terça-feira, março 26, 2019
Perugrinação 17: Um Peru dentro do Peru
Há coisa de dois anos, o governo peruano foi peremptório em considerar o distrito de Lares como o mais pobre de todo o país. Isso é dizer algo num território nacional que cobre zonas desérticas, selva amazónica e montanha quase inóspita de Norte a Sul. Lares é um caso muito particular na geografia e economia peruanas. Se pesquisarem num mapa, apenas duas estradas chegam até à própria vila, sendo que não existe ligação entre ambas. Bizarro, mas verdade. Deve ser um dos poucos locais do país onde ninguém está de passagem: se vais a Lares, é porque quiseste lá ir; e se vais a Lares, isso significa que fizeste uma longa viagem onde nada encontras no caminho para além de casas abandonadas, árvores e pedras. A vila é pequeníssima. Tem um largo minúsculo e estreito, que faz as vezes de mercado, e a partir do momento em que saímos, estamos à nossa mercê de caprichosas estradas de terra, escravas do clima; se chove demasiado, desaparecem; e com um certo azar, é possível furar ou partir um eixo e esperar horas - se tivermos sorte - até que algum reboque se digne a aparecer para resolver a situação. Se de facto existir um cu do mundo, Lares candidata-se a ser uma das nádegas. É aqui, no entanto, que começamos a encontrar o verdadeiro passado do país, porque olhando a partir da janela do carro, encontro uma raridade: zero caucasianos. Em toda a volta, faces indígenas. São os verdadeiros descendentes das antigas civilizações americanas, comunidades quechuas de pessoas pobres, destino social da maior parte dos ameríndios dos países sul-americanos. É um problema comum a toda a América Latina, que este ano ganhou alguma visibilidade com o sucesso do filme "Roma" nos Óscares; mas acontece em todo o lado. O Brasil de Bolsonaro trata a questão com bulldozers e assobios para o lado quando milícias de agricultores consideram índios como um preço a pagar; a desatenção do governo do Perú opta pela simples incúria. Lares, com as suas casas baixas e de tijolo, é apenas o mais desenvolvido que esta área tem para oferecer. A grande fatia dos quechuas que aqui habitam existem em pequenas aldeias perdidas pelos montes que vemos ao longe, espalhados pela solitária altitude e na sua grande maioria vivendo acima dos quatro mil metros. Os acessos são perigosos e alguns deles desaparecem na estação das chuvas, que vai começar daqui a pouco tempo.
Mas viemos precisamente pela experiência de conhecer a vida autêntica dos Quechua. No Peru existem quase quatro milhões de falantes desta língua, na sua grande maioria herdeiros e descendentes da cultura. É a maior comunidade de todo o continente americano. Não são exactamente um povo com uma cultura uniforme e a língua é o seu maior elo de ligação, embora existam dezenas de dialectos diferentes, que tantas vezes são incompreensíveis a outros falantes. Fala-se que era este o idioma dos Incas, mas o certo é que alguns dos rivais deste império também o falavam. É a segunda língua oficial do país e os seus falantes espalham-se por uma boa parte do sub-continente. Defendem que, pelos critérios de designação válidos na Europa, existem afinidades culturais suficientes entre si para que se considerem uma nação com claros direitos a exigir independência ou pelo menos autonomia. A expressão "Nação Quechua" é bastante usual na política sul-americana, embora os efeitos práticos sejam reduzidos. Os Quechua foram quem mais sofreu com a mais recente guerra civil peruana na década de 80. Forças governamentais e revolucionários do Sendero Luminoso trataram-nos como carne para canhão, o que é compreensível pois os elementos destes grupos eram na sua esmagadora maioria brancos ou mestiços. Alberto Fujimori, último ditador do país, iniciou na década seguinte uma campanha de esterilização de mulheres que visou principalmente esta comunidade e outra indígena, os Aymara, num caso de selectividade racial óbvia. Mais recentemente, quando duas mulheres indígenas foram eleitas para o Parlamento e fizeram o seu juramento na sua própria língua, a Presidente do hemiciclo recusou aceitar a jura. Peru: um país que não é para todos.
A carrinha pára. Saio e vejo apenas um casebre de pedras amontoadas. No entanto, a paisagem em redor é demolidora. À minha frente, um estreito riacho, deslizando pelo planalto pantanoso, parece subir ao invés de percorrer o seu caminho normal porque conduz o meu olhar para uma montanha em terceiro plano, cabecinha coberta de neve, formato de vulcão que se tornou, nos meus olhos, já familiar na cordilheira andina. Está um céu azul impecável, o sol brilha, o silêncio é quase total e apenas se quebra quando alguns cães vêm investigar os estranhos. O Pedro desaparece no casebre e antes que regresse, saem de lá uns garotos, trajes coloridos, faces quechuas. Primeiro tímidos, depois puxam-nos a roupa e alguns de nós colaboram em brincadeiras e tropelias. Sendo eu alto, faço de carrosel voador a alguns, risos espalhados, genuínos, honestos. Miúdos que se divertem com tão pouco porque não têm muito mais, mas se calhar até possuem bastante na sua inocência. A identidade da cor é muito vincada nesta cultura, quando correm ou voam nos nossos braços, é como se o mundo fosse um prisma e estes garotos, em luzes, arrastam as suas coloridas roupas, alterando a realidade. Mas não vim aqui para estar com garotos, tirei férias disso precisamente. Aquela montanha atrai-me a atenção e afastando-me de tudo, fotografo. Estou na realidade o suficiente para escutar as notícias trazidas pelo Pedro: o pai dos garotos devia ser o nosso guia num trek curto até um lago de montanha; aparentemente, surgiu uma oportunidade de negócio para vender um carro, numa povoação que fica a umas horas dali, e não sabe se chega a tempo. Uma alternativa é procurada e enquanto espero, nada como uma latinha de atum para aconchegar o estômago. Umas tábuas servem de ponte improvisada sobre o riacho e é aí que me sento.
Quando acabo, a questão do guia está resolvida. Numa habitação próxima, um senhor idoso caminha na nossa direcção. Baixo, cara agredida pelo frio e pelas décadas, sorri-nos e fazendo mexer o seu poncho multicolor, escuta a proposta do Pedro, o nosso guia. Aceita a responsabilidade que caberia ao filho, como se a hospitalidade fosse um valor sacrossanto para a família e na ausência de um, a obrigação de outro é ocupar o seu lugar sem má vontade. O plano é fazer uma pequena caminhada, não mais do que quatro quilómetros, rumo a um laguinho que ficará algures entre as montanhas que vemos. Há um trilho cujo início é bem visivel, pronto a ser seguido. Livramo-nos do peso excessivo - os mais sábios entre nós - e estamos prontos a começar. Rapidamente percebemos que o entendimento que o senhor tem da função de guia é muito liberal. Aliás, a humilhação vai-se instalando gradualmente em mim quando assisto ao desaparecimento rápido em caminhada de alguém com pelo menos mais trinta anos do que eu. É certo que ele tem a vantagem de jogar em casa, mas ainda assim, para alguém que está a dobrar a metade da sua possível existência, não é nada moralizador. Olho para trás, no entanto, e descubro que sou primus inter pares. A restante pandilha andarilha, há uns minutos entusiasmada com as oportunidades fotográficas de elevação, perdeu o gás rapidamente e com ele o fôlego. Noto algum arrastar de pernas, respiração pesada, velocidade quase em marcha atrás. A cada quinhentos metros verifico a situação e há sempre um elemento a menos, que ou caiu num buraco ou reviu em baixa os seus planos para esta tarde. Sobramos quatro. A falar verdade, não me sinto particularmente cansado. Aprendi que muitas vezes o truque é meter um ritmo estável e que não incomode muito a vida. O meu instinto sabe também que o ar é mais denso, velcro dos brônquios. Sei por isso que tenho de me gerir; no entanto, entra em acção uma atitude irreflexa apenas possível quando se passam quase vinte anos num grupo de escuteiros. A ideia fixa de que numa caminhada ninguém fica para trás. Sinto que ainda que chegue ao fim, a minha caminhada não fica completa se não ajudar os outros a chegarem lá comigo. Consciente deste esforço duplo, diminuo o ritmo. Imediatamente atrás, a Joana segue também decidida e não me parece diminuída o suficiente para que me preocupe. A Cina e a Sofia dão-me mais inquietações e é nelas que me centro.
Com piadas e alguns insultos - eu disse que apoiava, mas nunca afirmei que o fazia de forma ortodoxa - faço sentir-lhes que não estão sozinhas e faço-me ponto de referência. Enquanto me observarem, sabem pelo menos que o caminho prossegue e que, de uma maneira mais ou menos torcida, o fim está ali ao virar do monte. Não é necessariamente verdade, mas acho que só quem faz ou fez caminhada entende o quanto o factor psicológico e a ilusão são fundamentais para se atingir o final. O sol desapareceu e o céu barra-se de nuvens cinzentas, a temperatura baixa, mas o verde, esse, continua baço, meio apagado. Uma certa neblina fantasmagórica envolve aquele grande monte vulcão que vi à hora do almoço, agora cada vez mais perto, lenta mas definitivamente. A Sofia e a Cina vão parando de forma mais frequente e a Joana sumiu. Quanto ao velhote, calculo que por esta altura esteja algures na Patagónia, a ver icebergues. Não quero que elas sintam que estou a arrastar-me por causa da sua dificuldade. A pena é tão desmoralizadora quanto o ácido láctico e como tal, também por interesse pessoal, a máquina fotográfica serve-me de pretexto para pausas. O vale que racha até Lares é soberbo, montes atrás de montes, pedra bruta, um desrespeito total pela regras da estética, mas fascinante. É o tipo de violência que aprecio. Passo por pequenos feudos, limitados por muros de pedra, onde ovelhas e lamas pastam e caminham, olhando-me sem se aproximar. O trilho desaparece um pouco neste ponto e procuro pelo menos uma alternativa. Não quero que as minhas duas ovelhas comecem a panicar. Entrevejo, mais por lógica do que por visão, um planalto algures na base da grande montanha. O lago não deve ficar longe. Pelo menos, é isso que lhes invento para levantar ânimo. Resulta, mas preciso de confirmar a minha dúvida. Invento um caminho em subida e quando estou prestes a chegar, vejo uns cem metros à minha frente o irredutível quechua, agitando os braços. Quer que o siga. Ya, agora queres que te siga... Eu respondo com os meus braços também e ele toma isto como uma deixa para voltar a sumir. No entanto, se ele aqui está, o final não deve ficar assim tão longe. Sempre controlando a minha distância para a Sofia e a Cina, galgo os metros finais e encontro, por fim, o objectivo. É como um disco muito ténue, fronteira entre a Terra e o Céu. A placidez dos meus olhos é ilusória, pois resulta precisamente de um lago que medita dentro de mim em mantras zen. Atrás de si, um bruto maciço impõe a sua lei, e o seu perfil ideal para fotografias. Por fim sento-me, a Joana está por ali e não se perdeu felizmente. Antes de tudo o mais, alimento-me. Não é atum, calma; uma saqueta de Belgas rumina-me os pensamentos, menos cansados do que eu, cheios de propósito em relação às saudades. Seguem-se fotos. O velhote, enquanto a Cina e a Sofia chegam, diz que tem uns assuntos a tratar. "Ganado", ri-se ele e contornando as margens do lago, descobre os segredos atrás de uma pequena elevação.
A Joana levanta-se. Põe-se a caminho, não quer atrasar-nos e assim como assim, lembra-se do caminho. Se ela cá chegou, também sabe voltar - e não fico a pensar muito nisto. As restantes duas tentam recuperar. A Sofia com melhor cara não desarma do seu casaco verde, uma folha pousada em altitude. A Cina, uma senhora com muitos anos nas pernas, dá ares de quem nos vais informar de que foi atropelada por um camião, e também um rebanho de vicunhas pelo caminho. Se não soubesse a verdade, a cara dela dava-me zero razões para duvidar. Espero que o senhor volte, mas passa uma meia hora e nada. Olho para o relógio e são quase quatro e meia. Calculo, baseado no cansaço delas, que vamos demorar pelo menos uma hora e um quarto até regressar à aldeia. É certo que descemos, mas as pernas não são as mesmas. Coloco-lhes esta preocupação e elas concordam: o melhor é ir embora. O homem conhece as fendas e as pedras muito melhor do que nós, aposto até que fala com elas e discute a prestação da selecção peruana no Mundial de futebol. Alguns minutos depois de abandonarmos o lago, começo a procurar a Joana, estamos num ponto elevado cuja vista alcança praticamente todo o caminho que fizemos. Não a vejo. A Sofia e a Cina devem estar a pensar no mesmo. "Onde está a Joana?" e é um pergunta que me fazem recorrentemente como se fosse eu o único olho numa terra de cegos. O certo é que não a encontro. É altura de uma opção heterodoxa. Em vez de procurá-la à minha frente ou acima de mim, desvio o olhar para o vale. Lá no fundo, a umas centenas de metros, um palito segue na mesma direcção que optámos. Só pode ser ela. Berramos e chamamos e nunca nos responde. Tento perceber que lógica a levou a tomar a decisão, para mais quando não há caminho evidente e a espera uma aventura por terrenos privados onde facilmente algum indígena a pode confundir com um trauma ressequido dos tempos coloniais. Portanto, agora o pseudo-líder tem de lidar com duas apreensões: assim no Céu como na Terra.
Ainda assim, isto parece ter dado um ânimo dobrado às cansadas moças. Talvez com vontade de reencontrar a Joana e sabê-la em segurança, aumentam um pouco o passo. Faço-lhes ver que isto é também importante pela súbita queda da noite nestas altitudes. Entretanto, somos apanhados pelo quechua geriátrico. Rapidamente se depara com a Joana e abanando a cabeça, chama-lhe maluca e talvez anteveja que mais à noite, alguns dos seus amigos lhe chamarão à pedra pelo ultraje, a honra da família em risco. Imagino-o arrependido por sair de casa nesta tarde, podia ter ficado descansadinho a brincar com os netos ou simplesmente a dormir a sesta. Rica vida, suspira ele, mas não é para mim. A partir daqui, o caminho melhora e torna-se muito óbvio por onde seguir. Sem nunca perder as minhas ovelhinhas, a memória natural do caminhante ajuda-me e chegamos à comunidade sem problemas. A Joana ainda vai demorar mais uns minutos. Reencontramos os desistentes, que nos contam as suas maleitass e de como a sua tarde se passou com as crianças. Fotografar humanos... Bolas, que alergia. Afasto-me um pouco e massajo as minhas pernas. Nada mau, aguentei-me como deve ser e não passei vergonha. Para mais, guardo na memória outro cenário montanhoso de tesouro, precioso como todos aqueles que nos definem. Durante os meses seguintes, aquela montanha bem definida e com personalidade aparecerá várias vezes no pensamento, quando precisar de um refúgio. É como um braço no ar que responde às perguntas que a comunidade Quechua faz aos seus múltiplos deuses, sem que estes se dignem a responder. Eu permaneço na dúvida; mas afinal é isso que me leva a caminhar e de certa forma, espero nunca encontrar as respostas.
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