quarta-feira, março 13, 2019

Perugrinação 16: Soltar



Onde é que tínhamos ficado? Ah, os meus intestinos. Quanto a isso... Ora, mal senti o espasmo de convulsão, soube de imediato que seria impossível adiar a vinda ao mundo das minhas últimas refeições sob a forma de composto orgânico. Achei por bem, porque me ensinaram, ainda assim, algum decoro, guardar para mim esta informação tão pessoal e apenas transmissível de maneiras particularmente nojentas. O grupo juntou-se e entrando no parque arqueológico, seguiu em fila, falando e rindo. Este que vos escreve deixou-se ficar um pouco na rectaguarda. Numa análise rápida e cirúrgica, a beira da estrada não convidava ao alívio e como tal, sobrava apenas a esperança que algures no amontoado de casas à minha frente existisse, de uma qualquer maneira, um WC. Tal verificou-se, mas, crueldade, as portas pareciam trancadas e sinceramente, estava a acumular demasiada tensão em mim para desperdiçar segundos à procura de jeitos e trejeitos de abrir fechaduras. Pânico. Entretanto, já não via gente. É preciso acrescentar que este é um daqueles locais arqueológicos que qualquer português pode considerar como seu, no sentido em que está mal sinalizado e não aparenta ter visitantes. Nem sei bem quem aqui viveu, mas outras prioridades tomam o lugar da minha curiosidade. Num passo rápido, quase de marchador olímpico, encontro o trilho que conduz o visitante pelas atracções, sem que, infelizmente, me depare com dinossauros qual Parque Jurássico. Melhor para mim: no filme, o advogado que se enfia na casa de banho acaba no estômago de um tiranossauro. É então que uma curva surge prometedora. O trilho guina para a esquerda, mas é a direita, por uma vez na vida, que me interessa. Há um declive súbito no qual me posso esconder e abrigar de olhares alheios. Não dá para aguentar muito mais e terei de improvisar este esconderijo. É agora.


Antes de agachar, baixo as calças. Célere, confirmo que trouxe um pacote de lenços. Aos quatro metros de altitude, arreio o calhau. Bato o meu recorde de verticalidade escatológica, embora isso me interesse pouco neste momento. Apenas aquela sensação de beatitude que acontece sempre que o meu tracto intestinal descobre um escape. O que me leva a referir esta aventura, porque parece haver sempre um evento escatológico em cada uma das minhas viagens - e nesta estamos já no segundo - são três pequeninos factores. O primeiro, importantíssimo, é a magnífica paisagem. Se existisse o desporto de observação profissional a partir de ponto de defecação, estava na Champions. A foto acima foi tirada durante a acção, uma vista incrível, com o friozinho raspando as nádegas e os olhos bem presos nas montanhas, picos nevados, um contorcionismo rochoso daqueles que alegra. Sim, estava a cagar no mato e a tirar fotos das montanhas. Que foi, não se podem juntar dois prazeres num só momento? Quem disse? E só não tirei os phones pronto a escutar música apenas e só porque não me recordei. Por momentos, e só me lembrei disso à posteriori, esqueci mesmo que estava naquela situação íntima, abstive-me por completo do lado lógico. É o quão espectacular se tornou o instante; o segundo factor acordou-me deste hipnotismo, quando olhei para um barulho que crescendo atrás de mim, estourou num "Ai não" e alguém, nem sei bem quem, está em posição de me apreciar em momento de fealdade, ainda que tenha o meu rabo numa conta não muito decrépita. Fleumático, reajo com indiferença: não há-de ser a primeira vez que a pessoa vê nádegas na vida. Para culminar, no meio da comoção, entre aguentar-me de cócoras, controlar uma respiração ofegante porque estou aos quatro mil metros de altitude e ser apanhado de surpresa num acto natural, toco sem intenção numa lente a meu lado, que intenta decidida pela ribanceira abaixo. Engulo em seco, assisto aos saltos e catrapins do objecto, que a certo ponto desiste da viagem e se aloja num pequeno buraco. Enquanto trato de me limpar, penso que talvez esta viagem ao Peru, depois da desgraça no deserto, talvez seja um funeral valquiriano para o meu equipamento fotográfico. Calças apertadas. Embora não pareça pelo que acabo de fazer, respeito demasiado a memória histórica para deixar os dejectos à vista de qualquer visitante... ainda que, provavelmente, o próximo só apareça daqui a duas luas novas. Um largo calhau serve-lhe de túmulo, paz ao seu cheiro. Agora, a lente. Pego-lhe, retiro-a do saco protector, tudo ok, tudo funcional. Bem, uma merda ao invés de duas.


A reserva arqueológica de Ankasmarka é o que resta de uma antiga cidade Inca que subia a montanha desde Calca. O ponto em que nos encontramos é apenas um de vários conjuntos de casas cujo perfil posso vislumbrar se observar a linha que daqui segue até ao vale. Gajos de fôlego, os Incas. O explorador espanhol Cristobal Molina, foi o primeiro europeu a narrar os modos de vida e localização dos habitantes da cidade. Contava que num passado longínquo, estes eram muito supersticiosos em relação às estrela, crendo com toda a piedade que um grupo delas em particular lhes anunciava que um dia o mundo seria destruído através de água. A cidade surgiu nesta altitude porque um pastor, ouvindo este aviso constante, reuniu a família e mantimentos e construiu uma casa no ponto mais alto possível, para que quando o dilúvio tombasse dos céus, a morte não lhe chegasse húmida. E assim chegou a catástrofe, cobrindo toda a Terra excepto os pontos mais altos dos Andes. O pastor sobreviveu e os seus seis filhos repovoaram o que sobrou. Ao contrário do que pensamos, lendas como esta não são exclusivas de Noé e da herança judaico-cristã, embora desconfie que a razão pela qual o explorador espanhol a incluiu no seu livro tenha sido para ligar, de alguma maneira, estes povos americanos com o bom nosso senhor jesus cristo.. Se pegarem num livro de qualquer mitologia mundial, é quase certo que encontrarão uma narrativa diluviana, o que sempre me levou a pensar que algures, num passado muito distante e já com seres humanos formados, o nosso planeta se cobriu de facto de água e a partilha destas histórias nada mais é do que o reflexo de uma consciência jungiana que todos partilhamos. Sim, é paleio científico, mas passei um parágraof inteiro a falar de defecação. É possível equilibrar. A mesma lenda recolhida por Molina conta que apenas uma espécie animal previu esta catástrofe: os llamas. É por isso que pastam sempre no topo dos montes, tristes pela desgraça, temendo que esta se repita e desta vez os condene. Hoje em dia, o local foi abandonado por todos, menos pela memória e a reflexa preocupação do governo peruano pela preservação de tudo o que tenha a ver com os seus famosos antepassados, ainda que quase ninguém mostre interesse em Ankasmarka. Existe uma excepção.  Funciona aqui ocasionalmente um projecto comunitário de tecelagem que traz aqui com regularidade conhecimento ancestral sobre roupa inca por parte daqueles que, já antigos, ainda se recordam das técnicas artesanais. Às vezes, vêm até aqui, sentam-se junto às casas, vestuário colorido, uma saia e um xaile que pode servir de cobertor para exposição das peças e trabalham. Se tivermos sorte, apanhamos um em flagrante esforço.


E temos sorte. Uma dupla de mãe e filha alapou-se junto ao trilho antes que este dê por si num miradouro. A seu lado, um bébé, atulhado num poncho azul, laranja, amarelo e vermelho, com um chapéu chuyo a condizer. Ri-se muito, o garoto; alguns de nós, claro, querem tirar fotos. Apenas observo. Vocês já me conhecem, pessoas não costumam ser o tema das minhas fotografias. No entanto, a excitação no garoto é tão genuína, vendo alienígenas de pele branca e sem os olhos amendoados, quase orientais, que caracterizam os indígenas Quechua, ali à sua frente e ele diverte-se, pensa que saíram de alguma história de faz de conta que lhe contaram antes de dormir. O espectáculo fica para trás enquanto caminho para o miradouro. A vista sobre o vale é extraordinária. É este o meu elemento, os pontos altos, as vistas onde o fôlego só não se tira porque estamos de facto no local onde só as aves conseguem respirar como deve ser. Ou descendentes que nos genes Quechua encontram a resistência à falta de oxigénio. Uma navalha rasgou a montanha e criou uma gigantesca garganta até Calca. A pedra castanha amarelou do sol que bate forte, ainda que sinta frio. O céu azul, os picos altos em trezentos e sessenta graus... É um convite a que me sente e aceito. O trilho continua ainda, até umas casas circulares sem telhado, mas por agora, quero o meu tempo, quero viver aqui nestes segundos que já passaram enquanto outros chegam. Com calma, retiro a máquina fotográfica, finjo que me interesso, namoro esta esplêndida visão num flirt que me aquece o sangue. Vários instantes registados no cartão de memória, mas o mais importante é aquela sensação que procuro sempre nestas viagens - estar vivo. Lembro-me de que cheguei a Lima com o meu interior em permanente decadência; mas os grandes espaços, a sensação de liberdade do olhar, a simples inércia não forçada, desejada e geradora de sorrisos, anula esse sentimento. Sei que não durará muito tempo, em mim a felicidade costuma ser a abelha que uma vez espetado o ferrão se condena a uma morte rápida; mas aqui sentado, acho que consigo fingir o suficiente para pensar que sou feliz, que consigo sê-lo. Penso em todos aqueles que me fingem que a vida é boa. Ao longe, eu e tu beijamo-nos sem que ninguém mais veja. Eu só queria dançar contigo sem corpo visível - palavras que nenhum de nós escreveu mas que se tornaram nossas, ainda que o nosso livro esteja fechado. Estou no meio do Peru, em nenhures e tudo o que me ocorre és tu. Sempre tu. A falta de oxigénio faz das suas.


Algum tempo depois, regressamos à carrinha. A estrada de pálido alcatrão continua a subir a montanha, uma serpentina na água que não flui. Curva segue curva, pela janela calo a paisagem, capto-lhe as mudanças, os planaltos, a sensação de que cada vez mais os metros apontam para cima. Quando a subida culmina, voltamos a parar. Cá fora, o corpo pesa. Quatro mil quatrocentos e cinquenta metros acima do nível do mar. Nos próximos dias irei habituar-me a esta altitude. E superá-la até. Neste momento, o meu corpo gere tudo isto com cuidado. Enquanto os meus colegas tiram fotos da porta que se abriu à nossa frente, aberta de par em par, uma paisagem que se esgueira sibilante pela rocha que gradualmente perde altura, a maior cobra que vi na vida, mexo os meus pés em direção a um pequeno topo do lado esquerdo da estrada. Parece-me o local ideal para capturar ambos os lados da montanha. Subo a custo, cada metro cansa-me, um passo parecem vinte, demoro a encontrar um ritmo a que possa chamar de confortável. Pedra bruta. Demoro alguns minutos e quando olho para trás, sou imitado e a dificuldade é partilhada. No meu objectivo, a máquina e eu voltamos a namorar o que a vista alcança. Os cumes montanhosos ainda guardam neve e o sol que nela reflecte dá à luz luzes novas. Como já devem ter adivinhado, estou a escutar Einaudi, "Time lapse" em loop. Nem ligo muito ao que os meus outros colegas fazem. Sei que me dá má reputação, mas estes são momentos em que não estou para ninguém. Vim aqui por isto. A espaços, nem penso. É o quão milagroso este firmamento bem terreno consegue ser. A minha voz prefere descansar, as minhas mãos tremem um pouco, mas não de frio, alguma excitação talvez, a sina de possuir uma sensibilidade tal que se deixa comover com o que a Natureza projecta sem câmara, mas também sente as dores do sentimento com uma carga quase pornográfica. Dançam em mim, quase em valsa, estas duas emoções díspares, o completo frenesim em ebulição de estar vivo, o angustiante desânimo do que desejo e não tenho nem terei. Nas entrelinhas de tudo o que escrevi está agora, passa esta corrente gélida também, da dor que não tem silêncio, de uma sirene que grita enquanto nada digo, nem exprimo. Este ponto, Abras de Lares, reúne ambos, com dificuldade, à força, e as negociações não surtem efeito. Por muitos milagres que as montanhas operem, este não será um deles.

No regresso à carrinha, não consigo desligar deste binómio que me define. Fugazes instantes em que me sinto, de facto, com sentido e o sentido proibido que me põe fora do convívio com o mundo. Quero calar tudo isso, quero calar-te acima de tudo, mas nem o oxigénio rarefeito me ajuda. Estou no topo, mas também aí existe um fundo, quase sem si mesmo, sem regresso garantido. "Vamos agora para Lares", diz o Pedro, "se enjoarem com facilidade, preparem-se que a estrada é acidentada" e eu preparo-me, não quero fazer o hat-trick do canto gregoriano. Sempre sem retirar os auscultadores, fecho os olhos. Não para evitar projectar o que quer que seja. Mais para fechar em mim um turbilhão muito mais indigesto: o paradoxo que me enche. Não tenho esperanças de resolvê-lo no Peru. Para fazê-lo, concluo, era
preciso ter galo.

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