terça-feira, dezembro 20, 2016

Crónicas 17: Uma habitação no fim do mundo


Não têm que querer saber isto, mas gramam com a informação na mesma: uma das minhas viagens de sonho é descer a Argentina pelo litoral de Buenos Aires até à Patagónia. Desde que vi um documentário no Odisseia há uns anos que a visão se formou na minha cabeça - um carro que desce um semi-plano, nem planalto nem planície, o mar sabendo-se ao longe, um céu azul mas nem tanto, com a cinza arrastada de vaporosos cúmulos, vento criando furacões dóceis entre as janelas do carro e aproxima-se a última cidade antes de tudo o mais, um ponto semi-civilizado que é o último bastião populado antes de entrarmos na vastidão da terra que se estica até beijar ao longe os dedinhos do pé das montanhas. Não faço ideia se a sensação é igual à real, mas assim o realizei; e quando, depois de um longa descida montanhosa, desfilei até à entrada de Sary Tash, foi exactamente o que vi. Sabia que o mar estava lá longe, bem longe, sem salitre no ar, mas aquelas elevações cobertas de neve, quase miragens, quase prova tangível da capacidade que o mundo tem em se superar, eram tão andinos que quase jurei estar na América do Sul como se levado por um ritual xamânico. De Sary Tash cheira-se o Tajiquistão, que não está a mais de 40 km de distância, e aspira-se o ar que se pode, tendo em conta que nos encontramos aos 3200 metros, algo que já vai sendo normal nesta invenção dos homens que chamamos de Ásia Central e me fui habituando a não ter nome, apenas um instinto, uma sensação baldeada nos pés quando a calco, nas mãos que pressiono a minha máquina fotográfica e com ela quero transportar coisas que nenhuma máquina está preparada para guardar.


Não sei o que é Sary Tash; é com certeza uma espécie de qualquer coisa, mas não estou certo de quê. Há um posto de gasolina abandonado, mas os barracos denunciam gente que não quis fazer do fim do mundo casa, apenas forte de resistência. O meu carro estaciona para podermos almoçar e logo vemos na rua crianças, nenhum adulto. É como se estes tivessem simplesmente desvanecido, deixando as infantis criaturas à solta e entregues aos seus próprios engenhos e passatempos. Numa mercearia ali colada, quatro garotas, a mais velha com uns dez anos, a mais nova não tem mais do que 4, gerem a loja sem falar um ponta de inglês e são uma pessoa com oito pequenos braços que trata de tudo: o dinheiro está numa caixa de ferro debaixo do balcão e quando os produtos se encontram nas prateleiras mais elevadas, cadeiras e o velho truque das cavalitas não têm segredos para as nossas merceeiras. Não compro nada e rebusco na mochila a minha velha amiga lata de atum, que me entretenho a comer com um garfo roubado num hotel em Naryn, bebendo a paisagem impressionante do Pamir ao longe e sabendo que é ali o destino. Sary Tash é um ponto fundamental na região, centro populacional único num raio de dezenas de quilómetros e embora o aspecto seja menos do que lisonjeiro, respeito isso. Significa "Pedra amarela" em turcomeno e se olhar em redor, orbitando sobre mim mesmo, vejo China, Tajiquistão e Uzbequistão. É terra de todos e sente-se qualquer coisa de surreal, aliás quando reparo num garoto que enfrenta o alcatrão em cima da sua bicicleta, pergunto-me de onde vem, para onde vai ou sequer se tem esses objectivos e se conhece que é cidadão de tudo e de qualquer lugar, que lá longe na capital nem se lembram dele nem de quem é, nem de Sary Tash e os seus casebres de zinco acossados pelo vento, como cães que te ladram se te perderes na neve, um garoto que só vê os pedais e o guiador, desconhecendo o ritmo giratório da corrente. Quando saímos de Sary Tash, penso nele e nas trabalhadoras meninas de balcão, no nada que rodeia Sary Tash, do tudo que pode ser acordar uma manhã, olhar a montanha e sentir que o mundo se restringe ao que a vista alcança e de como se poupam tantas chatices quando assim contemplamos o espaço.


Depois de apanharmos um guia, entramos nas já conhecidas estradas de terra batida e cascalho do Quirguistão. O objectivo, diz-me o Zé, é o lago Tulpar, onde dormiremos novamente numa base de montanha de yurts. Num poste de alta tensão, um puto montou um balancé de corda e diverte-se a abaná-lo com o movimento do corpo, sorrindo. Se eu tivesse esta vista todo o santo dia, sorria também, uma terra acastanhado clara com vegetação rasteira, os dentes da montanha fazendo-me sentir como se rolasse dentro da boca do mundo e pontas de neve confundindo-se com fiapos de nuvens. Os meus olhos consomem-se e nem reparam que a estrada vai acabando na sua serpente num repente, a vista abre-se e o poder do Pamir esmaga, com a ponta meio escondida dos descomunais sete mil metros do Pico Lenine a dobrar o dia como se a rocha bruta tivesse efeito sobre o tempo. A temperatura desce consideravelmente e subimos mais uns 500 metros, só para risadinhas. Há tempo para arrumar as coisas dentro de uns yurt já aquecidos previamente, gente simpática que faz disto vida a trabalhar e recebendo estrangeiros. O lago Tulpar nem é bem um lago, apenas o que sobra do degelo e a minha vontade comichosa e descobrir a montanha. Quero saber se a Patagónia mudou de lugar, se a Terra do Fogo incendeia os países da Ásia Central com o mesmo impacto com que esta terra me tem posto os olhos a arder, transformando todos os momentos em que penso em L num fogo posto permanente, de uma saudade que me rói a cabeça, abre o coração a todas estas experiências e congela todas as minhas lágrimas não vertidas nas imagens que levo daqui. Na base de um altar rochoso, rezo da única maneira que saio: amo, a L e a experiência do embasbacamento, que é exactamente igual, porque ambos me lembram que estar vivo é um direito, mas mesmo que me deixe torto, há-de sempre deixar o meu lado esquerdo em brasa,


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