quinta-feira, outubro 18, 2018
Perugrinação 6: As várias faces de Paracas
A sul de Lima, o deserto estende-se como quer. Terras áridas onde chove pouco no Inverno e no Verão pouco toca deixaram-se secar e cobrir de areia. É esta a paisagem que nos acompanha pela Pan-Americana Sur até chegarmos a Pisco, um amontoado de casas que é cidadezinha. Desviando-nos da estrada, uma longa recta aproxima-nos de um companheiro que nos sossegou ao longo de duzentos e tal quilómetros: o Oceano Pacífico. Encontramo-lo a guardar uma pequena vilazinha que pareceu brotar do meio da areia apenas e só para servir de justificação ao encontro com o mar. Paracas. Não é muito difícil descrevê-la para quem já passou férias numa localidade de veraneio. Há toda uma aparência de uso, mas a impressão mais do que certa de que só se dá ao luxo de ter vida durante o Verão. Paracas é praia e deserto, basicamente, embora só o segundo se aproveite. Existem areais junto ao mar, mas são pouco extensos e sujos. A vila é de pescadores, acima de tudo. Quem quiser aproveitar os dias balneares, tem outras localizações mais favoráveis a sul; mas aqui, o que existe é uma longa avenida com casas nas laterais.
É dominada por uma imagem familiar de trezentas mil t-shirts, uma figura esguia com canos nas costas que sopra numa flauta que germina da sua face. A sua imagem é replicada em banners e tabuletas e toldos de lona, representando negócios tão díspares como diversão nocturna ou artesanato. O mais estranho, penso, é que este é Kokopelli, um deus da fertilidade comum nas planícies norte-americanas, bem longínquas do deserto peruano. Ainda que alguns mitos Hopi nos digam que é ele quem se esconde naquela sombra que todos podemos ver na Lua (a versão ocidental identifica essa mesma sombra como o cavaleiro São Jorge, o que se só mostra o quanto as bases de valores podem ser radicalmente diferentes em todo o mundo), e que daí salta para a Terra de forma a emprenhar meninas jovens mais descuidadas, não sei o que raio o atraiu para abandonar a base permanente de David Bowie e trocá-la por Paracas. Mas os deuses têm os seus motivos, quem sou eu para questioná-los? Um deus da fertilidade no deserto: se temos fascistas em democracias, não é por aqui que o mundo se torna estranho.
Depois de deixarmos a bagagem no Los Frayles, o objectivo é almoçar. Como a imaginação não abunda, o restaurante escolhido tem o mesmo nome da localidade. O positivo é que nos oferece uma vista bem agradável sobre a marina. Brilha o sol que se reflecte nas águas que parecem prata e sob as quais as embarcações baloiçam. Por momentos, se fecharmos os olhos, até é Verão. Os pratos de peixe são recomendados numa zona piscatória, mas acabo por comer um bitoque apenas e só porque adoro o nome com que é apresentado no menu: bistec à la Pobre. Apropriado. Com tudo, estamos quase a meio da tarde quando nos levantamos. Sobra tempo para caminhar no passeio pedonal junto ao mar. Vejo os alertas de tsunami que aqui se mostram recorrentes e olhando a extensão da Baía de Paracas, que tornou esta zona apetecível a quem vive do mar, imagino que deva preocupar quem ali vive. O turismo é a principal actividade e inventa-se de tudo um pouco para esmifrar a vaquinha turística das suas gotas de ouro mais exíguas. Há um homem de meia idade, boné de lado, sentado num muro, cigarrando descontraídamente. Sempre que vê um grupo de turistas de máquina fotográfica ao pescoço, puxa de um saco do bolso. Os pelicanos peruanos são comuns nesta costa e ele sabe-o bem. Do saco tira pedaços de peixe e lança aos pássaros, deles sacando poses para deliciar os fotógrafos amadores. Claro que, como se fosse um arrumador ornitológico, vem logo depois de mão estendida para pedir uns cobres como se desempenhasse um fundamental dever para o viajante e lhe devessemos mostrar mais gratidão. Quando alguém não o faz, resmunga-se um rumor estranho e fico a pensar se lá como cá se riscam cromados e se à falta de capots é a pele quem paga a ousadia. Não lhe pergunto, até porque não me aproveito dos seus serviços. Já fotografei destes bichos em Lima e não sou fã do seu último álbum.
O sol vai descendo. O final de tarde é preenchido pelo pôr do sol, numa cenário de múltiplos pontões que saindo da praia, fazem um contraste incrível na câmara. Gaivotas e outros pássaros sentem que o dia finda e aproveitam uma última vez para estender as suas penas ao beijo do calor. Paracas é conhecida também pela sua diversidade de vida e ecossistemas. Ao seu largo localiza-se a Reserva Natural da Ballestas, que visitaremos amanhã, e a quantidade de barcos aqui existente atesta a diversidade de peixe nas suas águas. No entanto, esta zona revela ser de incrível ironia, pois esta abundância biológica convive com outra Reserva Natural, mas de deserto. Só a visitaremos amanhã, mas Kokopelli sai da Lua e faz-nos avançar no tempo. O mar convive com a planície desértica num cenário estranho, surreal. Ao seu largo passa a corrente marinha de Humboldt, considerada a mais produtiva do planeta, aumentando ainda mais a ironia. A partir de vários miradouros no deserto, observamos não só o oceano, mas também várias estruturas rochosas que se tornaram postais da região. Uma que já não veremos intacta é "la Catedral", um arco gigante de arenito que no seu auge apresentava também algumas espirais elevadas como torres de uma igreja gótica. Infelizmente, um terramoto em 2007 danificou gravemente a estrutura e já só observamos o que sobra. A Natureza dá e a Natureza tira. Vale ainda assim a pena pela oportunidade rara de fotografar no mesmo dia extensões de areia na costa e no interior, para além de variadas espécias animais. Apesar da proximidade do mar, as praias não são banháveis. Isto inclui a fotografia mais conhecida de Paracas, a chamada Playa Roja. É um fenómeno à parte. Depois de nos habituarmos aos tons amarelados do deserto, eis que a nossa vista é agredida por um rasgão vermelho que o mar se ocupa de tapar às prestações. Não é um vermelho vivo, mas ocre, duro, resiliente. Não brilha, mas estampa-se na nossa memória. Um vermelho rico. O cinzento da manhã em que a visito faz ressaltar ainda mais o encarnado. Guardam-na um promontório rochoso longo e as dunas. Se não posso calcá-la, deito-me então e fotografo. À minha volta, dezenas de turistas fazem poses, tiram selfies, essa coisa toda. Eu busco areia. É por isso que sou esquisito e estou solteiro.
Como quase tudo o que rodeia as civlizações peruanas, também os Paracas que aqui viveram oferecem mistérios. O mais conhecido vem de achados arqueológicos que nos mostram que gostavam de alongar os crânios por motivos desconhecidos.... embora o clube de fãs de Erich Von Daniken, de quem vos falei nas primeiras crónicas, grite sempre que esta é a prova inequívoca de extraterrestres entre nós. Como em tudo o que é folclore, o principal mistério nem sequer se debate. O espaço da Reserva Natural tem um micro-clima muito particular que apenas encontra paralelo no deserto do Atacama. Basicamente, não chove. O vento e a falta de humidade tornam isto óbvio e a pergunta que se coloca é a da razão que levou uma civilização não só a instalar-se como a florescer num espaço assim. Deixa-nos a coçar a cabeça; e não estamos a falar simplesmente de uma excursão de pescadores que se afeiçoaram ao pescado da região. A cultura Paracas é a antecessora directa da civilização Nazca, que deixou a sua marca no solo não muito longe daqui, mais a Sul. Um voo de drone feito este ano, aliás, descobriu que por toda a extensão deste deserto estão desenhados geóglifos que atravessam o solo arenoso. Alguns são simples linhas geométricas, outros parecem representar figuras completamente diferentes das de Nazca. Vêm juntar-se ao mais conhecido, o famoso "El candelabro", de que falarei para a semana. A ser verdade, os Paracas deviam ter um conhecimento de engenharia bastante razoável e sabemos que dominavam técnicas de irrigação que deviam ser admiráveis, até porque ao contrário de outras civilizações que floresceram junto aos grandes rios, não há qualquer curso aquático actualmente na zona. Um mistério em cima do outro.
Naquele fim de tarde solarengo, na praia de Paracas, nada disto me preocupa ou sequer inquieta. Sento-me junto ao mar, programo a máquina, fotografo e o silêncio da época baixa é bem vindo. Aqui não se passa nada e se calhar devia, vim de tão longe que aborrecem-me viagens de nulo: Mas enquanto o sol me beija em continuado deleite, meio que encolho os ombros e aproveito. No plano da viagem, estou-me a guardar principalmente para a segunda metade, ainda que a primeira inclua Nazca e um deserto. Mas os Andes chamam-me e em Paracas, não há montanhas. Só de ironias. Há também comida boa, pouco irónica, e o descarado convite à nossa carteira, de tantas maneiras que comprovam uma máxima da teoria das civilizações: povos agricultores/pescadores, se enriquecerem o suficiente, tornam-se comerciais. Paracas tem múltiplas faces e identidades. No fundo, talvez devamos agradecer a estes profissionais do viajante: são os guardiões de uma identidade permanente numa terra de caleidoscópio.
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