Há coisa de dois meses, dois amigos meus deram o nó. Festa catita, aparte estudantes universitários a cantar e girando pandeiretas. Muita comida, alguma palhaçada e comigo, aquela sensação de estar sempre a mais quando acontecem momentos de pagode. Já ao final da tarde, com convidados meio bebidos e a pista de dança a entrar naquela fase de setlist parola que faz com que os DJs de casamentos sejam dos profissionais mais sobrevalorizados do mundo monetário, sou abordado por uma das amigas da noivas, sorrindo seriamente e com o tipo de decotes capazes de iniciar uma nova Guerra dos Cem Anos. Queria falar comigo, mas manter-se vestida, o que costuma ser, aliás, um costume bem arreigado nas minhas relações com o sexo oposto. "Vou ao Irão daqui a umas semanas e queria que me desses umas informações". Tudo muito bem, mas porque me estás a dizer isso? "Ah, tu já lá foste, certo? Andaste por tantos países esquisitos que já lá deves ter ido", e não, nunca lá pus os pés, não por falta de vontade, mas por sofrer de uma doença crónica de cura difícil chamada "conta bancária esquálida". Esclareci que o que sabia era em segunda mão. Que conhecia quem viajasse para essas bandas, mas que eu, pessoalmente, jamais pusera os pés no coração da Pérsia. Acho que ficou confusa por momentos. A certeza imóvel de que eu demandara pelo Irão estava tão presente nela que posso ter passado por mentiroso durante uns segundos. Mas é um fenómeno bizarro que tem ocorrido comigo. As pessoas não presumem apenas que eu viajo. Se o faço, é para os locais onde elas nunca sonham. Colocam em mim uma certa extensão de magnetismo pelo desconhecido, mas por outro lado um temor pelo mesmo. Ainda que os meus destinos possam ser relativamente normais, seja lá o que isso for, a conclusão é a de que não ficarei pela capital e pelo papo ao ar. Desapareço na penumbra do que se teme e qual é a admiração de eu ter ido ao Irão? É bem normal, estamos a falar de um gajo que visitou um "istão", não é?
O lago de Kala Kule é um desses lugares no meio de nenhures que reforça a minha fama de eremita. A quatro mil e quatrocentos metros de altitude, é uma massa de água de cor clara, que não reflecte o céu, mas possui a sua própria paleta celestial. O que podemos lá ver em duplicado são as muitas montanhas que o rodeiam, ainda com neve, uma delas tapada quase na totalidade: é o Muztagh Ata, uma besta de quase sete mil e quinhentos metros de altura. São topos de beleza rude, mas que se entranham em mim, amante de montanhas, como naturais. Ainda assim, apesar de remoto, é um local bastante visitado. Estão aqui, em contas por alto, pelo menos umas cem pessoas, espalhadas a todo o comprimento este espaço. O dia é de sol, mas a forte ventania e o frio da altitude não convidam de todo a um passeio fácil. Vir aqui só pode se acendido por um desejo e não pelo tédio. Devoram este local com telemóveis. Há quem aproveite para usufruir dos serviços de uns moços que convidam avidamente para passeios de dromedário e camelo bactriano, os mais comuns na Ásia Central. Dão umas voltinhas pelas margens do lago, tiram umas fotos: estiveram lá. Eu simplesmente me instalo a almoçar. O que é? Obviamente, uma latinha de atum. Lentas garfadas fazem desaparecer a comida, enquanto me instalo em todo este esplendor montanhoso. Ao meu lado, a máquina descansa também, porque sabe que trabalhará bastante proximamente. Reparo, a pouca distância, num senhor que veste de forma bem selecta. A sério, parece mesmo que vai trabalhar na Bolsa de Valores fato e gravata, cabelinho penteado. Pergunto-me se isto é prova de um fenómeno sobrenatural de bilocalização, mas não. Caminha para junto do lago e instala-se num enorme lodaçal que lhe transborda os sapatos, mudando-lhe a cor do preto para um castanho derretido. O motivo descobre-se de seguida: sorriso forçado, telemóvel ao alto e hossana na selfies. Era a perspectiva desejada, o melhor ângulo para a foto. Só posso sorrir pela vestimenta, nunca pelo sacrifício fotográfico. Sei eu bem que já fiz coisas mais arriscadas e sem juízo para captar uma imagem. Mas lá está, é muito por isto que viajo. Ele veio até aqui provavelmente para se lembrar de que está vivo. Quer dizer, também eu. Não tenho olhos atravessados, nem sequer me aperalto, mas também tenha mais em comum com ele do que penso.
Depois desta pausa para almoço, estamos a cem quilómetros do nosso destino de hoje, Tashkurgan. A paisagem será sempre esta, de montanha, acompanhados pela cordilheira de Karakoram. Esta estrada tem pouco anos, e na verdade, pelo caminho, ainda apanharemos pedaços onde está apenas a ser idealizada. Apesar da distância relativamente curta que nos espera, ainda demoraremos umas cinco horas a fazê-la, à custa das curvas e dos desvios. Tashkurgan não é um destino particularmente notório. Na verdade, esta é a coisa que mais se destaca no seu papel na China. Um ponto onde outra das minorias do pais, desta vez os Tajiques, se reuniram ao longo da História. Percebe-se isto, pois fica praticamente colada à fronteira com o Tajiquistão. Este estatuto de cidade de fronteira adensa-se mais quando no mapa se repara que tgambém encosta praticamente ao Afeganistão e ao Paquistão. Em termos de geopolítica, este é um prémio muito pouco invejável, o que faz com que o governo chinês tenha um particular interesse por Tashkurgan, por muito que não exista nada aqui para haver interesse. É outro fim do mundo. Aparte algumas casinhas que vejo pelo caminho, não existe nada. O passeio merece-se pela fabulosa paisagem. Localizada já na cordilheira do Pamir, esta é uma cidade com trinta mil habitantes, a esmagadora maioria de origem tajique. Mesmo nos tempos da Rota da Seda, este caminho era apenas percorrido pelos mais bravos e talvez desesperados. Hoje em dia, apenas um transporte aqui chega, e é a camioneta, uma vez por dia, a partir de Kashgar. Tashkurgan é um daqueles lugares esquecidos pelo mundo. Consigo reconhecer este isolamento depois de três anos a leccionar no Alentejo, mas aqui numa amplitude muito mais elevada. Talvez por isso a cidade detenha o estatuto de entidade autónoma, para uma melhor gestão dos seus recursos: a distância da civilização, o relevo montanhoso -para além do Pamir, outras três grandes cordilheiras encontram-se aqui perto - e a situação política particular convenceram a China a experimentar esta solução.
É estranho ler mais tarde a história da região e perceber que a cidade foi a capital de vários reinos, obtendo a sua riqueza a partir do comércio. Hoje, apenas a estrada de Karakoram traz aqui visitantes. Aqueles que gostam de se demorar têm a oportunidade de visitar os locais históricos, nomeadamente a Torre de Pedra que domina a geografia da região. Uma vez chegados a Tashkurgan, é aqui que nos deslocamos de imediato. Estamos no final da tarde, mas a diferença entre o tempo oficial e o tempo real significa que ainda temos várias horas de luz. Esta grande torre, no cimo de um rochedo, parece imponente nas fotos dentro do centro de visitantes. Ecrãs rachados e cartazes de papel envelhecido anunciam os encantos deste museu e desta área. O museu é grande, ainda assim, e os Chineses não pouparam a meios para que o visitante tenha uma experiência confortável. No exterior, encontram-se vários comboios com rodas, com assentos para transportar o visitante aos pontos de interesse. Como em tudo, o que interessa é controlar: vemos apenas o que eles desejam e as nossas escolhas são colocadas em pausa. Eles sabem bem o que é bom para nós. Na primeira paragem, uma inscrição chama logo a atenção. If in Rome you do like the Romans, in China do it the Chinese way. È como quem diz "Ta quietinho ou levas no focinho", mas de uma maneira bem educada, polida. Um passadiço de madeira, que não passa ao lado do rio Paiva, conduz a um rochedo elevado, sob o qual se vão destruindo umas muralhas de pedra e adobe. O enquadramento montanhoso torna o local mais imponente do que devia; mas nesta planície aluvial, encostada a um rio, qualquer elevação se torna uma vantagem geográfica de imediato. Uma lenda registada por Xuanzang, um monge budista do século sétimo, fala que uma princesa Han aqui se terá refugiado com o seu séquito, numa altura de revoltas populares na região. Estava a caminho de se casar com um rei persa. No entanto, talvez por na altura as políticas de contracepção não fossem tão restritivas como actualmente, a princesa engravidou de um "desconhecido" e nove meses depois deu à luz um rebento que se tornou num poderoso guerreiro que viria a fundar uma linhagem real que durante muitos anos governou Tashkurgan. Sorte a sua.
O que a História nos diz é que o nome da cidade é uma tradução literal desta estrutura: forte de pedra. Portanto, devia ser bastante importante. Tem mais de dois mil anos e terá servido até como palácio em certas alturas, mas não se sabe muito mais. O que sobra no interior é quase nada, fruto de séculos de abandono de negligência. De isolamento. Restam estes calhaus que visitamos e que neste momento se encontram num processo dinâmico de Disneylandização. Este ano, ainda tenho um certo prazer de calcar e tocar em algo que a partes ainda é genuinamente arquitectura Tajique. Mas nalguns pontos, é notório que estas muralhas foram demolidas por bulldozers e não cavalaria guerreira, para dar caminho a um novo parque de diversões étnicas. Deste topo, a paisagem é ainda assim incrível: um pântano aluvial estende-se largamente e a luz do ocaso banha-se no seu verde e nas suas águas. Várias passadiços em madeira desviam-se e contorcem-se neste espaço e apesar de artificial, o cenário é bastante apelativo às lentes. Combinando com o relevo elevado, este cenário variado e de aparente fertilidade quase resolve o mistério da razão pela qual alguém se instalar aqui. Apesar de fazerem parte do espaço do museu, foi dado as pastores livre acesso a esta planície húmida. A Arqueologia e pecuária casam-se naturalmente. A espaços, posso ver yurts. É-me estranho imaginar pessoas vivendo dentro de um museu, mas acho que é algo com o qual alguns estagiários se podem identificar. Na verdade, este desvio e esta visita valem acima de tudo por estas vistas, pelo passeio nas pastagens e pela oportunidade de chegar aqui ao final do dia, com o sol desaparecendo no horizonte, a luz dourada incandescendo o castanho claro baço da terra e das muralhas em algo de transcendente, Enquanto descemos para caminhar sob a planície, a fortaleza, num golpe de vista rápido, parece então imponente e quase renascida, criando na imaginação em fogo o seu esplendor numa altura em que Tashkurgan fora ponto essencial num qualquer recanto da civilização. Quase que apetece criar um rei guerreiro com uma desconhecida, mas depois lembro-me que a violação é crime e não quero ficar retido no sistema prisional chinês. Deixo isso para outros profissionais. A meio do caminho, uma placa informa-me de que cada segundo de viagem deve ser acompanhado de comportamento civilizado. Obrigado, Xi Jinping.
Claro que o problema dos locais pequenos é também a logística. Chega a hora de jantar e quase todos os lugares recomendados ou no Trip Advisor, esse conselheiro fiel do viajante ainda que nos ermos dos perdidos, estão lotados. Os que não estão apresentam mau ar. Pelo menos para alguns de nós. Outros acham aceitável. Há crispação. O Atta, nosso guia até no estômago, informa que há um paquistanês do outro lado de Tashkurgan. Um raio de esperança, excepto para mim, que gosto tanto de paquistanês como os paquistaneses gostam da Índia. Numa súplica, peço encarecidamente que se escolha outra coisa. Na verdade, estou desde a manhã com praticamente uma lata de atum e duas saquetas de belgas no estômago e apetecia-me comer algo mais. Mas não. O movimento pasquitanês cresce. Alguém chega ao ponto de me dizer que eu gosto de paquistanês, não sei o que digo. O que é fantástico, principalmente quando me tentam explicar que eu não sei o que o meu corpo me diz. é daquelas coisas que dá gosto ouvir e que gera, nos meus olhos, visões de ver aquela pessoas atirada às lavas do Krakatoa, depois de ter sido atropelada por um cortejo de Carnaval no Rio, logo a seguir a uma sessão de sodomia com as colunas do Partenon. Há ali um momento em que a minha paciência está naquele ponto, que alguns poucos conhecem, uma coisa muito parecida com a transformação de Super Guerreiro, excepto que não ficou louro. Simplesmente perco a total noção de decoro e começo a destruir verbalmente gente culpada e gente inocente. No entanto, faço um esforço e imagino na cara da pessoa portadora de tamanha idiotice uma bola de praia cheia na qual búfalos urinam alegremente, para logo de seguida abelhas virem picar com galhardia. A imagem sossega-me, uma calma quase budista preenche-me. Sinto.me revestido de ecumenismo e como um cordeiro sacrificial aceito que, para que se acalme um grupo que está lentamente a entrar em ebulição, eu me sujeite às agruras da fome. Sinto-me quase um Cristo, barbas visíveis, o sofrimento de toda a Humanidade sob os meus ombros, justificando assim as dores que regularmente sinto nas costas. Venha a nós o vosso Islamabad, as vossas cabras e borregos, o vosso arroz em caril com passas.
Há uma significativa comunidade paquistanesa em Tashkurgan. A fronteira com o seu país natal é já ali e quando atravessam para a China, provavelmente em busca de uma vida economicamente mais satisfatória, esta é a primeira cidade que encontram. Por aqui ficam, para não se afastarem muito dos seus e também porque podem ajudar outros conterrâneos. O "Jingdu" é um dos restaurantes mais cotados da cidade, ainda que isso por si queira dizer pevides. É um espaço pequenino, que me lembrou muito, em tamanho e ambiente, o "José Manuel dos Ossos", um tasco aqui de Coimbra onde se pode meter comida caseira ao bucho a preços apreciáveis. Tem quatro meses e chega. Este também é assim. Com algum jeito e engenho, cabemos todos e ainda sobra espaço para alguns clientes. Estes olham-nos com perplexidade, refugiando-se ocasionalmente nas profundezas da wifi. Escolhemos quatro ou cinco pratos para distribuir entre nós. Há pão na mesa, o que me agrada e salva. Lá fora, o frio irrompeu e uma noite escuríssima, acentuada pela pálida iluminação artificial da cidade, dão ao exterior um ar cadavérico de filme de terror. Enquanto petisco o que existe e o que o meu estômago tolera. penso na vida destas pessoas, isoladas como poucas, longe de tudo. Imagino-as a sair à noite. Uma daquelas deprimentes desolações de isolamento. Recordo-me de como já vivi aquilo noutros espaços. Lembro-me de ter passado um dia inteiro em Sandur sem vivalma que dissesse presente. E agora, enquanto escrevo isto, é inevitável reflectir nesta minha fama de intrépido habitante dos retiros, daqueles espaços onde só existe espaço e não gente. Se o meu gosto por eles é assim tão real, se filtra um certo asco que posso ter a pessoas no geral. As fotografias que tirei deste dia, na sua maioria, são de paisagens sem mão para dar. Mas regresso ao arroz com caril que comi no Jingdu e nesse momento, acho que só pensava em dormir. Um velhote entra e instala-se a festa. Abraça-se efusivamente ao dono do restaurante, estão ali uns segundos, quase que choram. Mais tarde, o senhor explica-nos que é um amigo do Paquistão, veio passar uns dias à China e lembra-o de casa. São amigos há décadas, mas desde que trabalha na China que não o viu. De súbito, tenho saudades de Portugal e penso em lugares, em pessoas. Penso em quem é minha casa, mas não abre a porta.
O único hotel decente nesta terra é o Crown Inn. Por entre a escuridão, desaguamos à sua entrada. Surpresa total: um grupo de chineses tajiques recebe-nos com calor, envergando faixas enormes com um "Welcome to Tashkurgan, people from Portugal" (confesso que não me recordo de tudo, mas era algo assim). Duas patuscas moças esticam uma bandeira de Portugal, que acredito bem que tenha pagodes e seja dos chineses, fingindo um patriotismo luso que só se encontra em jogadores de selecções desportivas. Inusitado e inesperado, é uma surpresa que sabe melhor do que o paquistanês e que compensa a falta de comida. De como até mesmo nas profundidades da longitude pode haver o crepitar do acolhimento, de como não estar em casa não tem de significar estar deslocado. Nestes desconhecidos, encontramos algo de parecido com conforto. Até torna a tarefa de tirar as malas do carro muito menos tão agradável e a noite menos fria. Não tão menos fria como o decote daquela moça que julgava que tinha ido ao Irão, mas ainda assim, não posso desvalorizar o que tenho em detrimento daquilo que me falta.
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