quarta-feira, dezembro 06, 2017

As Ilhas Far Away 6: Pausa em Gjogv



Mesmo no meio das turras que tenho em permanência com a Vida (assim, em maiúsculo, como se fosse alguém), há um ou outro solavanco que me faz saltar um pouco e gostar, assim como quem finge birra, do que se passa. O meu preferido é talvez a pausa antes do beijo que algures no corpo apaga aquela luz ténue para acender uma galáxia; a seguir, mas muito próximas em estima, estão as pausas, aqueles momentos em que nada parece acontecer, mas no fundo tudo se dá e só reparamos ao fim do dia, estendidos na cama, se tivermos o trabalho de rebobinar os pormenores por maior que seja o sono. Sente-se sempre a pausa, o planeta abranda um pouco, as cores como que se ouvem até, sinestesia total e um silêncio em plena respiração, olhos que finalmente bebem a terra e a água, a sensação total de inexistência por opção de fazer parte do Grande Todo. Em Gjogv, discorri um desses transes, no interior da "Gjaargardur", uma guest house e café bem agradável do qual se pode observar verde e cinzento. Ao longe, abstraindo-me o suficiente, consigo escutar o mar, o irmão mais velho das Faroe. Gjogv é essencialmente uma vila piscatória quase deserta, não devendo ter mais do que 200 habitantes. Deve o nome a uma garganta em falésia que serve de impecável porto de abrigo. O momento alto deste local aconteceu em 2005, quando os príncipes herdeiros da Coroa dinamarquesa, certamente fartos de bicicletas e cafés da moda, agraciaram estas colecções de salitre em duas pernas com a sua Real presença. Dois velhotes fizeram um favor à princesa e instalaram um banquinho num ponto perfeito para se ficar sem fôlego da vista, mesmo quando são os pulmões a funcionar. As ondas, quando fustigam a rocha, falam connosco e o banco ficou com o nome da princesa, Mary, pois esta foi a primeira pessoa a sentar-se. Se pensarmos bem, é uma honra ao mesmo tempo irrisória e épica, pois quantos de nós se podem gabar de ter tornado algo histórico com o simples acto de alapar as nádegas?


À minha frente, na janela, uma bandeira faroesa esvoaça e os vidros dançam rumba nos seus caixilhos. O vento abusa da velocidade e os meus companheiros de viagem também se instalaram no aconchego deste café. Bebo um chocolate quente, uma tradição local a que ganharei gosto nos dias seguintes. Quando me perguntam porque gosto de locais estranhos e onde ninguém vai, é por isto Nunca percebi quem se encafua num carro e alegremente se entrega à tirania da multidão em estradas e praias, quem se mete no avião e no pico alto das viagens é prisioneiro de grandes capitais, de destinos turísticos batidos, onde não existe qualquer oportunidade para se desfrutar da prazenteira arte do silêncio e de cair no ardil da paz. Só vejo montes e não me apetece saber se sou do seu tamanho, do meu ou do que a vista alcança. Sei que me sinto aqui, sinto-me mesmo, sinto-me parte de algo, sinto-me parte de mim; e quando na correria nos deixamos para trás, perdemo-nos aos poucos, migalhas e poeira, o quotidiano como um espanador. Aqui estou bem e o único som em mim é o do chocolate quente escorregando pela garganta. Verei ainda até ao fim do dia paisagens incríveis, cascatas e aldeias escondidas, atalhos pela rocha, lagos temporários, mas é isto que guardo e sobre o qual me apetece escrever nesta crónica. Sobre mim, mas nem tanto o que sou ou o que sofro, mas como estou apenas e só comigo, sem nada mais a preocupar. Eu e o calor de uma bebida, desconhecidos que me rodeiam mas sem fazer ruído, a pouca importância dada a quem partilha o espaço não porque sejam insignificantes, mas porque este momento não é seu: o egoísmo não tem de ser errado.


Quando o chocolate quente acaba, existe Gjogv apenas e percorro-a nos caprichos da ventania. Observo, agora mais abrigado, o local onde introduzi os meus companheiros de viagem ao meu bom velho amigo, o atum, que me proporcionou aquele almoço habitual de quem não se quer perder em labirintos gastronómicos que podem ser fatais. Consigo observar a pequena igreja e o outro café da aldeia, um barraco que não é muito mais do que uma cabine telefónica, mas onde, ainda assim, o convívio tem espaço. Um pouco mais abaixo, uma mercearia, que funciona como Posto dos Correios cinco dias por semana, mas apenas meia hora de manhã. Na rua, ninguém, só mesmos os elementos naturais. Até a chuva, quando cai, parece fazê-lo simplesmente por tédio. Não me aborreço, conheci Gjogv em menos de meia hora, encontrarei locais bem mais bonitos e cativantes em todas as Faroe e esperam-me arrebatamentos pulsantes de luz, mas enquanto me esforço para escrever sobre tudo isso, sobre a excitação e a alegria, é àquele momento de paz que regresso uma e outra vez, principalmente quando em ocasiões que são ladras, me afundo naquilo que me me consome o pensamento sem devolver o que seja, só dor, só rugas, só turbilhão. Mas naquele café, nada disso existe, só o que é bom. Nesta aldeia cujo nome não sei pronunciar, há uma paz que não se sabe encontrar e cuja explicação se torna impossível de armar com letras.


Tentei. Estou em paz com isso; e tudo o mais, guardo num bigode de natas refastelado na minha cara, como quem acabou uma gulodice e se transporta para a vida que decorre enquanto parei. Espera-me Elduvik e depois Thorshavn, a capital. A mudança soa grande, mas na escala Faroesa, muito é sempre pouco e o burburinho ouve-se apenas nos interstícios da calma.

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