À minha frente, na janela, uma bandeira faroesa esvoaça e os vidros dançam rumba nos seus caixilhos. O vento abusa da velocidade e os meus companheiros de viagem também se instalaram no aconchego deste café. Bebo um chocolate quente, uma tradição local a que ganharei gosto nos dias seguintes. Quando me perguntam porque gosto de locais estranhos e onde ninguém vai, é por isto Nunca percebi quem se encafua num carro e alegremente se entrega à tirania da multidão em estradas e praias, quem se mete no avião e no pico alto das viagens é prisioneiro de grandes capitais, de destinos turísticos batidos, onde não existe qualquer oportunidade para se desfrutar da prazenteira arte do silêncio e de cair no ardil da paz. Só vejo montes e não me apetece saber se sou do seu tamanho, do meu ou do que a vista alcança. Sei que me sinto aqui, sinto-me mesmo, sinto-me parte de algo, sinto-me parte de mim; e quando na correria nos deixamos para trás, perdemo-nos aos poucos, migalhas e poeira, o quotidiano como um espanador. Aqui estou bem e o único som em mim é o do chocolate quente escorregando pela garganta. Verei ainda até ao fim do dia paisagens incríveis, cascatas e aldeias escondidas, atalhos pela rocha, lagos temporários, mas é isto que guardo e sobre o qual me apetece escrever nesta crónica. Sobre mim, mas nem tanto o que sou ou o que sofro, mas como estou apenas e só comigo, sem nada mais a preocupar. Eu e o calor de uma bebida, desconhecidos que me rodeiam mas sem fazer ruído, a pouca importância dada a quem partilha o espaço não porque sejam insignificantes, mas porque este momento não é seu: o egoísmo não tem de ser errado.
Quando o chocolate quente acaba, existe Gjogv apenas e percorro-a nos caprichos da ventania. Observo, agora mais abrigado, o local onde introduzi os meus companheiros de viagem ao meu bom velho amigo, o atum, que me proporcionou aquele almoço habitual de quem não se quer perder em labirintos gastronómicos que podem ser fatais. Consigo observar a pequena igreja e o outro café da aldeia, um barraco que não é muito mais do que uma cabine telefónica, mas onde, ainda assim, o convívio tem espaço. Um pouco mais abaixo, uma mercearia, que funciona como Posto dos Correios cinco dias por semana, mas apenas meia hora de manhã. Na rua, ninguém, só mesmos os elementos naturais. Até a chuva, quando cai, parece fazê-lo simplesmente por tédio. Não me aborreço, conheci Gjogv em menos de meia hora, encontrarei locais bem mais bonitos e cativantes em todas as Faroe e esperam-me arrebatamentos pulsantes de luz, mas enquanto me esforço para escrever sobre tudo isso, sobre a excitação e a alegria, é àquele momento de paz que regresso uma e outra vez, principalmente quando em ocasiões que são ladras, me afundo naquilo que me me consome o pensamento sem devolver o que seja, só dor, só rugas, só turbilhão. Mas naquele café, nada disso existe, só o que é bom. Nesta aldeia cujo nome não sei pronunciar, há uma paz que não se sabe encontrar e cuja explicação se torna impossível de armar com letras.
Tentei. Estou em paz com isso; e tudo o mais, guardo num bigode de natas refastelado na minha cara, como quem acabou uma gulodice e se transporta para a vida que decorre enquanto parei. Espera-me Elduvik e depois Thorshavn, a capital. A mudança soa grande, mas na escala Faroesa, muito é sempre pouco e o burburinho ouve-se apenas nos interstícios da calma.
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