É uma história que adoro contar só para me fazer sentir especial de alguma maneira. Comecei a ler aos três anos. Conta a minha mãe que um dia, comecei a papagaiar uns títulos de jornais que estavam em cima da mesa, para espanto geral. Não me recordo de nada disso, mas consigo imaginar a cara do meu pai, se estava presente, um esgar de espanto com um misto de desconforto, um pouco como se a normalidade do mundo se perturbasse e se havia algo que ele não gostava era de quebras na rotina. Acho que vem daí a minha capacidade para absorver informação de uma forma absurda, lembro-me de com seis, sete anos já levar enciclopédias de casas alheias para me entreter no quarto. As que já estavam em casa marcharam e de página em página, os livros e a leitura definiram uma boa parte da minha vida, esticaram a minha sobrenatural curiosidade para lá dos meus limites. A minha família sempre o soube e tentou acomodar-se a essa voracidade. Dona Maria de Lurdes, avó materna que por felicidade me calhou, tomou conta de mim até aos dez anos e foi entendendo e observando todas as minhas peculiaridades, com alguma ternura mas todo o pendor de paciência. No meu décimo Natal, ofereceu-me dois livros, que ainda hoje não sei onde foi desencantar, nem sequer a razão pela qual os escolheu. Desconfio que em parte foi acaso e em parte não lhe apetecer procurar mais.
O primeiro, de Charles Berlitz, decretava o fim do mundo em 1999, por toda uma série de tragédias de criação humana que claramente nos condenavam à morte rápida. Talvez seja esta a melhor altura para informar que Berlitz acreditava também que o Triângulo das Bermudas era real, mas devem ter notado pela previsão que o livro não será talvez o maior paradigma do rigor. O segundo não o era mais, mas mostrou-se muito mais influente na minha criatividade. Robert Charroux é um nome que talvez não seja familiar para muitos de vós; a sua principal qualidade como autor é a defesa acérrima da teoria dos "Antigos Astronautas", popularizada por dezenas de memes graças a um programa, ahm, documental do Canal, ahm, Historia. "O Livro dos Senhores do Mundo" introduziu-me a esse mundo, que até mesmo uma criança de dez anos sabia torcer o nariz, pensando que idiota é o autor que quer passar a todos nós, humanos, um atestado de incompetência como espécie. No entanto, e esta é a parte de real importância de todo este relambório, no meio das páginas apareciam umas fotos de provas da sapiente infuência alienígena nas nossas antigas construções; e foi o meu primeiro contacto com o fascínio trepidante das pálidas linhas de Nazca.
Lá chegaremos a uma descrição mais elaborada, mas para quem nunca viu, existe perto da vila peruana de Nazca um conjunto de petróglifos, desenhos em superfície rochosa, bem definidos e determinados que em nada são fruto do acaso, cuja principal curiosidade é poderem ser vistos apenas a partir de um ponto alto. Ora, Nazca é um deserto, descrevia assim o livro, e o Bruno criança, ainda que com cepticismo, pensava sempre "Então mas que altitude existe num deserto? Porque é que se fizeram estas linhas? Quem é que as via?" e era uma boa pergunta que ainda hoje ninguém sabe muito bem responder e como toda a civilização Nazca quinou, porventura devido a causas climáticas e naturais, ainda hoje tentamos responder a isso. Aqueles desenhos brancos, figuras tão variadas quanto macacos e colibris e baleias, são das mais vívidas recordações do meu imaginário infantil, parte da minha pregação standard quando tentava convencer amigos e colegas de escola da enormidade de coisas estranhas e inexplicáveis que havia no mundo. Foi com Nazca que se iniciou o meu romance platónico com a América do Sul e o seu misticismo, mistério e capacidade de transcender, um continente tão vulcânico no sangue das suas gentes e alado na capacidade sobrenatural de se dar à vida de uma forma tão aberta e voraz que aquelas terras condenavam alguém a ser feliz como nunca alguém fora, mas a morrer só devido a isso. Quase tudo na América do Sul me fascina, desde a História à Mitologia às paisagens e à vontade quase primária de simplesmente me fazer à estrada. Nazca estrondou tudo isto e vendo no mapa, fica no Peru, o destino que escolhi este ano para a minha habitual aventura internacional de 2018. Escolham portanto sabiamente os livros que oferecem às vossas crianças. Nunca se sabe do potencial que têm em levá-las longe no futuro, mas de uma maneira que não estão bem à espera.
Por um lado, deve ser-vos refrescante saber isto. Eis um país normal, finalmente! Afinal, é conhecimento comum que o Peru existe e onde fica, o nome da capital e uma ou outra coisa que se possa visitar em todo o espaço peruano. A mais óbvia, e a primeira reacção quando informava os mais próximos do meu destino, é Machu Picchu, ainda que fosse, e confesso, um dos menores motivos de interesse a levar-me a atravessar um oceano. Queria ver montanhas andinas, riscar mais uma cordilheira da minha lista. Já começa a ser conhecido o meu amor pelas altitudes e nas noites que antecederam a minha partida, a mente dominava-se do prazer antecipado dos grandes e elevados espaços, topos cobertos de neve, vales entre grande montanha, fotos incríveis de cair o queixo. O programa que compunha a viagem incluía isso e dava a entender, como mais tarde descobri ser verdade, que a geografia peruana é bem variada: desertos, cordilheiras, praias, ruínas, urbes e lagos, para além de uma porção significativa de floresta amazónica que não cheguei a visitar. O Perú é o terceiro maior país da América do Sul, com cidades muito espalhadas pelo seu território, o que o torna num desafio para percorrer. É um berço de civilizações, tão grande quanto pelo menos a Mesopotâmia, e tem uma história riquíssima de gente obrigada a enfrentar condições naturais complicadas para florescer, um país com uma população multi-étnica muito variada, um grande número de ameríndios presentes, principalmente fora da capital, e um vasto grupo de asiáticos a viver no país, o maior em toda a América do Sul. Toda esta variedade, esta multidão de pessoas e influências, transforma o Peru num cruzamento de muitas coisas tão diferentes quanto Vargas Llosa e a Cumbia, as ruínas de Tihuanaco e os montes de lixo que mais tarde encontraria em aldeias tão afastadas da civilização; mas também uma rica gastronomia, gente inacreditavelmente acolhedora que se mistura com sabujos que se querem aproveitar de turistas e num aspecto retorcido de reunir o melhor e o pior, o Peru parecia ter bastante de Portugal.
Nas arrumações, coisas a não esquecer: um livro de Jorge Luís Borges que usarei para um certo projecto fotográfico registando as minhas passagens na América do Sul; um diário de viagem que me foi oferecido pela Isabel, cara amiga que acha algum tipo de valor aos meus passeios, que sente a alma cheia de cada vez que me lê ou vê o resultado fotográfico das viagens que enceto e conseguiu convencer o companheiro a preparar-me um caderninho com uma belíssima e evocativa capa desenhada a preto; um outro diário de viagem que escreverei como relato pessoal a quem, não indo comigo, é sempre minha companhia; a foto do meu pai olhando o mar, que desta vez atravessará para lá do mesmo num local onde a água corre ao contrário, o sol nasce do lado errado quando aqui for de noite, ainda se está a chegar à hora do almoço; muitas latas de atum; comprimidos para evitar altitude e certos problemas intestinais que surgem com frequência pelas condições comensais que por lá se encontram; duas leituras de companhia: uma história do século XX latino-americano pela esvoaçante pena de Eduardo Galeano e uma obra, que me foi aconselhada pelo catedrático viajante José Luís Santos sobre a Àsia Central, de seu nome "Rotas da Seda"; e claro, a minha fiel máquina fotográfica, algo escavacada, algo empenada, sempre pronta para a sua possível destruição de cada vez que a trago para registar com maior ou menor poder estético os mundos para onde me translado.
Esperam-me duas viagens: de Lisboa a Madrid, daqui para Lima, onze horas sem parança de voo nocturno, o silêncio do Atlântico na noite de uma avião. Apesar das horas de voo que levo, ainda não me habituei a descolar e aterrar, de todas as vezes, ainda aperto forte o braço do assento, ainda me sinto terráquo e animal de solo. Mas querer conhecer o mundo exige-nos tarifas: a primeira é desligarmos de tudo o que conhecemos; a segunda é dar a volta ao medo num pequeno foxtrot de risco; e a terceira é voltar na vontade de partilhar com outros, de apelar à viagem nas pessoas que conhecemos, de puxá-las para as outras realidades que vamos conhecendo. Esta é sempre a minha maneira de pagar este terceiro preço. Espera-vos um nascimento, uma morte e também um casamento, situações onde me vi no limite do pior e do melhor; mas como sempre honestidade, alguma tentativa de que isto não seja chato de ler e a garantia de que eu apenas regresso, na verdade são vocês quem viaja. Se tudo isto começou com a minha avidez da leitura, faz todo o sentido que o façam através da prisão que os vossos olhos dão às minhas palavras.
2 comentários:
Olá Bruno. Estou muito curioso quanto a esta viagem ao enigmático Peru. Para já, começa bem ☺
Olá, António! Vai ser curioso acompanhares uma viagem onde não estiveste presente :) obrigado pelo elogio e vamos ver se não piora :)
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