sexta-feira, dezembro 22, 2017

As ilhas Far Away 8: As luzes do Norte


Morava aqui em frente, a Aurora, é a primeira Aurora de que me lembro. Gostava dela, enchia a rua de simpatia, sorria para mim e tinha até motivos para nem sorrir muito às vezes, principalmente depois de o filho ter morrido de leucemia, era só uns anos mais velho do que eu, o suficiente para parecermos irmãos de quando em vez. Eu ainda existia pequeno e já associava pessoas a coisas que lia, expressões ou fenómenos, o que o mundo lá fora em vastidão me intrigava na curiosidade sobrenatural que me assolava. No quarto fechado, lia aos montes e é também por isso que hoje passo por experiências sociais desconfortáveis e tenho poucas aptidões a lidar com gente, Num livro, acho que um pequenino guia astronómico, os meus olhos encantaram-se com imagens de luzes fluorescentes brilhando no céu. A foto era tirada na Lapónia, uma Aurora Boreal. Que nome delicioso, Boreal queria dizer norte, mas nem sabia na altura, nem isso nem a lenda dos Hiperbóreos, gigantes nórdicos que supostamente calcaram a Terra algures no tempo. Mas Boreal estalava na minha boca, e a Aurora era a minha vizinha do outro lado da estrada, aquela mulher cujo sorriso também fazia brilhar o pavimento. Sempre que a via, na minha cabeça, as duas ideias ficaram associadas. Anos mais tarde, a Aurora sucumbia a um cancro, ia vê-la às vezes e ainda antes do meu pai, foi a primeira pessoa próxima que vi a esfumar a vida num tumor, talvez de forma ainda mais evidente pois ela estava mesmo careca, um lenço azul de volta da cabeça, mas continuava a sorrir quando lá ia vê-la e sem saber como confortar e tratava-me pelo nome, já na altura eu era precedido pela minha reputação do rapaz esperto e vivaz que lia muito e sabia muito e ela gostava disso, não sei se lhe lembrava o filho, talvez, mas não sei e ela brilhava ainda assim, deitada naquela cama nunca deixou de brilhar.

"Acho que é hoje", olhava o Paulo pela janela. Já sabíamos que estávamos debaixo de uma tempestade solar e que poderia acontecer mesmo o que todos ansiávamos. a Aurora Boreal. No andar de baixo éramos cinco. Sempre que chegava a noite e nos recolhíamos, ficávamos ainda na sala trocando piadas, conversando, partilhando o vício da Internet. Na sala, os assuntos dançavam, viagens passadas, projectos futuros, e sempre que as Faroe se descreviam em desejos, luzes no céu incandesciam todos em terra. Mas elas aparecem lá mais para o Inverno e ainda é Setembro.  "Quando há tempestades solares pode acontecer...", era ínfima a probabilidade, mas o Paulo, cofiando a barba, sorria e era possível pois, eu acreditava e vocês sabem que sou muito pouco de acreditar. "Acho que é hoje" e alapado no sofá, de um salto fui verificar. Um irritante poste eléctrico ofuscava a vista celeste. Já no exterior, continuei a olhar: via-se sobre a falésia mais à frente, um pequeno aglomerado luminoso, de um leite baço, quase aborrecido, espelho de poeira estelar. Não era bem o que imaginara. O Paulo juntou-se-me. "Olha que é capaz de...." e num relance de vista, pensámos o mesmo. "Pessoal, alguém com sono?" Ninguém. "Vamos dar uma volta, é capaz de ser hoje". Rápidos agasalhos e fomos chatear o andar de cima, os nossos restantes colegas de viagem. Já toda a gente de molho, caminha confortável. Ou então, não acreditaram. Há alturas na vida em que ou vamos de passo alargado ou só colocamos a ponta do pé e perdemos o trilho.

A viagem durou um quarto de hora, escolhemos um ponto de observação longe da aldeia. A escuridão total era um saco-cama. Ainda na carrinha, fomos espreitando e a mesma nuvem agora espraiava-se, era menos pálida, alterava-se. À saída do veiculo, o vento era forte, mas suportável. De luvas postas, gorro bem enterrado na cabeça, já me contentava por poder ver aquele céu polvilhado que só se captura no meio natural intocado. São lanternas longínquas, mais do que as minhas batidas de coração num dia só, e todas palpitam também de alguma maneira. Ocasionalmente, estrelas cadentes traçavam impressionantes impressionismos na cúpula cósmica. Os meus colegas centravam-se na expectativa aurórea, mas eu guardava para mim aquele tesouro brilhante e multiplicado. A passagem dos minutos alterou também a minha atenção e no teatro nocturno um novo espectáculo entrava em cena. Começou muito subtilmente, uma ou outra cor diferente, quase ilusão. Pensei ao início que me estava a sugerir, que não via, mas era apenas uma via para me enganar e pensar que era uma olhada falsa. Estava a contar a mim próprio como real aquilo em que acreditava, e tantas vezes o faço. Mas os meus colegas também o viram: estava lá, tornava-se. Depois, pontos formaram linhas, passando de um lado para  outro e violetas tornam-se vermelhos, depois um pouco verdes, depois voltam a violetas e linhas direitas ondulam e desaparecendo, formam-se noutro ponto e assim tudo decorre como se o universo jogasse aos dados.

É difícil descrever uma Aurora Boreal, até porque o que vemos com os olhos é diferente das fotos. As pupilas humanas apenas captam uma fracção do espctro luminoso, enquanto as lentes fotográficas capturam o restante, que é aquilo que abre a boca a todos quando vídeos ou imagens do boreal deslumbre se cruzam com o seu apetite. A realidade não é bem aquela, aliás o que se vê é tremendo e único, mas a fotografia cria uma ilusão e isso torna a minha experiência ainda mais especial, pois estive lá e sei o que é, como é. Quem nunca viu, fica com uma fraude falsificada e plastificada, como um evento que sofreu uma operação de cosmética. Viajar é bom por isto, porque se existe enquanto decorre o que é verdadeiro, está-se lá no local, vive-se a sério com o frio a apertar, o blusão bem cerrado, os dedos encolhidos dentro das luvas, os dentes doendo, o mar que se escuta e o tremendo silêncio nas folgas do vento. Por cima de nós, a verdadeira Aurora que se engelha e depois some como um lençol que se sacode. Às vezes, escuta-se um som metálico, vibrante, muito ténue e que o ar remexido embala em difusão. O mais belo está na cara de quem assiste e reparei nisso, não é tanto admiração mas espanto engarrafado, querer rebentar de alegria mas não poder. Sorríamos uns para os outros, uma ou outra piada, mas o silêncio de quem assiste à Natureza em improviso. Os ciclos naturais repetem-se, no entanto o espectáculo é sempre diferente e aqui, nestas ilhas perto do Círculo Polar Árctico, a produção é artesanal e excelente.

Enquanto as cores dançam no céu em mazurka fogo, espasmos das estrelas ou simplesmente um céu que sem poder tossir, vibra e exulta o poder do que nos é superior em tamanho e cabimento, afasto-me um pouco de quem me acompanha e estendo-me no chão relvado que nos sustenta. Não está molhado e portanto, mãos debaixo da cabeça, banqueteio-me. Não esmaga, aquilo que vejo, mas sinto-me assoberbado. Não pensei que estaria a ver esta raridade, algo que todos sempre me disseram ansiar, "Adorava ver Auroras Boreais", e tenho uma amiga na Noruega e nunca as viu, e um casal meu amigo foi à Islândia e nem lhes pôs a vista e eu aqui, nas Faroe, fora dos cálculos normais de magnetismo luminoso, tenho esse prazer. Sortudo que sou, repetirei a experiência uns dias depois. Passo o tempo todo a amaldiçoar-me e à minha existência, mas há ocasiões em que o meu fardo se esquece que deve pesar e sou abençoado com beijinhos de ventura. Ali na horizontal, enquanto me capto naqueles mantos irreais de cores várias, um quadro de Chagall tornado real, lembro-me da Aurora, a minha vizinha. Saio de mim e da razão e procuro um fantasma, não como espírito de mortos, mas como algo imaterial que só pode existir se acreditar mesmo muito e imagino, melhor sinto, vejo mesmo, a Aurora nas Auroras. As luzes só podem ser o seu sorriso, o som metálico é a aprovação da minha pequena felicidade, cada agitação a Aurora cheia de saúde de um lado para o outro enchendo novamente a rua do que é bom e daquilo que só as pessoas de boa vontade têm. Ela deve estar ali, não existe Deus, mas as pessoas vivem de alguma maneira, certo? Enquanto pensarmos nelas e acreditarmos e existir em nós a simples capacidade de abrir a boca de espanto, atónitos de genuinidade.

Quando daqui desaparecemos, tornamo-nos em algo mais. Talvez seja composto orgânico, talvez pó, talvez alma. A Aurora virou Aurora, o que calha bem: era a melhor pessoa que conhecia a ser Aurora e não imagino melhor prémio na vida do que nunca deixarmos de ser aquilo para o qual nascemos.

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