quinta-feira, setembro 12, 2019

Fachinação 1: Um pequeno prólogo em forma de bico de obra


Não contava voltar à Ásia este ano. Fiz para mim próprio um regulamento de viagem e na lista impreterível de regras, sublinhei visitar um continente diferente por ano. Olhei para África, mas confesso que nada me puxou. A Oceânia no Inverno pode não ser exactamente a melhor hipótese e para mais, ainda que pertença a essa abastada classe da função pública que são os professores, decerto que gastei demasiado dinheiro na manutenção do meu iate. Não consigo explicar as minhas escolhas de viagem. Talvez no dia em que apresentar a mim mesmo argumentos racionais, deixe de viajar porque acabou o mistério. Bem sei que a razão e a ponderação são celebradas com purpurina e carpete vermelha, mas para mim, a vida ou tem um pouco de magia ou não vale a pena. Aprecio o toque do inexplicável nas costas, como quem chama a atenção e me diz "Estás lixado, vais decidir exactamente por aquilo que não deves e ainda por cima, vai-te parecer a ideia mais incrível e arrasadora dos tempos eternos e imemoriais". Sou um otário, basicamente, e até por mim próprio me deixo ser enganado. Necessito do indizível. Acho que é por esse motivo que tão facilmente deprimo; e também que quando dou por mim a pagar por uma aventura, penso trezentas vezes se não estarei a fazer asneira. Cada viagem uma asneira - é o lema que tenho e que carrego debruado a ouro no peito. Pois a asneira deste ano é a China. Sim, podem pasmar-se: pela segunda vez consecutiva, trago histórias de um país que vocês conhecem e cujo nome pronunciam sem se babar. Nada de Quirguistões, nada de ilhas perdidas no Círculo Polar Árctico: é a boa velha China, o Império do Meio, a cornucópia de bebés, os futuros senhores das trevas deste mundo. Esta asneira, no entanto, tem uma história. Daqueles estranhas e que por uns segundos vos farão questionar a minha bússola moral, e que começa com esta afirmação: vivo fascinado com ditaduras.


Aliás, as discussões das últimas semanas em torno de um museu dedicado a Salazar trazem-me delícia. Não porque seja particular fã dessa esclerose múltipla em forma humana, mas porque toca em algo que parecia ser, até há uns anos, um desses últimos redutos morais de nós como pessoas: ditaduras são más; e como são más, qualquer coisa que lhes esteja associada é para cuspir. Estudá-las é apenas um pretexto para lutos sobre a dignidade humana e oportunidades de afirmarmos, num pedestal, que somos muitos bons e que jamais regressaremos a esse tempo. Nunca esquecer. Mas também, nunca recordar muito, que somos gente de bem e não há cá lugares para muitas palavras sobre o assunto. O que é uma balela. Há uma análise histórica a ser feita sobre o tema, mas não cabe aqui. Digo apenas que esconder o pó debaixo da carpete não deixa uma sala limpa. Que por mais que queiramos guardar o pote de mel, há ursos que querem comê-lo e que talvez o melhor seja exibir o pote, mas explicar porque é que o mel está envenenado. Há qualquer coisa em mim que se deixa atrair pelos abismos da crueldade, não só de quem manda, mas também de quem obedece. Que questiona acerca dos motivos pelos quais, contra todos os nossos instintos - pelo menos, aparentemente - aceitamos um poder absoluto. De perguntar o que incomoda também quem se insurge: porque é que existe tanta gente que só encontra força para obedecer? De que maneira um tirano se transforma num pai que uma maioria aceita ou pelo menos não questiona? Em que ponto é que o ocaso da escolha passa a ser confortável? Na verdade, há já algum tempo que concluí que estas perguntas não se respondem apenas com os achados que se descobrem entre as linhas de um livro. A única maneira é experimentar e prestar atenção. Viajar até um país autocrático onde pudesse observar, qual Attenborough do totalitarismo, como raio pode alguém sequer construir um quotidiano quando to condicionam todos os dias. Há mais ditaduras no mundo do que se calhar pensam. Desde Cuba até à Coreia do Norte, passando pelas menos conhecidas como a Eritreia, o Turquemenistão ou a Bielorrússia. Ao todo, mais de dois biliões e meio de pessoas acordam sob este tipo de regime, a maior parte delas na China. Pareceu-me portanto que esta seria uma hipótese óbvia. Os Chineses nem conhecem o seu país por esse nome. Chamam-lhe Zhongguo, que significa qualquer coisa como o "Estado Central". Ou Império do Meio, na sua versão mais popular. Segundo país do mundo em área, primeiro em população, um sétimo do total mundial; e a ideia é corrê-lo de uma ponta à outra, mais de oito mil quilómetros em duas semanas. Há aqui cidades tão grandes que são governadas de forma praticamente autónoma. A história chinesa tem várias fases e grandes reviravoltas, como perceberão. A sua área de influência e população garantem sempre recordes. Para terem uma ideia vaga, a guerra civil que levou ao fim da dinastia Ming registou 25 MILHÕES de mortos. Vir à China não é apenas uma questão de exotismo. É entrar numa outra dimensão, em diversos sentidos da palavra.


A razão pela qual escrevo este preâmbulo tão longo onde refiro zero linhas acerca do que me aconteceu tem a ver com a complexidade da situação chinesa. Se nunca visitaram um país ditatorial, algumas das coisas que escreverei surpreenderão. A China é um mundo, com o quádruplo elevado ao cubo de culturas diferentes, histórias diferentes: há dezasseis línguas oficias e nem vou entrar pelos dialectos regionais aceites. Na tômbola que é a História, muitos povos tiveram aqui assento e por muito que o Partido Comunista Chinês esteja a tentar corrigir isso, os seus sinais ainda surgem, com maior ou menor força, por todo o país. Por muito que nos tentem convencer na escola de que o centro da História é a Europa, na verdade ele passa por aqui e pisar terras chinesas é quase voltar a um tempo antes do tempo. Vão entender que a China é uma construção dos Chineses, mas não da maneira que pensam; que regimes e pessoas podem ser duas coisas bem separadas; que há um custo inerente a viajar num país tão extenso; e que a não ser que tenhamos mais de cinquenta anos, não sabemos, de todo, o que é ser oprimido. Existe uma diferença muito grande entre aquilo que lemos nos jornais sobre o que é comportamento ditatorial e as formas que este assume de facto. Insidioso, por vezes muito mais subtil do que se espera. Que altera o nosso comportamento. Num certo sentido. estas serão as crónicas mais políticas que escrevi, porque é impossível vir aqui e ficar indiferente. A não ser que optemos por nos escondermos do mundo. Há quem me tenha dito que talvez veja mais mundo do que a maior parte das pessoas que conhecem e embora eu nunca me possa classificar de cosmopolita ou muito viajado, entendo que o nosso olhar é um professor muito útil e podemos aprender muito se pararmos um pouco para entender o que passa por nós de frosques de fresquinho. O que tento trazer da China é essa experiência, até porque visitei zonas muito pouco turísticas, locais onde muitas vezes era quase o único ocidental em dezenas de quilómetros. Se nada mais trago, que vos dê isto.


Um outro pormenor é importante de saber antes de mergulharmos na Ásia. O meu estado de espírito para esta viagem não era o melhor. Não me sentia preparado para fazê-la e lamento que esta história não tenha uma reviravolta feliz: quando cheguei ao fim, reforcei a minha ideia de que quem viajou não fui eu, mas uma espécie de carcassa com parte da minha centelha. Há momentos, raríssimos, onde consegui ser eu, mas na maior parte, foi como se estivesse a viver tudo através de interposta pessoa que nem pessoa era. Se alguém, antes de ter partido, me oferecesse o dinheiro que gastei e trocasse de lugar comigo, teria trocado sem hesitação ou dúvida. Mas tal não é possível. O tempo que demorei a convencer-me e a motivar-me é capaz de ter sido o mesmo que gastei na travessia da China. Não tinha outra solução que não fosse fingir que tudo ia correr bem, quando claramente não ia. A minha cabeça é tantas vezes uma casa assombrada. Os fantasmas não entram de férias como eu e não pagam taxa de bagagem extra. Simplesmente vão e aqui, em primeira classe. Não me vou demorar aqui a explicar o que se passa, que motivos me tiram essa alegria da exploração, o que me atormenta, o que me preocupa. É fundo e eu sei-o. Condiciona-me a vida e também me apercebo disso. Não pode ser resolvido em semanas e vai comigo para todo o lado, até aos cantos mais longínquos do mundo. Numa promessa a mim mesmo, um sussurro: dê por onde der, arranjando forças onde não podes, e frinchas que não tens, vais armar pelo menos um amostra de ti e aproveitar o que existe, ou pelo menos fingir tão bem que quando fizeres o sumário da matéria dada, quando te sentares para alinhavar em letras aquele fumo que viveste e chamas memória, vais acreditar piamente que tudo te encheu e transformou. De que esta é uma história feliz, de um ponta à outra. Não consigo acreditar, mas vou tentar fazer a melhor coisa a seguir: convencer-vos de que sim, e convencer-vos de que podem sorrir ou pelo menos crepitar no final de cada um destes capítulos. Se a minha vida real não é de consolo, que a realidade criada pelo que descrevo, a ficção real em fiação na vossa mente vos transporte e leve algum tipo de luz. A maior barragem do mundo é chinesa, logo faz todo o sentido.

Como podem ler, estou e sinto-me perdido. Na vida e na maneira como descreverei tudo, o desastre em cadeia que é este gigantesco país, o que lá vi e senti. Prometo-vos longas viagens de comboio, muitas histórias com polícias, objectos quotidianos que me tornam num terrorista, atum, Einaudi, montanhas e também um episódio hilariante que envolve esse símbolo de sapiência e bonomia que é um monge tibetano, desmontando mitos. E a certa altura, alguém quase cairá de uma cadeira perante a visão de uma mulher completamente nua. Mas só quando chegarmos a Turpan. E neste momento, nenhum de vocês sabe sequer que Turpan existe.

1 comentário:

Gil disse...

Ora aí vamos nós