terça-feira, dezembro 13, 2016

Cronistão 16: Paisagens


Osh fica para trás, depois de uma gincana por entre o caótico trânsito da cidade e o objectivo é deixar novamente a civilização para trás rumo ao sul do país. Passaremos a noite no lago Tulpar, uma pequena massa de água na base do pico Lenine, um mastodonte montanhoso que, diz-nos um mapa com informações topográficas, estica o pescoço acima dos 7000 metros. Depois de uma semana instalado nas quirguizes terras, a paisagem torna-se familiar e não falo apenas da orografia: a cadência incessante das montanhas que obriga a minha retina a fazer flexões; a tomada das estradas por manadas e rebanhos, tão merecedores do espaço como qualquer veículo; velhos e novos que vêm a vida numa pausa permanente, como se o tempo apenas se notasse nas rugas da pele, no enrijecer dos músculos, numa noção de que há mais segundos do que poeira e que só o sol muda numa terra em que tudo o mais se mantém no reconfortante sossego da permanência. No meu lugar instalado, tento encontrar os sonhos atrás dos olhos destes transeuntes quando nos cruzamos nos escassos segundos em que o carro rola. Nas ocasiões em que paramos, a sensação oprime-me.


Num conjunto de casebres à beira da estrada, que por conformidade devem chamar de aldeia, encontramos um grupo de garotos cujo mais velho não terá oito anos. Somos ocidentais, diferentes, logo ganhamos o direito a gente ficcional, personagens de histórias que lhes contam quando vão dormir, tão no mundo da fantasia quanto o Pai Natal. Uns brincam com pedras, outros levam recipientes na mão, têm tarefas a fazer, mas quando paramos, correm para nós. A tendência é tirar fotografias e pelo canto do olho, reparo numa criança que deve ter descoberto a utilidade total das pernas há uns meses apenas. Têm curiosidade a olhar-nos e vêem um grupo de estranhos com máquinas ainda mais estranhas, desconhecidas, apontando para os amigos. Num gesto automático e de pura imitação, coloca defronte do olho uma garrafa vazia que tem na mão e filma-nos também. Macaquinho vê, macaquinho faz. Primeiro de pé, depois de joelhos, aproxima-se e afasta-se, filma um e depois outro. Vê o mundo por uma garrafa e calculo que a ideia que tem da vastidão da experiência humana é semelhante, a cabecinha de uma criança a descobrir uma novidade que seria quase tão incompreensível para alguém dez anos mais velho. Quando os deixamos para trás, o mais velho corre ao lado da carrinha em passada larga, sorrindo, dizendo adeus. Fotografo-o, no momento em que não toca o chão, não voa mas está pelo menos fora do mundo e é assim que recordo esta garotada suja, mal vestida, descalça mas incrivelmente sorrindo, feliz na benção da sua própria ignorância do futuro. 


O ponto alto literal da viagem é a passagem pelo Pico Taldyk, uma elevação montanhosa que encontra aos 3615 metros razões para me deixar em estado orgásmico. Qualquer que seja a direcção que o nosso olhar consome, o prazer vem logo atrás, de mão dada com o espanto. Situado nas montanhas Alayn, o Taldyk é atravessado por uma anaconda de alcatrão chamada M41, mas que é conhecida no resto do mundo por uma nome bem mais assustador: a auto-estrada do Pamir. Vinda do do norte do Afeganistão, que fica a pouco mais de 100 km daqui, foi um daqueles projectos megalómanos construídos por um governo local, mas oferecido de bandeja a grupos de guerrilheiros que a patrulham e aí exercem o seu poder criminoso. Aqui, felizmente, estamos longe desse foco de violência, mas os perigos não acabam. Durante o Inverno, é muito comum esta estrada congelar e não são raras as derrocadas e as quedas de camiões centenas de metros em desfiladeiros, quando um veículo de várias toneladas vale tanto como nós quando se encontra com o gelo. Temos até a oportunidade de ver os restos de alguns, paz às suas válvulas. No cimo do Pico, um pequeno obelisco relembra Yuri Grushko, engenheiro que supervisionou a construção desta rota nas décadas de 20 e 30 do século passado. Mas à nossa chegada salta mais à vista um pequeno altar com velas, flores, objectos ofertados e alguns sinais cabalísticos que convidam a especulações sobre bruxaria e feitiçaria. A pouquíssima distância vemos três casinhas de pastores, cujas ovelhas se limitam à sua rotina de comer e ruminar num valezinho entre montanhas. Será este o ponto de encontro dos Illuminati da Quirguízia? Talvez; mas quando olho para a longa descida que nos espera, mais de 30 km inclinados negativamente até Sary Tash, lembro que em Portugal se comenta que todos os santos ajudam. Na Ásia Central, porventura, é mais seguro pedir auxílio às criaturas sobrenaturais da montanha. Assim como assim, estão bem mais à mão e aposto que nenhuma delas é gerida por um grupo mundial de pedófilos.



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