quinta-feira, outubro 04, 2018

Perugrinação 4: Frutos do mar


Das mais fincadas recordações que tenho das minhas férias de Verão infantis é a chegada dos barcos de pesca à praia. Em Pedrógão, a localidade que sempre associo quando evocam a areia que se deixa beijar pelo mar, costa marítima onde parte de mim se fez, ainda se pratica a arte xávega: barcos de madeira coloridos aventuram-se pelo mar, perto da costa e largando redes com bóias berrantes, puxam-nas mais tarde para a orla do areal. Presas a carroças que animais, por norma bois, puxam pela pura força dos seus rijos músculos, as malhas arrastam-se pela areia, mergulham nesses fragmentos rochosos que reluzem ao sol, a força dos pescadores dando uma ajuda, a ânsia de ver o produto de uma manhã ou tarde de trabalho rijo. Por entre as pernas das pessoas, normalmente levado pela mão do meu pai, acontecia magia naquele acto, os pescadores haviam trazido para terra pedras de mar, brilhantes ainda saltando talvez pelo contacto com o calor. Eram peixes, miúdos e pouco graúdos, raptados ao seu elemento e definhando num bolha enorme que lhes roubava a respiração, por ironicamente ter em exagero aquilo que não conseguem filtrar. Depois de alguns segundos, aquelas luzes cintilantes estacam. A rede, fervilhante e quase viva, tornava-se apenas paisagem aos quadradinhos, como um pano de malha onde servem uma refeição ainda crua. Acho que foi pela memória do cardume capturado a estrebuchar que a pesca nunca me atraiu. Nem caça, mas isso é outra história. No entanto, sempre admirei a coragem de quem se lança ao mar e arrisca, acho que é dos braços de ferro mais cativantes e agrestes no nosso mundo, o Homem contra as ondas. Garrett conjura-o em "Viagens na minha terra", quando dá aos vareiros da Gafanha vitória na sua disputa contra os campinos ribatejanos que vergam touros; e em Lima, a nossa tarde começou precisamente no abrigo que os pescadores fizeram quando chegam do mar.

Na Playa dos los Pescadores, um pequeno porto recebe os barcos regressados da faina. Pequenos, alguns deles nem chegam ao tamanho de traineiras.  É um simples, curto telheiro pintado de azul. Nas colunas, desenhos estilizados de vários animais marinhos sorriem e recebem quem visita num "Bienvenidos" que não se consegue imaginar de uma criatura que vai acabar no prato de alguém. Bichos cruzam-se no caminho e também sentem no ar o fervilhar da comida que chega. Nas bancas de cimento, esperando o produto, facas são afiadas, aguardam o trabalho. A luz penetra pouco no espaço, como se este fosse o fundo do mesmo Oceano Pacífico negro que contemplamos. Ao saírmos da protecção do telheiro, um grupo mais numeroso que o nosso, de pelicanos, vigia a entrada. Desafiam-nos a não nos aproximar. Eu por mim nem faço questão, mas estas aves, com o seu bico bizarro e pouco frequentes na costa marítima portuguesa, atraem a minha máquina. É entre estas fotografias que vemos as embarcaçoes chegando e as pessoas, num magote compacto que aguardava, voltam a tornar-se indivíduos, mexendo de um lado para o outro. No Muelle de Chorrillos, a bonança vai dar lugar um tipo de tempestade muito diferente da provocada pelo vento. Temos sorte pois chegamos mesmo na altura em que o movimento vai começar.


Mal os barcos encostam, caixas coradas passam de mão em mão e empilham-se. Poucos homens por embarcação, vi cinco no máximo e todos eles devem ter saído daqui às seis da manhã, por aí. Vêm cansados, mas sabem que o trabalho está a meio. O pescado deve ser retirado para terra firme, de seguida levado para o telheiro que abandonámos e lá será vendido a restaurantes principalmente, algumas merceeiros também. Desta pequena estrutura, onde os desenhos e a cor não disfarçam alguma velhice deteriorada, depende toda a gastronomia de peixe desta gigante metrópole. No entanto, bem cuidada e limpa, a imagem de São Pedro, padroeiro dos pescadores limianos, vigia tudo, protege os seus pupilos e talvez perdoe aos turistas a atrapalhação que causam nos trabalhos. Durante bastante tempo, a zona foi vista como insegura; mas os pescadores encontraram um aliado inesperado no Clube de Regatas com quem partilham o Molhe. A vinda de turistas é o resultado de um projecto conjunto que pretende reabilitar a zona e atrair curiosos que queiram assistir ao vivo a pesca artesanal. Como berços que perderam as pernas, pequenos barcos imóveis balançam sobre o mar em redor do todo o pequeno porto. Os pelicanos voam e roubam pedaços de peixe que vai ficando nas suas cobertas. Ninguém os disputa, são uma espécie territorial e capaz de arrancar a mão a alguém. Felizmente, são a única coisa que me deixa aqui temerário.

Abandonamos a costa e voltamos a subir à capital. O rumo é Barranco, conhecido como o bairro dos artistas. Numa nova ironia, a visita começa naquilo que deve ser o oposto do espírito desta comuna no centro de Lima, um Starbucks. Apesar disto, estamos naquela que é considerada a zona mais cool da cidade. Zona boémia e onde moram muitas almas que se dedicam às artes, age como a reflexão física dessa intenção e desse ideal. Aqui se localizam os principais museus da capital e há uma diferença arquitectónica notória quando caminhamos nas suas ruas. As casas coloniais do século XIX estão desassistidas, mas o estilo continua presente. Cores abafadas, verdes, azuis e brancos. O abandono deve-se às absurdas exigências que a lei peruana faz a todoas aqueles que queiram remodelar e cuidar de umas destas habitações históricas. Tal faz disparar os encargos económicos de quem se lance na aventura e como consequência, boa parte está fechada ou exposta à ruína. Não é um estilo atractivo, mas sim discreto e como se amontoa num todo uniforme, fica na retina.


Atravessamos a ponte dos Suspiros, embora não estejamos em Veneza, e a intenção é perdermo-nos nas ruas de Barranco e descobrir o que afinal pode a arte valer a uma zona de degradação histórica. Numa desta mansões recuperadas, encontro um refúgio. Por uma porta iluminada, chama-me a atenção a imagem icónica do Dave de "2001 - A space odissey", noutro estilo. Ao seu lado, Walker White insiste que é ele quem bate à porta do perigo. Está claro que entro e me deixo fascinar. A loja é a Vernacula e guarda em várias soluções o cruzamento de cultura popular, desgin moderno, objectos de estilo e cultura peruana. É irresistível: música e televisão, cinema e pintura, cadernos, bases para copos, vestidos, pulseiras... Compro para mim mesmo um pequeno caderninho azul, onde na capa felpuda uma árvore negra vive para morrer. É uma imagem notável e notória que me leva a mão à carteira. Num pátio exterior, a música convida a sentar numa esplanada, mas não temos tempo. "Vamos embora, ainda temos Barranco por visitar" e vou directamente ao balcão com novas aquisições. Atrás de mim, um pai e uma filha sorriem e gracejam em redor de uma saca de gomas. Entendo o castelhano; "A mamã disse-te que só devias comer coisas saudáveis. Eu fico com isso", e a garotinha ri e afasta lentamente do pai o saco transparente com guloseimas. "São saudáveis, papá" e como que para comprovar, uma delas desaparece na sua boca, cujos dentes acariciam ao longe o pai com a felicidade que só crianças e coisas doces podem irradiar.

Um pouco mais à frente, aparecem os primeiros sinais de que foi dada carta branca à cor. Pinturas murais e alguns graffitis vão desde o vulgar cliché (artistas anunciando que o amor salvará o mundo, bocejo) até à magia entre dimensões de um surfista que saindo de uma onda encontra uma santa domando um dragão marino pela força da vontade. À direita, uma escada parece atravessar o bairro em longitude e chama a si o foco do trabalho artístico: cada degrau é um miradouro para estética visual - gatos dourados dançando perante um twist que mais ninguém escuta; um arbusto maternal segura a sua filha num globo de folhas castanhas; um músico e um burro escutando música defronte de uma telefonia; cabelos negros penteados por colibris das cores de uma caixa de lápis Caran d'Ache; um rapaz retira a sua face e revela um pardal no seu poleiro; a pintura em redor de um espelho onde somos contemplados pela nossa própria necessidade de observar.  Reparo também que nas paredes se encontram embutidos pequenos pedaços de mármore onde se inscrevem versos de poetas que aqui habitam ou habitaram. Alguns são involuntariamente cómicos, mas um ou outro corta junto à medula. "Si yo sola no me cicatrizo, quién me sanara", e lembro-me de mim, e lembro de ti também. "Es dificil hacer el amor, pero se aprende", na simplicidade de quem vê uma folha de papel e pensa que o mundo cabe naquele rectângulo alvo; "El horizon es un verso arrojado a tus pies", e invoco logo todas as paisagens que vi e vivi, todas as vezes que a linha do horizonte foi, é, será sempre um convite a sonhar, essa força que nos tira todos os dias do leito. Os degraus são de pedra, vulgares, mas percorrê-los, para quem se deixa levar, pode ser uma viagem bem mais distante do que Barranco em si. A noite vai caindo e lâmpadas de filamento iluminam-se no exterior, como se um arrailar se instalasse no bairro. Quando subimos para regressar à Avenida, e junto a uma pequena catedral, três músicos evocam Gardel em cordas de violino e violoncelo, "Por una cabeza" acompanhando o crepúsculo, o tango como a explosão de um sol, por vezes em ocaso, dentro de nós. Barranco, na sua cor e decadência, é o paradigma do bairro artístico de grande capital; mas ao imergirmos nas suas pedras e labirintos, somos recordados em constância do que a arte faz por nós, do que a expressão do indizível nos causa e no movimento gingão de Gardel, encontro um ponto em mim que sorri pela primeira vez.


O dia acaba pouco típico, jantando numa cadeia de fast food no centro comercial Larcomar. Apesar de tudo, Larcomar tem um miradouro que observa espectacularmente a mesma costa onde passámos a tarde, mas agora não é apenas o oceano a mostrar-se negro. A noite caiu em Lima, as luzes dos carros fazem da marginal uma avenida de pirilampos debaixo da iluminação torrada. Enquanto esperamos que nos atendam, o meu telemóvel apita. Mensagem do meu irmão. "A Beatriz nasceu" e durante uns segundos saio de Lima. Até agora, a Beatriz foi apenas uma ideia consubstanciada pela cúpula que a namorada do meu irmão trazia à laia de barriga. Agora é alguém. Um choro que chega ao mundo e se faz humano, dois braços, duas pernas e uma cabeça que mal despontam. A minha sobrinha. Devia ter nascido de hoje a três semanas. Não quis esperar, não sabe mesmo no que se veio meter. De imediato recordo a menina que com o pai gracejava acerca de doces. Não sou pai, não sei se eventualmente me darão essa oportunidade, mas imagino a Beatriz crescida e quero apresentar-lhe tantas coisas mais doces do que o açúcar, um mundo com tantos pequenos pormenores que quase ninguém vê, quero partilhar com ela o momento em que Darth Vader revela um dos grandes twists da História do Cinema; colocar-lhe Scully como modelo; dar-lhe a vontade de tornar a Natureza uma outra casa, e aqui tenho de parar e evitar que ela se torne noutro eu. O mundo não precisa mesmo disso. Mas estou no meu primeiro dia em Lima, a duas semanas de conhecê-la. A viagem ao Peru deixou de ser apenas um passeio turístico: como Ulisses numa outra encarnação, o meu percurso é também de regresso a uma pequenina Penelope, para quem serei apenas uma forma alta com pelo na cara, mas que em mim, já é uma parte melhor neste planeta. É arte e não precisa de tintas: só a configuração de um verso pequenino que já em mim escreve canetas em tom de poema.

1 comentário:

Gil disse...

É desta que vais escrever um livro de viagens. Vou seguir com muita curiosidade esta viagem pelo Peru. Pelas fotos que vi da vossa viagem deve ter sido muito interessante.
Abraço