terça-feira, novembro 29, 2016

Cronistão 15: A benção do Lenine


O regresso a Osh fez-se a pé. Os 5 bravos que haviam ficado para o desafio do "trepomonte", carregadinhos da adrenalina da conquista até aos olhos e contactando em simultâneo com o seu macho primordial e  fêmea precavida e escaldada de várias viagens com condutores da Quirguízia, fizeram-se ao caminho caminhando. O toque para a penúltima oração do dia ressoava quando passei ao lado da maior mesquita do país e com o sol descendo lentamente no beijo do ocaso, senti-me exótico, mesmo vestindo t-shirt e fato de treino. O objectivo que traçáramos era exactamente o contrário do religioso: visitar a maior estátua de Lenine do mundo. Não há tramp stamp mais emblemático do domínio soviético do que a figura sólida do líder bolchevique original olhando as massas lá do lato, vigiando a revolução e talvez questionando porque raio é que estes países gostavam tanto de lembrar tempos de ditadura mantendo o maior símbolo da URSS em destaque nas suas cidades. Era a terceira estátua desta figura história que víamos e não seria a última; arriscava-me a dizer, aliás, que todas as cidades deste país adoptaram uma. Talvez cristalize a esperança da Revolução, um qualquer instinto que insufla a crença de que daquele bronze sairá o camarada Valdimir Illych Ulianov anunciando "Malta, foi só um ensaio. Agora é a sério e vamos cumprir tudo o que prometemos". Talvez o que conte não é o que há, mas o que pode, não o existiu mas que provirá, nunca a desilusão, mas sim uma antecipação total da segunda oportunidade. Como Portugal, também o Quirguistão que se falta cumprir a si mesmo.



De facto, estando na base, a coisa é bem imponente. Aponta o caminho de algures, talvez o rumo para Ekaterinburg ou simplesmente para longe da Geórgia. A estátua cruza-se com o sol e Lenine volta a brilhar por momentos. Ouvimos então acordeões e concertinas e a nossa atenção é puxada de imediato para um parque ali perto. O Zé comenta que deve ser festa, talvez casamentos, e não está errado. Três casais, dezenas de convivas, 4 músicos a animar tudo e uma procissão de limusinas Hummer: é o que temos. Parece ser tradição local combinar aquele parque como ponto de encontro e não entendo muito porquê, é discreto e banal, não se vêem flores e quase é um pedido de benção a Lenine: pai dos povos, por favor, que o casamento seja supimpa. Misturamo-nos  pelas caras mongóis, algumas maquilhadas, algumas já ébrias e afastado dos meus colegas, cada um com o seu foco, encolho-me receando as reacções à presença de um ocidental de câmara na mão. Venho vacinado das minhas experiências anteriores, mas o nó foi desatado pelo néctar de Baco e sou até puxado pelo braço: fotografa-me, devem dizer-me em russo, fotografa-nos a todos. Olha esta careta, topa esta palhaçada, agora dançamos todos, fazemos comboinho, anda, é festa. Há rodas da danças, rapazes novo com passes bailarinos armados aos cucos, palhaços da comédia, riam-se todos, vivam os noivos. Assim me atrevo e até filmo, as festas estão todas em caos atadas e passo de uma para a outra sem dificuldade. Fotografo gente, o que quase sempre me é alérgico e capto na cara de todas as noivas uma tristeza que não engana. Podia dizer que é um segredo feminino, mas também nos homens encontro um sabor melancólico, não sei se escravo, no olhar, na postura, na pose, uma pequena intuição de que ali não foi o amor quem assinou a vontade. Para quem se habituou ao cliché dos países muçulmanos do outro lado do planeta, o choque é grande: mulheres maquilhadas, vestidos levemente decotados, coloridos, sorrisos e alguns flirts e os homens sem barba, sem gravata, não antipatizam, chamam-te e tentam perceber-te até. Um tenta encetar em diálogo duplo linguístico uma troca de impressões sobre máquinas fotográficas: é o homem que cumpre essa função na festa e deve ter feito um esforço para não se rir com a simplicidade do meu canhão. Chega outra noiva, é a quinta pelas minhas contas e esta sim, de cabeça tapada, corresponde ao que pensávamos. É também a altura em que abandonamos aquele microcosmos e quando, mais tarde, vejo o resultado dos meus cliques, não só não fazem justiça ao pandemónio e ao surrealismo da experiência, como provam que eu estou bem a fotografar naturezas inamovíveis.


Enquanto tiramos as últimas fotos, salta-me à vista uma garotinha que não tem mais de 16 anos, contornando a praça em que nos encontramos agora, defronte do Lenine venerado. Joga à apanhada com o nosso olhar ou às escondidas com o meu estonteamento. O cabelo longo, louro, não se vê muito por aqui e denuncia a sua origem eslava. Osh, no sudoeste do país, é muito mongol, Ásia Central no esplendor dos olhos em bico e pele morena e beleza desta jovem destaca-se por um exotismo que no nosso Portugal seria mais banal do que exótico. É num relâmpago que nos entreolhamos, estamos a pensar no mesmo e a atentar no mesmo. Ela desaparece uns minutos e quando reaparece, vem na nossa direcção. Em Osh, somos bichos tão estranhos quanto ela e a bizarria atrai-se como velcros que se colam. Chama-se Katarina, é russo-cazaque e com a sua blusa branca e saia pelo joelho, é mais rara por aqui do que um Yeti. Em mim, a vergonha de achar esta pequenina mulher atraente instala-se e só o Zé, nosso guia e nosso homem com lata, se atreve a meter conversa e a pedir fotos. Tanto eu como o António e o Rogério deixamos levar-nos também. Torna-se impossível não querer levar uma recordação de uma pessoa que verdadeiramente se destaca e de alguém que porventura procurou num quarteto de ocidentais terreno comum, gente que a percebe. Conversamos uns minutos, trocamos e-mails. Na despedida, um adeus e na minha mente, penso em como os escrúpulos devem ser tudo nesta região e aquela bonitinha Katarina teve a sorte de apanhar quatro mosqueteiros da decência. Outras não terão tanta sorte e num dia onde andei fora de mim, desço um pouco à terra, aos problemas do mundo, ao que me está longe quando no meu sótão teclo ao computador, mas que aqui é tão possível quanto um casamento por encomenda.



Muito depois de ter regressado ao hotel, o travo de malícia curiosa e inocência de espanto da Katarina vai acompanhar-me e quando à noite espero o comboio do sono, olhando para o tecto, é impossível não ter presente o que lhe reserva o futuro, passado no Quirguistão.

quarta-feira, novembro 23, 2016

Um rastilho


Algo estranho se estabelece quando a tua figura sentada decide ficar a menos de meio metro de mim que, sentado também, estou mais aninhado do que outra coisa. Torna-se dificil comandar aos olhos que se orientem quando te estabeleces como terceiro pólo do planeta. As linhas do teu corpo são mais tortas do que direitos, no sentido em que me perco por atalhos se não agarro com força as minhas divagações. É às vezes um movimento do cabelo, noutras até um pequeno gesto com a mão, a estática do teu olhar ou simplesmente a cor que enche a sala quando te ris, pode mesmo dançar-se no acaso de um toque ou na palavra que dita com um sentido pode tão bem ter outro se me der à fantasia, entretenho-me mesmo com o modo tímido com quem o teu peito se preenche no teu vestido, com uma imaginação própria, autónoma, um trejeito casual de sedução, arrastando menos o meu olhar e mais a minha própria respiração num ritmo análogo e semelhante.

Pode ser tudo isto o que me transforma em mais do que um, nem sei se chega a dois, mas mais do que um de certeza: aquele que é e aquele que quase é, que quase revive se as tuas mãos alinhavassem a minha cara com um novelo de ballet de pontas, pontinhas sedosas de carícia, pequeninas margaridas que despontam vapor de Zéfiro dos meus poros, do pequeno lençol de células que me cobre e no qual te puxo na minha imaginação para que te enroles. Se a tua face descobrisse no meu ombro uma razão para se auto-justificar em esplendor, se o teu limite fictício em forma de mulher se aproximasse menos de meio metro e mais do que te permites, se reencontrasse na minha própria forma menos ficções e menos limites, se as tuas palavras enganchassem os meus ouvidos para atracar cá dentro, no pavilhão dos impulsos, se fossem convite de suspiros numa pequena torrente de saliva, se a minha língua fosse um barco, se a tua fosse uma onda e se as nossas bocas fossem tudo menos o Oceano Pacífico.

Mas estás sentada a menos de meio metro de mim; e embora esteja aninhado, na minha cabeça sou um gigante desperto. A maior pena que cumpro é a realidade do mundo.


segunda-feira, novembro 21, 2016

Cronistão 14: Tarde cultural


O Park Tata, junto ao rio Buura, é um dos pontos de encontro para quem caminha por Osh. Quando, depois de almoço, decidimos resmoer é para encontrar famílias e grupinhos caminhando, alguns aborrecidos, alguns simplesmente automáticos; a certo ponto, encontro umas banquinhas que quando reunidas tentam ser o prelúdio de um parque de diversões. Numa, um trintão tardio cruza os braços ressalvando a musculatura digna de uma cordilheira andina e olha-nos duro e desafiador. A seu lado, está montada uma barra horizontal, bem boa para puxar umas elevações em suplesse. Uma plaquinha em russo tenta descrever o que se oferece, caso paguemos o estipulado e julgamos que é um exibicionista. Fixe, penso, eu pagava 50 com só para te ver sofrer e quando me preparo para puxar as notas, alguém tem a mesma ideia. Ele lá gesticula que afinal não, é um desafio: homem contra homem e quem fizer 30 mais rápido, fica com o dinheiro. O riso que se segue tem tradução universal e está visto que não será ali que o iron man encontrará competição. Eu sou o mais novo do grupo e não sei se me conseguiria levantar duas vezes do chão sequer, pois os meus braços são a mais definitiva prova de uma herança somaliana nos meus genes. Deslocamo-nos então para a banca do lado, onde se apresenta um jogo mais lúdico e menos bárbaro: duas garotinhas convidam-nos a atirar setas a uma parede onde diversas caixinhas guardam balões prontos a rebentar mediante a nossa pontaria. O vosso amigo esfrega as mãos e embora lembrando-se que costuma ficar sempre em último em jogos de dardos, o que interessa é espalhar a boa vontade entre os povos. Portugal fica mal visto, pois em seis setas, metade acertam o alvo. Os meus colegas seguem-se, com resultados melhores; a minha actuação espalhafatosa deixou a multidão ansiosa de me ver segunda vez e a turba manifesta-se: quer ver Bruninho novamente a fazer palhaçadas, porque quem não quer? Todo o meu grupo de amigos portugueses, mas isso não interessa; e portanto, chamando a mim as pontiagudas ferramentas de espectáculo, abro o livro: cada tiro é antecedido de antecipação e frenesim, um pequeno gesto, uma pequena piada, gestos largos e excessivos que comunicam universalmente. Aplausos, risos e sorrisos, um pequenino orgulho preenche-me e sinto que vim para longe fazer algo, animar o pachorrento quotidiano desta gente. A última seta será à filme: viro-me de costa e com um cálculo rápido, sai rápida da minha mão. O estouro do balão dissolve-se nos aplausos da plateia e enquanto ergo os braços, todos riem, todos somos humanos, todos apreciamos um cromo. O Ocidente e o Oriente não se encontram apenas no Bósforo.


Apanhamos dois táxis para o Sulmain Too. É uma espécie de nave espacial que se estatelou num monte à saída de Osh e alguém do grupo acredita piamente que tal é mesmo um objecto fora deste mundo. Na base do monte, vejo a mesquita muçulmana e recordo o que li sobre este ser um local sagrado do Islão. A história é que o venerando e venerado Maomé descansou por aqui uns dias e achou, na sua finita paciência, tempo para regar umas rosas. Rosas do Islão, afinal os trvadores provençais chegaram bem mais longe do que pensava.  É impossível não me sentir estranho ao largo deste monstro de betão, soviético até aos alicerces mas cuja envolvência rochosa cria em mim uma dissociação estranha.  Mas o local não é uma instalação artística de Giger, é mesmo um museu. Quando entramos, entendo o snetimento de um ocidental por aqui: uma placa anunciando bilhetes a 25 com muda de imediato para 150 apenas e só com a nossa aparição; e lembrem-se que Portugal não deixou aqui herança. Não julguem. No interior, interessantes apontamentos sobre o zoroastrismo e a vida selvagem pré-histórica misturam-se com a celebração de uns importantes petróglifos numa verdadeira salada russa de História e Paleontologia. O ponto principal de atracção é uma enorme janela que dá para a cidade, com formato de antena parabólica. Projecta no interior do Sulmain Too a aura alienígena que esperamos de um bólide espacial e a decoração, usando desenhos estilizados dos famosos petróglifos, não diminui a sensação, pelo contrário. No exterior, a varanda permite uma vista onde Osh se apresenta como urbe de verdade, extensa, larga, barulhenta e confusa, e ao longe, fictícia, traçada apenas nos mapas, a fronteira com o Uzbequistão imagina-se e estamos a tão poucos quilómetros que se consegue sentir a Rota da Seda em movimento.


No regresso ao centro da cidade, instala-se um desafio masculino: em redor do Sulaiman erguem-se vários pequenos montes e nas nossas cabecinhas, desenham-se já brutais fotos a ser tiradas. Uma breve conversa leva 4 bravos a meter pés à ladeia de terra, em busca de aventura. Cada um escolhe o seu caminho, mas as macacadas estão garantidas e serpenteando por rocha e cascalhinho, os nossos pés encontram na ponta de um rochedo um motivo para que o corpo pague a viagem. Num acaso não planeado, a nossa chegada combina com a de um trio de americanas com quem nos cruzámos no museu. São três irmãs, a Marguerite, a Caroline e a Bonibelle e provam que alguns estereótipos de comédia romântica sobrevivem e estão bem de saúde: a primeira é nem é gira nem é feia, antes pelo contrário; a segunda dá a ideia de poder despoletar uma segunda guerra de Tróia; e a terceira, a mais nova, é gordinha, girinha e outros -inhas e -inhos variados. Se lá atrás ficara pouco impressionado pelo facto de 3 garotas de Seattle desconhecerem a existência dos Rage against the Machine, Marguerite salva a honra do convento quando revela que não está na Ásia Central de férias: pertence ao Peace Corps e é médica, trabalhando como voluntária em aldeias. As suas duas irmãs mostram-se envolvidas politicamente, Caroline até faz parte dos vários voluntários que trabalham para Hillary Clinton e quando o nome Trump é falado, entre risadas, apercebemo-nos de várias Américas. O trio é do estado de Washington, tipicamente democrata, e falam do mundo como se fosse algo familiar, destroçando alguns estereótipos sobre a insularidade norte-americana.

Quando nos despedimos, a coincidência surge e sabemos que estaremos no mesmo local no dia seguinte. Talvez nos encontremos, e eu penso que sim, um mundo tão grande e tão vasto e dois continentes encontram-se no cimo de um rochedo em Osh, apenas e só por maluquices e desafios. Numa outra altura, a Rota da Seda era uma auto-estrada do mundo, e ainda hoje, esses mesmos percursos históricos continuam a unir um planeta que das diferenças não consegue fazer unidade; excepto as tres irmãs Leeds e quatro portuguesinhos: o cansaço é universal, a coincidência é cola e quando decidimos todos descer, os trambolhões são um abraço neste ponto de encontro.


quinta-feira, novembro 03, 2016

Cronistão 13: Rock the casbah


A luz é branca, conheço-a mas num segundo estranho. A lentidão ergue-me em solavancos e difuso e baço, um lamento em árabe consegue sobrepor-se ao barulho do trânsito e ao zumbido entre os meus ouvidos. Chamam para oração e no quarto de hotel, a hora é de pensar na peregrinação por Osh, onde me encontro. Aqui estou num real hotel, dezenas de andares, corredores que lembram "The shining", elevadores apertados, funcionários que sorriem simpáticos impessoais. É a primeira cidade a sério que encontramos na nossa viagem e só a capital é maior. O seu domínio sobre o lado quirguiz do vale de Fergana, um dos locais mais venerados e disputados da Àsia Central, nem se questiona e 3000 anos de idade dão-lhe a honra de ser a mais velha cidade do pais. Quando caminhamos nas suas ruas largas, há dezenas de pessoas que avançam connosco e no nosso oposto, sinais de que nesta zona mais a sul abandonámos a maioria eslava e existe uma influência muçulmana vincada. Nada que oprima: mulheres de beleza impossível levitam e existem longe de nós, mas a poucos centímetros de um toque que confirme que não são aparições, lenços tapando as cabeças mas pouco defendendo os ocidentais de traços faciais que envergonhariam a mais bela caligrafia corânica e colocariam frases a arder apenas e só porque de outra maneira não se queima a atracção. Podíamos passear em Osh simplesmente para desfrutar disto mesmo, embora a cidade, em si,

O que existe também em abundância é um caos organizado em desorganização permanente, o que se espera depois de dias a conhecer os hábitos rodoviários das quirguízias terras. Cada um por si e vamos ver no que dá, semáforos em entroncamentos que acendem em simultâneo e oferecem uma visão semi-apocalítica que faz da Rotunda do Relógio um paradigma escandinavo de organização. É preciso ver como todos se escapam, como se mete o nariz para testar as águas e depois arrancar prego a fundo pelo buraco que se descobriu. O caminho que fazemos tem como objectivo um outro local onde a desorganização foi acordada com um aperto de mão seco e sincero e desde que ninguém se atrapalhe, todos podem simplesmente estar em reboliço: o mercado de Osh. É o maior bazar a céu aberto da Ásia Central e uma prova de como a vontade humana é, tantas vezes, uma lei eficaz quando existe bom senso e disponibilidade. Antes de descer as escadas, o meu olhar alcança tendas e panais, contentores e casamatas que se espalham por dois quilómetros e meio em ambas as margens de uma imitação de rio: são cinco quilómetros de barafuste, solicitações constantes aos transeuntes, apelos que sobrevivem e fazem girar todos os dias a vida de centenas de mercadores e vendilhões. Do meu lado direito, vende-se comida; do meu lado esquerdo, uma miscelânea de safanões e o que mais possa descobrir. Descendo umas escadas, estou no labirinto e o único minotauro que encontrarei será Vladimir Putin, estampado em t-shirts com a garantia de um posto que está cima dos czares: Mr. President. 

Há toda uma outra disposição social nesta cidade. As pessoas querem estar contigo, falar-te, impingir-te. Apontam para a tua câmara e puxam-te o braço, fotografa-me e leva-me contigo, vê bem o que aqui tenho, não queres umas tâmaras? Velhotas puxam para o seu lado garotas e não têm vergonha. Tudo é barato com despudor, mas não resisto a brincar ao regateio, apenas porque é um jogo com Liga dos Campeões nesta zona. As compras saem-me baratas: 350 coms por duas echarpes, um caderno por 5 e ainda trago alguns chapéus tradicionais locais por mais uma pechincha barata. Estou aviado de prendas, mas quase deixo caí-las com tanto movimento agitação, alucinação até. Cristiano Ronaldo é deus do negócio, cara e corpo estampados em mochilas e até tapetes, como se o sue nome pudesse oferecer a quem pisa uma fracção do talento dos seus pés. Descobrem-nos portugueses, "Ronaldo, Ronaldo, Europa" mais do que uma vez e repetindo, atravesso e fotografo, não consigo ser turista simples. Os recantos descobrem-se, um lado escondido do mercado revela-se e quando da sombra dos toldos vejo a luz do sol, a parte dos ferreiros revela barbas simpáticas, abertas, solícitas, convidativas. Todos são de todos, entendem-se e vivem, sou apenas mais um corpo que tão simples atravessa e existe com um tempo limite neste deserto de grãos de areia que são gente e cujo vento sopra em todas as direcções em afecto e resolução do mistério de choque de culturas, que não só não chocam como dão o agradável choque do clique.

Depois de comprar souvenirs gastronómicos (chás para a Raquel, especiarias para a Joana), cruzo-me com um vetusto e desenrascado senhor que carrega para um carro de mão dezenas de pães redondos. Entre a minha fotografia e um sorriso forçado que aprendi a armar para completo desarme de quem fotografo, sou surpreendido pela genuína simpatia deste quirguiz, que me estende um estupendo e apetecível pão. Quando procuro a carteira para pagar, nega, gesticula que não, ri-se e aponta para a minha barriga. "Está com fome", pensa e eu leio e estava mesmo. Entre mim e dois que me acompanham, vamos partindo pedaços e comendo, depois de profusamente agradecer a um santo vulgar. Nunca comi pão tão bom nem que me soubesse melhor. Tão sincera foi a oferta que senti na minha boca despertar toda a verdade, de falar sem medo, de simplesmente ser sem me mentir. O pão fez-me olhar para toda a experiência como aquilo que era: uma viagem, como a que fazia, como a que me carregou em ombros ao mercado. O mundo são pessoas em translação e eu apenas estou aqui para me deixar levar; e ainda com meio mercado para destapar, foi exactamente o que fiz.