terça-feira, março 26, 2019

Perugrinação 17: Um Peru dentro do Peru


Há coisa de dois anos, o governo peruano foi peremptório em considerar o distrito de Lares como o mais pobre de todo o país. Isso é dizer algo num território nacional que cobre zonas desérticas, selva amazónica e montanha quase inóspita de Norte a Sul. Lares é um caso muito particular na geografia e economia peruanas. Se pesquisarem num mapa, apenas duas estradas chegam até à própria vila, sendo que não existe ligação entre ambas. Bizarro, mas verdade. Deve ser um dos poucos locais do país onde ninguém está de passagem: se vais a Lares, é porque quiseste lá ir; e se vais a Lares, isso significa que fizeste uma longa viagem onde nada encontras no caminho para além de casas abandonadas, árvores e pedras. A vila é pequeníssima. Tem um largo minúsculo e estreito, que faz as vezes de mercado, e a partir do momento em que saímos, estamos à nossa mercê de caprichosas estradas de terra, escravas do clima; se chove demasiado, desaparecem; e com um certo azar, é possível furar ou partir um eixo e esperar horas - se tivermos sorte - até que algum reboque se digne a aparecer para resolver a situação. Se de facto existir um cu do mundo, Lares candidata-se a ser uma das nádegas. É aqui, no entanto, que começamos a encontrar o verdadeiro passado do país, porque olhando a partir da janela do carro, encontro uma raridade: zero caucasianos. Em toda a volta, faces indígenas. São os verdadeiros descendentes das antigas civilizações americanas, comunidades quechuas de pessoas pobres, destino social da maior parte dos ameríndios dos países sul-americanos. É um problema comum a toda a América Latina, que este ano ganhou alguma visibilidade com o sucesso do filme "Roma" nos Óscares; mas acontece em todo o lado. O Brasil de Bolsonaro trata a questão com bulldozers e assobios para o lado quando milícias de agricultores consideram índios como um preço a pagar; a desatenção do governo do Perú opta pela simples incúria. Lares, com as suas casas baixas e de tijolo, é apenas o mais desenvolvido que esta área tem para oferecer. A grande fatia dos quechuas que aqui habitam existem em pequenas aldeias perdidas pelos montes que vemos ao longe, espalhados pela solitária altitude e na sua grande maioria vivendo acima dos quatro mil metros. Os acessos são perigosos e alguns deles desaparecem na estação das chuvas, que vai começar daqui a pouco tempo.

Mas viemos precisamente pela experiência de conhecer a vida autêntica dos Quechua. No Peru existem quase quatro milhões de falantes desta língua, na sua grande maioria herdeiros e descendentes da cultura. É a maior comunidade de todo o continente americano. Não são exactamente um povo com uma cultura uniforme e a língua é o seu maior elo de ligação, embora existam dezenas de dialectos diferentes, que tantas vezes são incompreensíveis a outros falantes. Fala-se que era este o idioma dos Incas, mas o certo é que alguns dos rivais deste império também o falavam. É a segunda língua oficial do país e os seus falantes espalham-se por uma boa parte do sub-continente. Defendem que, pelos critérios de designação válidos na Europa, existem afinidades culturais suficientes entre si para que se considerem uma nação com claros direitos a exigir independência ou pelo menos autonomia. A expressão "Nação Quechua" é bastante usual na política sul-americana, embora os efeitos práticos sejam reduzidos. Os Quechua foram quem mais sofreu com a mais recente guerra civil peruana na década de 80. Forças governamentais e revolucionários do Sendero Luminoso trataram-nos como carne para canhão, o que é compreensível pois os elementos destes grupos eram na sua esmagadora maioria brancos ou mestiços. Alberto Fujimori, último ditador do país, iniciou na década seguinte uma campanha de esterilização de mulheres que visou principalmente esta comunidade e outra indígena, os Aymara, num caso de selectividade racial óbvia. Mais recentemente, quando duas mulheres indígenas foram eleitas para o Parlamento e fizeram o seu juramento na sua própria língua, a Presidente do hemiciclo recusou aceitar a jura. Peru: um país que não é para todos.


A carrinha pára. Saio e vejo apenas um casebre de pedras amontoadas. No entanto, a paisagem em redor é demolidora. À minha frente, um estreito riacho, deslizando pelo planalto pantanoso, parece subir ao invés de percorrer o seu caminho normal porque conduz o meu olhar para uma montanha em terceiro plano, cabecinha coberta de neve, formato de vulcão que se tornou, nos meus olhos, já familiar na cordilheira andina. Está um céu azul impecável, o sol brilha, o silêncio é quase total e apenas se quebra quando alguns cães vêm investigar os estranhos. O Pedro desaparece no casebre e antes que regresse, saem de lá uns garotos, trajes coloridos, faces quechuas. Primeiro tímidos, depois puxam-nos a roupa e alguns de nós colaboram em brincadeiras e tropelias. Sendo eu alto, faço de carrosel voador a alguns, risos espalhados, genuínos, honestos. Miúdos que se divertem com tão pouco porque não têm muito mais, mas se calhar até possuem bastante na sua inocência. A identidade da cor é muito vincada nesta cultura, quando correm ou voam nos nossos braços, é como se o mundo fosse um prisma e estes garotos, em luzes, arrastam as suas coloridas roupas, alterando a realidade. Mas não vim aqui para estar com garotos, tirei férias disso precisamente. Aquela montanha atrai-me a atenção e afastando-me de tudo, fotografo. Estou na realidade o suficiente para escutar as notícias trazidas pelo Pedro: o pai dos garotos devia ser o nosso guia num trek curto até um lago de montanha; aparentemente, surgiu uma oportunidade de negócio para vender um carro, numa povoação que fica a umas horas dali, e não sabe se chega a tempo. Uma alternativa é procurada e enquanto espero, nada como uma latinha de atum para aconchegar o estômago. Umas tábuas servem de ponte improvisada sobre o riacho e é aí que me sento.


Quando acabo, a questão do guia está resolvida. Numa habitação próxima, um senhor idoso caminha na nossa direcção. Baixo, cara agredida pelo frio e pelas décadas, sorri-nos e fazendo mexer o seu poncho multicolor, escuta a proposta do Pedro, o nosso guia. Aceita a responsabilidade que caberia ao filho, como se a hospitalidade fosse um valor sacrossanto para a família e na ausência de um, a obrigação de outro é ocupar o seu lugar sem má vontade. O plano é fazer uma pequena caminhada, não mais do que quatro quilómetros, rumo a um laguinho que ficará algures entre as montanhas que vemos. Há um trilho cujo início é bem visivel, pronto a ser seguido. Livramo-nos do peso excessivo - os mais sábios entre nós - e estamos prontos a começar. Rapidamente percebemos que o entendimento que o senhor tem da função de guia é muito liberal. Aliás, a humilhação vai-se instalando gradualmente em mim quando assisto ao desaparecimento rápido em caminhada de alguém com pelo menos mais trinta anos do que eu. É certo que ele tem a vantagem de jogar em casa, mas ainda assim, para alguém que está a dobrar a metade da sua possível existência, não é nada moralizador. Olho para trás, no entanto, e descubro que sou primus inter pares. A restante pandilha andarilha, há uns minutos entusiasmada com as oportunidades fotográficas de elevação, perdeu o gás rapidamente e com ele o fôlego. Noto algum arrastar de pernas, respiração pesada, velocidade quase em marcha atrás. A cada quinhentos metros verifico a situação e há sempre um elemento a menos, que ou caiu num buraco ou reviu em baixa os seus planos para esta tarde. Sobramos quatro. A falar verdade, não me sinto particularmente cansado. Aprendi que muitas vezes o truque é meter um ritmo estável e que não incomode muito a vida. O meu instinto sabe também que o ar é mais denso, velcro dos brônquios. Sei por isso que tenho de me gerir; no entanto, entra em acção uma atitude irreflexa apenas possível quando se passam quase vinte anos num grupo de escuteiros. A ideia fixa de que numa caminhada ninguém fica para trás. Sinto que ainda que chegue ao fim, a minha caminhada não fica completa se não ajudar os outros a chegarem lá comigo. Consciente deste esforço duplo, diminuo o ritmo. Imediatamente atrás, a Joana segue também decidida e não me parece diminuída o suficiente para que me preocupe. A Cina e a Sofia dão-me mais inquietações e é nelas que me centro.


Com piadas e alguns insultos - eu disse que apoiava, mas nunca afirmei que o fazia de forma ortodoxa - faço sentir-lhes que não estão sozinhas e faço-me ponto de referência. Enquanto me observarem, sabem pelo menos que o caminho prossegue e que, de uma maneira mais ou menos torcida, o fim está ali ao virar do monte. Não é necessariamente verdade, mas acho que só quem faz ou fez caminhada entende o quanto o factor psicológico e a ilusão são fundamentais para se atingir o final. O sol desapareceu e o céu barra-se de nuvens cinzentas, a temperatura baixa, mas o verde, esse, continua baço, meio apagado. Uma certa neblina fantasmagórica envolve aquele grande monte vulcão que vi à hora do almoço, agora cada vez mais perto, lenta mas definitivamente. A Sofia e a Cina vão parando de forma mais frequente e a Joana sumiu. Quanto ao velhote, calculo que por esta altura esteja algures na Patagónia, a ver icebergues. Não quero que elas sintam que estou a arrastar-me por causa da sua dificuldade. A pena é tão desmoralizadora quanto o ácido láctico e como tal, também por interesse pessoal, a máquina fotográfica serve-me de pretexto para pausas. O vale que racha até Lares é soberbo, montes atrás de montes, pedra bruta, um desrespeito total pela regras da estética, mas fascinante. É o tipo de violência que aprecio. Passo por pequenos feudos, limitados por muros de pedra, onde ovelhas e lamas pastam e caminham, olhando-me sem se aproximar. O trilho desaparece um pouco neste ponto e procuro pelo menos uma alternativa. Não quero que as minhas duas ovelhas comecem a panicar. Entrevejo, mais por lógica do que por visão, um planalto algures na base da grande montanha. O lago não deve ficar longe. Pelo menos, é isso que lhes invento para levantar ânimo. Resulta, mas preciso de confirmar a minha dúvida. Invento um caminho em subida e quando estou prestes a chegar, vejo uns cem metros à minha frente o irredutível quechua, agitando os braços. Quer que o siga. Ya, agora queres que te siga... Eu respondo com os meus braços também e ele toma isto como uma deixa para voltar a sumir. No entanto, se ele aqui está, o final não deve ficar assim tão longe. Sempre controlando a minha distância para a Sofia e a Cina, galgo os metros finais e encontro, por fim, o objectivo. É como um disco muito ténue, fronteira entre a Terra e o Céu. A placidez dos meus olhos é ilusória, pois resulta precisamente de um lago que medita dentro de mim em mantras zen. Atrás de si, um bruto maciço impõe a sua lei, e o seu perfil ideal para fotografias. Por fim sento-me, a Joana está por ali e não se perdeu felizmente. Antes de tudo o mais, alimento-me. Não é atum, calma; uma saqueta de Belgas rumina-me os pensamentos, menos cansados do que eu, cheios de propósito em relação às saudades. Seguem-se fotos. O velhote, enquanto a Cina e a Sofia chegam, diz que tem uns assuntos a tratar. "Ganado", ri-se ele e contornando as margens do lago, descobre os segredos atrás de uma pequena elevação.


A Joana levanta-se. Põe-se a caminho, não quer atrasar-nos e assim como assim, lembra-se do caminho. Se ela cá chegou, também sabe voltar - e não fico a pensar muito nisto. As restantes duas tentam recuperar. A Sofia com melhor cara não desarma do seu casaco verde, uma folha pousada em altitude. A Cina, uma senhora com muitos anos nas pernas, dá ares de quem nos vais informar de que foi atropelada por um camião, e também um rebanho de vicunhas pelo caminho. Se não soubesse a verdade, a cara dela dava-me zero razões para duvidar. Espero que o senhor volte, mas passa uma meia hora e nada. Olho para o relógio e são quase quatro e meia. Calculo, baseado no cansaço delas, que vamos demorar pelo menos uma hora e um quarto até regressar à aldeia. É certo que descemos, mas as pernas não são as mesmas. Coloco-lhes esta preocupação e elas concordam: o melhor é ir embora. O homem conhece as fendas e as pedras muito melhor do que nós, aposto até que fala com elas e discute a prestação da selecção peruana no Mundial de futebol. Alguns minutos depois de abandonarmos o lago, começo a procurar a Joana, estamos num ponto elevado cuja vista alcança praticamente todo o caminho que fizemos. Não a vejo. A Sofia e a Cina devem estar a pensar no mesmo. "Onde está a Joana?" e é um pergunta que me fazem recorrentemente como se fosse eu o único olho numa terra de cegos. O certo é que não a encontro. É altura de uma opção heterodoxa. Em vez de procurá-la à minha frente ou acima de mim, desvio o olhar para o vale. Lá no fundo, a umas centenas de metros, um palito segue na mesma direcção que optámos. Só pode ser ela. Berramos e chamamos e nunca nos responde. Tento perceber que lógica a levou a tomar a decisão, para mais quando não há caminho evidente e a espera uma aventura por terrenos privados onde facilmente algum indígena a pode confundir com um trauma ressequido dos tempos coloniais. Portanto, agora o pseudo-líder tem de lidar com duas apreensões: assim no Céu como na Terra.


Ainda assim, isto parece ter dado um ânimo dobrado às cansadas moças. Talvez com vontade de reencontrar a Joana e sabê-la em segurança, aumentam um pouco o passo. Faço-lhes ver que isto é também importante pela súbita queda da noite nestas altitudes. Entretanto, somos apanhados pelo quechua geriátrico. Rapidamente se depara com a Joana e abanando a cabeça, chama-lhe maluca e talvez anteveja que mais à noite, alguns dos seus amigos lhe chamarão à pedra pelo ultraje, a honra da família em risco. Imagino-o arrependido por sair de casa nesta tarde, podia ter ficado descansadinho a brincar com os netos ou simplesmente a dormir a sesta. Rica vida, suspira ele, mas não é para mim. A partir daqui, o caminho melhora e torna-se muito óbvio por onde seguir. Sem nunca perder as minhas ovelhinhas, a memória natural do caminhante ajuda-me e chegamos à comunidade sem problemas. A Joana ainda vai demorar mais uns minutos. Reencontramos os desistentes, que nos contam as suas maleitass e de como a sua tarde se passou com as crianças. Fotografar humanos... Bolas, que alergia. Afasto-me um pouco e massajo as minhas pernas. Nada mau, aguentei-me como deve ser e não passei vergonha. Para mais, guardo na memória outro cenário montanhoso de tesouro, precioso como todos aqueles que nos definem. Durante os meses seguintes, aquela montanha bem definida e com personalidade aparecerá várias vezes no pensamento, quando precisar de um refúgio. É como um braço no ar que responde às perguntas que a comunidade Quechua faz aos seus múltiplos deuses, sem que estes se dignem a responder. Eu permaneço na dúvida; mas afinal é isso que me leva a caminhar e de certa forma, espero nunca encontrar as respostas.

quarta-feira, março 13, 2019

Perugrinação 16: Soltar



Onde é que tínhamos ficado? Ah, os meus intestinos. Quanto a isso... Ora, mal senti o espasmo de convulsão, soube de imediato que seria impossível adiar a vinda ao mundo das minhas últimas refeições sob a forma de composto orgânico. Achei por bem, porque me ensinaram, ainda assim, algum decoro, guardar para mim esta informação tão pessoal e apenas transmissível de maneiras particularmente nojentas. O grupo juntou-se e entrando no parque arqueológico, seguiu em fila, falando e rindo. Este que vos escreve deixou-se ficar um pouco na rectaguarda. Numa análise rápida e cirúrgica, a beira da estrada não convidava ao alívio e como tal, sobrava apenas a esperança que algures no amontoado de casas à minha frente existisse, de uma qualquer maneira, um WC. Tal verificou-se, mas, crueldade, as portas pareciam trancadas e sinceramente, estava a acumular demasiada tensão em mim para desperdiçar segundos à procura de jeitos e trejeitos de abrir fechaduras. Pânico. Entretanto, já não via gente. É preciso acrescentar que este é um daqueles locais arqueológicos que qualquer português pode considerar como seu, no sentido em que está mal sinalizado e não aparenta ter visitantes. Nem sei bem quem aqui viveu, mas outras prioridades tomam o lugar da minha curiosidade. Num passo rápido, quase de marchador olímpico, encontro o trilho que conduz o visitante pelas atracções, sem que, infelizmente, me depare com dinossauros qual Parque Jurássico. Melhor para mim: no filme, o advogado que se enfia na casa de banho acaba no estômago de um tiranossauro. É então que uma curva surge prometedora. O trilho guina para a esquerda, mas é a direita, por uma vez na vida, que me interessa. Há um declive súbito no qual me posso esconder e abrigar de olhares alheios. Não dá para aguentar muito mais e terei de improvisar este esconderijo. É agora.


Antes de agachar, baixo as calças. Célere, confirmo que trouxe um pacote de lenços. Aos quatro metros de altitude, arreio o calhau. Bato o meu recorde de verticalidade escatológica, embora isso me interesse pouco neste momento. Apenas aquela sensação de beatitude que acontece sempre que o meu tracto intestinal descobre um escape. O que me leva a referir esta aventura, porque parece haver sempre um evento escatológico em cada uma das minhas viagens - e nesta estamos já no segundo - são três pequeninos factores. O primeiro, importantíssimo, é a magnífica paisagem. Se existisse o desporto de observação profissional a partir de ponto de defecação, estava na Champions. A foto acima foi tirada durante a acção, uma vista incrível, com o friozinho raspando as nádegas e os olhos bem presos nas montanhas, picos nevados, um contorcionismo rochoso daqueles que alegra. Sim, estava a cagar no mato e a tirar fotos das montanhas. Que foi, não se podem juntar dois prazeres num só momento? Quem disse? E só não tirei os phones pronto a escutar música apenas e só porque não me recordei. Por momentos, e só me lembrei disso à posteriori, esqueci mesmo que estava naquela situação íntima, abstive-me por completo do lado lógico. É o quão espectacular se tornou o instante; o segundo factor acordou-me deste hipnotismo, quando olhei para um barulho que crescendo atrás de mim, estourou num "Ai não" e alguém, nem sei bem quem, está em posição de me apreciar em momento de fealdade, ainda que tenha o meu rabo numa conta não muito decrépita. Fleumático, reajo com indiferença: não há-de ser a primeira vez que a pessoa vê nádegas na vida. Para culminar, no meio da comoção, entre aguentar-me de cócoras, controlar uma respiração ofegante porque estou aos quatro mil metros de altitude e ser apanhado de surpresa num acto natural, toco sem intenção numa lente a meu lado, que intenta decidida pela ribanceira abaixo. Engulo em seco, assisto aos saltos e catrapins do objecto, que a certo ponto desiste da viagem e se aloja num pequeno buraco. Enquanto trato de me limpar, penso que talvez esta viagem ao Peru, depois da desgraça no deserto, talvez seja um funeral valquiriano para o meu equipamento fotográfico. Calças apertadas. Embora não pareça pelo que acabo de fazer, respeito demasiado a memória histórica para deixar os dejectos à vista de qualquer visitante... ainda que, provavelmente, o próximo só apareça daqui a duas luas novas. Um largo calhau serve-lhe de túmulo, paz ao seu cheiro. Agora, a lente. Pego-lhe, retiro-a do saco protector, tudo ok, tudo funcional. Bem, uma merda ao invés de duas.


A reserva arqueológica de Ankasmarka é o que resta de uma antiga cidade Inca que subia a montanha desde Calca. O ponto em que nos encontramos é apenas um de vários conjuntos de casas cujo perfil posso vislumbrar se observar a linha que daqui segue até ao vale. Gajos de fôlego, os Incas. O explorador espanhol Cristobal Molina, foi o primeiro europeu a narrar os modos de vida e localização dos habitantes da cidade. Contava que num passado longínquo, estes eram muito supersticiosos em relação às estrela, crendo com toda a piedade que um grupo delas em particular lhes anunciava que um dia o mundo seria destruído através de água. A cidade surgiu nesta altitude porque um pastor, ouvindo este aviso constante, reuniu a família e mantimentos e construiu uma casa no ponto mais alto possível, para que quando o dilúvio tombasse dos céus, a morte não lhe chegasse húmida. E assim chegou a catástrofe, cobrindo toda a Terra excepto os pontos mais altos dos Andes. O pastor sobreviveu e os seus seis filhos repovoaram o que sobrou. Ao contrário do que pensamos, lendas como esta não são exclusivas de Noé e da herança judaico-cristã, embora desconfie que a razão pela qual o explorador espanhol a incluiu no seu livro tenha sido para ligar, de alguma maneira, estes povos americanos com o bom nosso senhor jesus cristo.. Se pegarem num livro de qualquer mitologia mundial, é quase certo que encontrarão uma narrativa diluviana, o que sempre me levou a pensar que algures, num passado muito distante e já com seres humanos formados, o nosso planeta se cobriu de facto de água e a partilha destas histórias nada mais é do que o reflexo de uma consciência jungiana que todos partilhamos. Sim, é paleio científico, mas passei um parágraof inteiro a falar de defecação. É possível equilibrar. A mesma lenda recolhida por Molina conta que apenas uma espécie animal previu esta catástrofe: os llamas. É por isso que pastam sempre no topo dos montes, tristes pela desgraça, temendo que esta se repita e desta vez os condene. Hoje em dia, o local foi abandonado por todos, menos pela memória e a reflexa preocupação do governo peruano pela preservação de tudo o que tenha a ver com os seus famosos antepassados, ainda que quase ninguém mostre interesse em Ankasmarka. Existe uma excepção.  Funciona aqui ocasionalmente um projecto comunitário de tecelagem que traz aqui com regularidade conhecimento ancestral sobre roupa inca por parte daqueles que, já antigos, ainda se recordam das técnicas artesanais. Às vezes, vêm até aqui, sentam-se junto às casas, vestuário colorido, uma saia e um xaile que pode servir de cobertor para exposição das peças e trabalham. Se tivermos sorte, apanhamos um em flagrante esforço.


E temos sorte. Uma dupla de mãe e filha alapou-se junto ao trilho antes que este dê por si num miradouro. A seu lado, um bébé, atulhado num poncho azul, laranja, amarelo e vermelho, com um chapéu chuyo a condizer. Ri-se muito, o garoto; alguns de nós, claro, querem tirar fotos. Apenas observo. Vocês já me conhecem, pessoas não costumam ser o tema das minhas fotografias. No entanto, a excitação no garoto é tão genuína, vendo alienígenas de pele branca e sem os olhos amendoados, quase orientais, que caracterizam os indígenas Quechua, ali à sua frente e ele diverte-se, pensa que saíram de alguma história de faz de conta que lhe contaram antes de dormir. O espectáculo fica para trás enquanto caminho para o miradouro. A vista sobre o vale é extraordinária. É este o meu elemento, os pontos altos, as vistas onde o fôlego só não se tira porque estamos de facto no local onde só as aves conseguem respirar como deve ser. Ou descendentes que nos genes Quechua encontram a resistência à falta de oxigénio. Uma navalha rasgou a montanha e criou uma gigantesca garganta até Calca. A pedra castanha amarelou do sol que bate forte, ainda que sinta frio. O céu azul, os picos altos em trezentos e sessenta graus... É um convite a que me sente e aceito. O trilho continua ainda, até umas casas circulares sem telhado, mas por agora, quero o meu tempo, quero viver aqui nestes segundos que já passaram enquanto outros chegam. Com calma, retiro a máquina fotográfica, finjo que me interesso, namoro esta esplêndida visão num flirt que me aquece o sangue. Vários instantes registados no cartão de memória, mas o mais importante é aquela sensação que procuro sempre nestas viagens - estar vivo. Lembro-me de que cheguei a Lima com o meu interior em permanente decadência; mas os grandes espaços, a sensação de liberdade do olhar, a simples inércia não forçada, desejada e geradora de sorrisos, anula esse sentimento. Sei que não durará muito tempo, em mim a felicidade costuma ser a abelha que uma vez espetado o ferrão se condena a uma morte rápida; mas aqui sentado, acho que consigo fingir o suficiente para pensar que sou feliz, que consigo sê-lo. Penso em todos aqueles que me fingem que a vida é boa. Ao longe, eu e tu beijamo-nos sem que ninguém mais veja. Eu só queria dançar contigo sem corpo visível - palavras que nenhum de nós escreveu mas que se tornaram nossas, ainda que o nosso livro esteja fechado. Estou no meio do Peru, em nenhures e tudo o que me ocorre és tu. Sempre tu. A falta de oxigénio faz das suas.


Algum tempo depois, regressamos à carrinha. A estrada de pálido alcatrão continua a subir a montanha, uma serpentina na água que não flui. Curva segue curva, pela janela calo a paisagem, capto-lhe as mudanças, os planaltos, a sensação de que cada vez mais os metros apontam para cima. Quando a subida culmina, voltamos a parar. Cá fora, o corpo pesa. Quatro mil quatrocentos e cinquenta metros acima do nível do mar. Nos próximos dias irei habituar-me a esta altitude. E superá-la até. Neste momento, o meu corpo gere tudo isto com cuidado. Enquanto os meus colegas tiram fotos da porta que se abriu à nossa frente, aberta de par em par, uma paisagem que se esgueira sibilante pela rocha que gradualmente perde altura, a maior cobra que vi na vida, mexo os meus pés em direção a um pequeno topo do lado esquerdo da estrada. Parece-me o local ideal para capturar ambos os lados da montanha. Subo a custo, cada metro cansa-me, um passo parecem vinte, demoro a encontrar um ritmo a que possa chamar de confortável. Pedra bruta. Demoro alguns minutos e quando olho para trás, sou imitado e a dificuldade é partilhada. No meu objectivo, a máquina e eu voltamos a namorar o que a vista alcança. Os cumes montanhosos ainda guardam neve e o sol que nela reflecte dá à luz luzes novas. Como já devem ter adivinhado, estou a escutar Einaudi, "Time lapse" em loop. Nem ligo muito ao que os meus outros colegas fazem. Sei que me dá má reputação, mas estes são momentos em que não estou para ninguém. Vim aqui por isto. A espaços, nem penso. É o quão milagroso este firmamento bem terreno consegue ser. A minha voz prefere descansar, as minhas mãos tremem um pouco, mas não de frio, alguma excitação talvez, a sina de possuir uma sensibilidade tal que se deixa comover com o que a Natureza projecta sem câmara, mas também sente as dores do sentimento com uma carga quase pornográfica. Dançam em mim, quase em valsa, estas duas emoções díspares, o completo frenesim em ebulição de estar vivo, o angustiante desânimo do que desejo e não tenho nem terei. Nas entrelinhas de tudo o que escrevi está agora, passa esta corrente gélida também, da dor que não tem silêncio, de uma sirene que grita enquanto nada digo, nem exprimo. Este ponto, Abras de Lares, reúne ambos, com dificuldade, à força, e as negociações não surtem efeito. Por muitos milagres que as montanhas operem, este não será um deles.

No regresso à carrinha, não consigo desligar deste binómio que me define. Fugazes instantes em que me sinto, de facto, com sentido e o sentido proibido que me põe fora do convívio com o mundo. Quero calar tudo isso, quero calar-te acima de tudo, mas nem o oxigénio rarefeito me ajuda. Estou no topo, mas também aí existe um fundo, quase sem si mesmo, sem regresso garantido. "Vamos agora para Lares", diz o Pedro, "se enjoarem com facilidade, preparem-se que a estrada é acidentada" e eu preparo-me, não quero fazer o hat-trick do canto gregoriano. Sempre sem retirar os auscultadores, fecho os olhos. Não para evitar projectar o que quer que seja. Mais para fechar em mim um turbilhão muito mais indigesto: o paradoxo que me enche. Não tenho esperanças de resolvê-lo no Peru. Para fazê-lo, concluo, era
preciso ter galo.

quarta-feira, março 06, 2019

Perugrinação 15: Momentos mudos


Parece bizarro notar que num país com mais de um milhão de quilómetros quadrados, o Peru possua apenas quatro linhas de comboio; mas diz muito sobre o quotidiano do mesmo que a mais longa dessas linhas seja exclusivamente para uso turístico. A Peru Rail garante essa ligação, saindo de Água Calientes e terminando em Puno, a Sul, localidade de acesso a todos aqueles que pretendem usufruir do Lago Titicaca, cujo extremo mais setentrional se localiza em território peruano. Como em praticamente todos os países onde o investimento privado tomou conta das opções políticas, o comboio deixou de ser, ao longo do século XX, o meio de transporte importante que uma vez foi, atravessando o país de uma ponta à outra. É algo a que nós, portugueses, estamos bem habituados. Na cidade que tem sido parcialmente minha nestes dois últimos anos, e falamos de uma capital de distrito, existe o serviço apenas duas vezes por dia - uma viagem de ida e outra de regresso - em horários que não dão jeito a quem quer que seja. Perde-se algum encanto, porque não sendo o mais prático dos transportes, o comboio é certamente o mais romântico, nostálgico, capaz de gerar em nós instintos Proustianos. A única companhia que opera comboios na pátria de Machu Picchu é a PeruRail e ainda que garanta a cobertura de menos de 20% do território, transforma todo o serviço num deslumbre para turistas.  Na estação de Águas Calientes, uma voz em castelhano informa-nos da chegada das carruagens à linha. à entrada de cada uma, somos recebidos por dois funcionários impecavelmente fardados, com vestimentas de deseign criativo, branco e de linhas bordeaux. O vagão azul parece saído de um mundo smurf, mas no interior, a decoração é sóbria, onde em paredes beje desenhos de mapas antigos do Peru. Sou levado ao lugar por uma simpática jovem com menos uns dez anos do que eu, cujo inglês é comparável ao meu domínio do russo. Os bancos são confortáveis e recuam os passageiros no tempo. Não sei se propositadamente ou porque o orçamento ferroviário do Peru dá apenas para comprar uma caixa de pastilhas e um chupa, as carruagens evocam a antiguidade e quando o comboio arranca, chia e treme mais do que a antiga automora que fazia a ligação entre Coimbra e a Lousã. A velocidade é de apreciação da paisagem, algo difícil com o temporal que lá fora varre as vistas, e cada paragem uma maneira de fazer os pulmões esgueirarem-se por entre as frinchas das costelas.


A mim, nem me incomoda. O meu corpo, depois da excitação de ter visitado uma das "sete maravilhas do mundo moderno", recorda-se que esta brincadeira começou às três da manhã num exíguo quarto de hotel e que sou caloteiro de horas de sono. O embalo da viagem convida claramente ao pagamenro da dívida e num percurso que demora hora e meia, apago mais vezes do que as costumeiras. O conforto dos bancos apela a que simplesmente me instale e desligue o interruptor. Quando acordo, estamos perto da nossa estação e não me sentido recuperado, sinto-me que dei a mim próprio mais algumas horas de coerência para suportar o resto do dia. Descemos em Urubamba, mas ainda não é aí que pernoitaremos. Mais uma hora de viagem de carrinha conduz-nos a um Eco Lodge onde somos recebidos por uma família conhecida do Pedro. O lodge compõe-se de várias pequenas casinhas, cada uma delas abastecida por energia renovável e um sistema de canalização que aproveita a água. Parte dos produtos usados nas refeições são cultivados ali pela própria família. Cumprimentamo-los, antes de, por fim, gozarmos de um pequeno tempinho de morte temporária e precisa. Quando nos dirigimos para a sala de jantar, o Jorge, o meu constante companheiro de quarto durante a viagem, repara num bólide amarelo que descansa numa garagem improvisado com quatro paus e um telhado de zinco. Não consegue seguir caminho sem admirar as curvas, o design e me informar, um leigo de automobilismo, que se trata de um Mazda bastante popular nos anos 80, famoso por ter participado em provas de rali. "Caramba, isto é um RX", e fica tão maravilhado que pressinto problemas futuros com a polícia local e acusações de furto qualificado. Ao chegarmos à sala, voltamos a saudar a família. Um pai e uma mãe com quatro filhos. Num sofá mais afastado, uma senhora velhota diz olá, mas continua a ver as notícias numa televisão pequena. Já nos esperam alguns aperitivos, enchidos, alguns queijos, saladas, para petiscarmos. O jantar é arroz com carne e peixe, à escolha de quem quiser. Cai-nos muito bem, até porque eu, pessoalmente, sinto o meu corpo tão pesado e tão vazio em simultâneo que comida quente, feita ali mesmo com o cuidado caseiro, vem resolver toda  uma série de problemas. Antes de finalmente poder regressar ao meu bungalow, o Jorge não resiste e volta ao romance com a sua loura metálica. É apanhado no acto pelo putativo dono do veículo, o patriarca. Confessa-nos que é um daqueles projectos em continuação. Comprou a carcaça base numa sucata e nos últimos meses tem vindo a recuperá-lo, pois recordava-se de, em novo, assistir a a provas de rali passando perto de sua casa e ficar fascinado com aquele Mazda. Sempre sonhou ter um e agora, cumpriu o sonho. O Jorge gaba-o, depois ao veículo. Por momentos, penso que va cravar-lhe uma voltinha, mas não chega a esse ponto.


Despertar na manhã seguinte às seis e meia. Há um dia muito comprido que nos espera e começa precisamente no mercado de Calca, a vila mais próxima. Localizada no Vale Sagrado, não é particularmente turística, mas o Pedro insiste que nos ambientemos um pouco ao mercado, espaço onde chegam pessoas de toda a região, para que assistamos ao lado mais genuíno desta população próxima dos indígenas Quechuas, aqui sem tiques de exibicionismo excursionista. Este ponto de venda funciona como centro ecnómico de todos os pequenos produtores da região. É domingo e logo pelas oito da manhã, já está cheio de gente que traz consigo acima de tudo comida e tecidos. Os menos autêncitos tmbém carregam bugigangas várias que deverão ter sido produzidas no Peru, mas via Hong-Kong. Entre caras sorridentes e desconfianças latentes, vou caminhando devagar, tentando mostrar que não venho aqui para estragar o dia a ninguém, embora, estamos, a falar de mim, essa é semre uma possibilidade séria. Com a memória das minhas aventuras num mercado de gado em Karakol, recordo como estas pessoas mais simples podem encarar uma máquina fotográfica com declarado horror; mas sou recebido com curiosidade e no máximo, vergonha natural. Não peço poses, não peço abébias: só licença e autorização para captar momentos e assim sigo. Vê-se de tudo um pouco, desde bancas exclusivamente de sapatilhas, até velhinas que cortam pedaços de pimentos nos dão a provar. A maior parte das mulheres passeiam o Montera, um chapéu típico quechua, vestindo a Llicla, um poncho colorido à múltipla escolha, que as agasalha e protege também. Garotos correm por todo o lado, um pede-me que abra um pouco as pernas para rastejar por baixo de mim. Não têm medo, sorriem e brincam, volta e meia regressam à banda de onde saíram e voltam novamente a deambular. Alguns deles têm o tamanho de miudagem de sete anos, mas quando lhes descobrimos a cara, envelheceram trinta. O ar da montanha não deve fazer assim tão bem. Não se escuta música, mas barulho de vozes. Quase niguém grita pregões e os espaços estão bem definidos entre carne, peixe, verduras e tralha. As bancas são de madeira e ocasionalmente, há pequenos botequins de quatro paredes de metal. Num segundo andar, encontro uma larga sala, com duas bancas corridas de pedra, onde gente vê televisão e come cança e uma sopa estranha que mistura caldo de pato cozido com ervas aromáticas. Olho para o ecrã e passam as notícias, uma delas anuncia que foi recentemente aprovada no Parlamento uma Lei Mulder. Concluo que o Universo joga aos dados e me tocou a vez. No centro da sala, uma caixa de vitrais tapa a estátua de uma santa. Como pano de fundo, montanhas brutas. Ainda assim, sinto que não estou totalmente nas profundidades arcaicas deste Peru. Horas mais tarde, virei a confirmar que esta sensação é verdadeira.


No fim da visita, a ideia é regressarmos às carrinhas e subirmos a estrada que serpenteia a montanha sobranceira a Calca, a Suhasiray, rumo a Cuncani, uma exígua povoação completamente entalada em montes, recôndita, quase intocada. O dia soalheiro convida a passeio e a viagem continua. Em nosso redor, altas rochas compactas nem fazem sombra, por muito altas que sejam. A estrada carrega-se de curvas, umas ao enfim de outras, mas o condutor lida com elas suavemente, a velocidade cruzeiro. Nos meus ouvidos, música rouba-me das pessoas, mas coloca-me ainda mais no centro daquilo que procurava quando passei os olhos pelas imagens peruanas: as montanhas. Respeito-as, mas namoro-as, sei que me retribuem mais do que qualquer outra pessoa na paixão que lhes tenho. Quero captar o seu perfil e rosto, em linhas de definida atracção, trazê-las para Portugal comigo em algo mais do que a minha mente, mostrar-vos, atrair o vosso desejo para este canto do mundo. No mais, escrevo sobre os interstícios da viagem, os momentos de transição, as pequenas que se treslêem e ficam de fora do que se conta depois. Faço dos grandes cenários e dos locais conhecidos, dos Machu Picchus e Nazcas destas andanças; mas pelo meio, de um lado para o outro, existem pessoas e estórias pequenas, locais onde nos rodeamos do que é genuíno, aquilo que não chega em fotos, os transportes e as viagens de carro, aquilo de que mal escrevo quando os poucos que consomem estas crónicas absorvem. São os momentos mudos, porque raramente lhes dou voz. Mas hoje dei. De mercados e projectos tão simples quanto recuperar carros da nossa infância, os sonhos comuns de gente incomum porque os concretiza, recuar no tempo numa voltinha de comboio. As coisinhas que preenchem e ainda assim não chegam para tapar aquele buraco que sorve tudo, que não se cala e pára, que exige mais e mais nunca se contenta. A ideia de que alguma vez eu possa ficar satisfeito com a vida esvai-se, é fumo. A certeza de que não tenho o que quero é permanente. Pensar em ti, em ti mesma, e nunca alcançar o desígnio de acordar a teu lado, de partilharmos o que é meu e teu, de me fazeres um pouco mais, dói-me muito mais do que as pregas da viagem. Mas existe e reflecte-se em tudo, nas montanhas e no mar, nas cidades e nos descampados, nas rugas das pessoas, nas lágrimas que nunca me denunciam porque não deixo. Um outro género de momento mudos.

Paramos então. O topo da montanha não surge, logo isto não está no programa. Do lado oposto ao do nosso estacionamento, uma placa anuncia o Parque Arqueológico de Ankasmarka. O Pedro não sabe o que ali está, mas temos algum tempo a matar e nunca se sabe bem o que se encontra nos intervalos do planeado. Oportunidad epara esticar um pouco as pernas. A máquina vem comigo, ao que parece ainda ali queimaremos uma horinha. Tudo bem. A trezentos e sessenta graus, a minha fome de altitude mais do que fica saciada. Pressinto um festim para os meus olhos. Subindo a estrada, uma velhinha quechua traz as suas cabras. Saudações e ela segue, as cabras também. E é então que mais uma vez, das profundezas da minha escatologia pessoal, um trovão me rasga de alto abaixo e culmina nos meus intestinos. O rimbombar de séculos não se ouve pelos montes, mas eleva-me o pânico. Uma das minhas nádegas fala claramente para a outra: "vai haver merda entre nós".