carro, corta o acesso ao mundo, enquanto me conduz a um universo que me espera num encontro ao qual insisto em chegar atrasado. Cansei-me disso, e hoje vou partir no alcance da hora marcada.

Lembro-me de quando parei, ás 4 da manhã, no topo da montanha, e aí fiquei, comendo amendoins, até ver o sol nascer, enquanto a solidão do mundo me acompanhou; recordo-me a viagem de 36 horas até ao centro do deserto, onde renasci, e morri, e ressuscitei e quando voltei já não era o mesmo; vagamente me surge defronte dos olhos um clarão de luz que era uma indistinta cidade, onde encontrei duas aventuras, uma delas com pernas. A outra, sem pernas, foi a presença caridosa da noite, dando-me colo e escrevendo segredos no meu cabelo. De manhã, nem me lembrava delas, mas lembrava-me das pernas e esse talvez fosse um dos mistérios da noite; há na minha cabeça a ténue miragem de calor que a praia me trouxe, há dois meses, quando dormi três noites seguidas na areia numa preia-mar da alma. O sal da água conservou-me fresco, e em cada mergulho, mesmo a 10 graus de temperatura, sentia-me primordial e único, um pequeno corpo num grande corpo sem fim visível, mas com ele assinalado, um pouco como o empurrão que me leva à água até os meus lábios ficarem roxos, e eu ser quase insensível ao tremor, e aquele prazer de me enrolar na toalha e ficar sentado numa conversa de pupilas sobre um púlpito de areia,l uma oração a Nossa Senhora do marulhar, murmúrio de avé maria das ondas, bendito sou eu entre os perdidos que se encontram fora do mapa. Cuspi todos os mafarricos numa pedra, e fi-la levitar várias vezes até entregar ao mar o que eu próprio não sei fazer desaparecer. Dizem que nada lá fica, e que o vasto espelho reflectirá tudo o que nele quisermos perder; e por isso, nunca mais fui ao mar.

Não sei para onde o hoje me puxa. Talvez para o amanhã, mas sempre preso a ontem. Estilhaço-me, e vou a dez mil sítios, rodo como uma ponte que deixou para trás os pilares, corroídos, e não sabe bem se caiu no fundo do rio ou se ela própria é o fundo de qualquer coisa. Quando me partir em tabuleiros, não serei passagem para ninguém, mas eu próprio pararei para tomar notas. Uma caneta e um bloco, um caderno de suspiros e tremores, alguns dos teus lábios, alguns dos meus, todos no chapéu do mundo. À pala de ti, dou por mim empalado. Em Guarda, ou noutro lado qualquer. O carro avança e eu já sei como começar o traço nas folhas. Era uma vez o que foi vez nenhuma, mas o que também aconteceu sempre que fomos. Talvez viaje para longe de ti, mas será isso possível quando és o meu meio de transporte para fora do estrondo do mundo em chamas?

O acelerador do carro não responde, nem me mete travão, mas não é motivo para marchar atrás do que não nos eleva.

9 comentários:

Goggly disse...

Belo blogue. Continue o bom trabalho.

luminary disse...

Muito obrigado! Espero que a descoberta não tenha sido através de um salto numa viela escura ;)

Goggly disse...

Não ;) Foi através de Por Aqui Nada de Interesse. Ehehe, continuação.

luminary disse...

Nem conheço o blog. Os cantos até onde este antro chega... :D Desejo o mesmo!

Goggly disse...

Ainda por cima é um blogue da Velha Guarda (só pode ser fixe.)

Goggly disse...

Se calhar Por Aqui Nada de Interesse tem um fraco por ti.

luminary disse...

Bem, se tiver um fraco, que se chegue à frente: porque isso é tipo os unicórnios na minha vida :D Um blogue da velha Guarda? Bem, lá velho é ele, embora guardar seja coisa que não faça muito no que aqui escrevo :)

Goggly disse...

Digo isto porque já consta do ano 2005; parece consistente sem tocar o meticuloso. Gosto muito.

Anónimo disse...

O estilo foi mudando ao longos dos anos, principalmente nestes últimos três. mas é normal que assim seja, pois sinto que não sou agora o mesmo literato que se apresentou em 2005 para esta aventura