quinta-feira, setembro 26, 2019

Fachinação 3: O olho que tudo vê


Kashgar é uma cidade com mais de dois mil anos. Ninguém sabe exactamente quando foi construída, mas é certo de que se situa num dos pontos mais importantes na História humana: a linha que separa a Ásia central dos antigos impérios que ajudaram a China a nascer. É aqui que se cruzam diferentes culturas e etnias, onde os tradicionais orientais de olhos em bico até têm uma importância menor. Aliás, a cidade é maioritariamente Uigur, um grupo étnico de maioria muçulmana e costumes ancestrais enraízados, cuja língua homónima teve origem no que é hoje o Médio Oriente. Dá para terem uma ideia do quão deslocado este povo se deve sentir num mundo de caracteres em mandarim. A cidade de Kashgar é conhecida por outro nome no resto do país, tendo sido adaptado para Kashi. É assim que se apresenta em estações de comboio, aeroportos, notícias da televisão; e apenas um dos vários sinais de extermínio cultural com que nos cruzaremos nos dias que aqui passamos. Os Uigures são o principal problema da política externa chinesa, circulando internacionalmente notícias de perseguições e raptos, campos de reeducação, destruição de património, tratamento destes cidadãos como seres humanos de segunda. É uma política que se estende a toda esta província, Xinjiang, a maior da China, um monstro geográfico maior do que a França e a Alemanha em conjunto. Montanhosa e desértica, não possui muitas cidades e estas são afastadas umas das outras. Pela sua distância em relação ao poder central de Pequim, Xinjiang é como que um familiar esquecido, lá longe, a quem são dadas garantias mínimas de sobrevivência, mas pouco mais. O preço em troca é a obediência e a conformidade e os cinco dias que aqui passaremos serão uma introdução ao que pode ser um totalitarismo disfarçado, bem educado, mas em última instância, fatal. Kashgar não é a capital da província; no entanto, é onde este processo é mais evidente.


Quando chegámos ao hotel onde ficaremos durante dois dias - um estabelecimento de cinco estrelas que na Europa se ficaria por três - as regras do jogo são óbvias de imediato. Apresentamo-nos na recepção e somos convidados e dar os passaportes. Nada de estranho. No entanto, pedem-nos que estaquemos num determinado ponto e olhemos um aparelhinho. Uma câmara. O bicho que mais rapidamente se reproduz nesta cidade. É pequenina e bem portátil, mas presente e um sinal de que sabem quem somos e onde estamos. "Chegaste a Kashgar", segreda-me enquanto me rouba a cara. Quando subo ao meu quarto, ainda venho a pensar no surreal que isto é. Mas deixará de ser surreal durante o resto da viagem. O meu companheiro de quarto é o Hélder, advogado no outro lado do mundo e que faz pela primeira vez uma viagem nestes moldes. Vai mostrando um espírito de um garoto a quem enviaram num campo de férias, um entusiasmo que só consigo reconhecer em mim numa memória distante. O quarto é um recreio, vasculha todos os cantos, mete conversa, faz perguntas sobre fotografia, conta como comprou a máquina antes da viagem e ainda está a tentar perceber como funciona, se lhe posso explicar, que lhe aconselharam aquela mas ele nem sabe muito bem se é melhor ou não. A Polícia Chinesa não poderá ajudá-lo, calculo. Ainda me sinto algo difuso, talvez por estar há mais de um dia sem dormir. Aqui, são quase seis horas. Fim de tarde. A ideia é darmos uma voltinha pela cidade e estranhamente, não me sinto mole nem com sono, apesar do abafado calor. O grupo reúne-se à entrada do hotel e antes de partirmos para visitar o centro de Kashgar, fazemos um pequeno desvio até um restaurante que não fica muito longe de onde estamos. Não é uma simples paragem de comezaina. Este edifício foi, até 1947,, um baluarte diplomático do Império Britânico na Ásia Central. Na altura, esta zona era um nada ainda maior do que é hoje. A única razão para a presença do Reino Unido na região devia-se ao chamado "Grande Jogo", um conjunto de manobras diplomáticas - e por vezes militares - que opunham a terra de Sua Majestade ao Império Russo, que na altura crescia em ambição e tamanho. O objectivo? O domínio da Ásia, principalmente do Médio Oriente. A História que aprendemos na escola, centrada no Europa, leva a que ignoremos que a importância que o maior continente do planeta teve na evolução dos povos. Mas nos finais do século XIX, quando o consulado foi fundado, ela era bem evidente. Na altura, qualquer cônsul nestas bandas devia ser desenrascado acima de tudo, pois tinha muito pouco apoio. Era como uma lança em África. Os cidadãos britânicos que por ele eram servidos encontravam-se espalhados por toda a província e muitas vezes, incapazes de dar notícias. Kashgar, se procurarem num mapa, fica a pouquíssima distância de quatro países; a partir daqui, chegavam informações de todo o lado, um local charneira do Oriente para o ainda mais Oriente. Apesar do humilde exterior, um alpendre verde com um branco, encimado por uma telhadinho pintado de várias cores com a indicação do nome do restaurante, Chini Bagh, saber todas estas informações torna o momento algo solene, imaginar as desventuras de espiões, as manobras diplomáticas, as revoltas que tiveram este edifício como alvo. No interior, ainda existem porções da arquitectura original, longos corredores brancos de traços arabescos, salas hoje de jantar com estuques e baixos-relevos de inspiração oriental, a interpretação britânica em modo kitsch da arte árabe. Faz-me sentir o que mais gosto quando visito locais ditos históricos: estar lá há anos atrás, sem máquinas do tempo, só a corrente cronológica a prender-me bem firme a anos que não são meus, nem nunca foram, nem podem ser. Mas por momentos, são-me emprestados.


Boa parte da cidade foi, à falta de melhor termo, achinesada. Uma sementeira de edifícios altos e sem identidade, misturados com imitações de arquitectura árabe. Longas avenidas atravessam-nas, rectas e direitas, percorridas por carros e pela maior praga que podem encontrar no país: aceleras eléctricas. Estão por todo o lado e na verdade, andam por todo o lado. Estradas e passeios, vias velocipédicas, eu arriscava-me até a teorizar que ajudam os seus donos a deslocar-se dentro de casa. São um bocadinho como o tubarão do "Jaws"- aproximam-se num silêncio que rumina e não se mostra até ao derradeiro momento, quando já estão a menos de um metro de nós e o condutor apita na subentendida atitude de que lhe saltamos fora da vista e ele nem tem de travar, São bandos de gafanhotos e é-lhes arrastado o segundo maior amigos dos chineses, o telemóvel. É frequente encontrar os condutores fazendo livefeed enquanto circula, sorrindo, falando, gestos grandiosos. Ninguém pestaneja, a circunspecta e dura Polícia chinesa nem chama a atenção. Tudo é válido, de videochamadas até aquela gravação que mais tarde cairá no Youtube. Enquanto circulam a quarenta à hora, sob póneis metálicos silenciosos. Ecológico, mas temível. Por vezes, a ecologia é levada ao extremo, quando em vez de uma ou duas pessoas, vemos bem assentadas no veículo quatro, cinco, até seis. Quase sempre crianças, quase sempre com menos de doze anos, rindo e cantando, como eu andava de bicicleta quando era garoto e me achava um radical e um fixe. Descobrir o que é realmente Kashgar implica abandonar as avenidas e entrar na cidade velha. Embora o governo chinês se esteja a entreter em fazê-a desaparecer, ainda sobram algumas partes. A entrada que tomamos está barricada com uma barreira de metal. De cada lado, soldados, metralhadoras bem visíveis. As mesmas armas que nos acompanharão nas voltas que daremos, a tiracolo de quem patrulha. É um cenário de guerra em modo light: aqui, a barreira impede potenciais atentados através de carros bomba. Nunca diria que existe no ar esse temor, essa ameaça de violência. Somos olhados por curiosidade por sermos ocidentais, penso que haverá nos uigures um espanto interior por ver ali pessoas tão diferentes e de tão longe. Esta terra não é para turistas. Mas são simpáticos, sorriem. Se queremos tirar fotos e formos gentis, tiram. Sozinhos e acompanhados. Saúdam-nos enquanto se enredam no seu quotidiano. Vejo talhantes partindo carne, vendedores de rua a grelhar comida, sapateiros e chapeleiros exibindo os seus produtos. Numa ruela, um velho vende antiguidades, guarda a porta do estabelecimentos ladeados por dois tapetes. Num deles, Lenine; no outro, o grande pai Mao. Olhando por becos, sou espreitado por crianças. Algumas brincam, outras escondem-se. À porta de uma casa de adobe, como quase todos os edifícios nesta zona, três miúdos abraçam-se depois de jogar à apanhada. Num primeiro andar, um jovem e bela mulher vigia-me por entre os cortinados de um quarto. Há cores vivas, risos, música parola no ar, pessoas normais de um lado para o outro em andanças próprias. Como no Quirguistão, os homens acocoram-se se quando querem descansar, impedindo os seus nadegueiros de tocar a sujidade do chão. Talvez preceitos de Alá, os mesmos costumes percorrendo a espinha da Ásia. Ainda que a fartura de agentes da lei torna a experiência menos autêntica, é inegável que mesmo na opressão, esta gente é gente. Como se ser gente fosse uma rebeldia interna, como se a normalidade, ou ficção da mesma, batesse o pé à força das mordaças e da vigilância. É bonito de se ver.


O nosso passeio é acompanhado constantemente pelos olhos que tudo vêem. De dez em dez metros, e não estou a exagerar, barras brancas atravessam a rua, levando ao pendurão quatro câmaras e microfones. São inescapáveis. Mais tarde, lerei que por aqui se ensaia um software de reconhecimento facial que permite reconhecer imediatamente as caras dos cidadãos que posam sem pedido para este olhar sem alma, sem chama. Xinjiang é a grande cobaia dos senhores que tudo sabem, tudo controlam, tudo asseguram. Quando as ruas abrem, conduzindo à praça mais velha da cidade, isso torna-se mais evidente. Esta praça tem 2000 anos, é atravessa pela Wustanbowie - rua mais velha da cidade - mas foi tomada completamente por vendilhões e comerciantes, afinal a actividade mais comum nestas partes. Abençoando a praça, a mesquita de Id Kah exibe a fachada amarela, mas fosca. O seu minarete é pequeno, mas destaca-se num edifício que pouco tem de grande. Encontra-se em obras. É a maior mesquita da China e boa parte das obras visam descaracterizá-la. Daí nem sequer lá colocar os pés. Tem espaço para vinte mil pessoas, mas é duvidoso que hoje em dia sequer um quarto lá ponha os pés regularmente. Ser abertamente muçulmano tem um preço na China. Normalmente, é a via mais rápida para um campo de reeducação. Tem mais de quinhentos anos e já viu nas suas escadas decapitações, perseguições a uigures e atentados. Quase sempre as vítimas são líderes religiosos e os agressores são de etnia Han, a mais numerosa da China. Mas hoje, dezenas de pessoas passeiam-se às sua frente com o sol a banhá-las e ninguém deve estar a pensar nisso. Vejo passar, a pouca distância, um coche que parece saído da Eurodisney e acredito com fervor na presença de Cinderela no seu interior, tal é o seu aspecto. Caminhamos por uma passagem subterrânea e damos por nós numa rua que é a zona de restauração da parte velha. Antes de entrarmos, nova barricada. A passagem de veículos é proibida, aceleras incluídas. Passamos por um parque improvisado que alberga centenas de motoretas. É impressionante. Em bancas viradas para quem passa, observo pães circulares, vegetais cortados com aspecto apetitoso, espetadas que são feitas a pedido. Há carne, principalmente de cordeiro, grelhando e tentando acorrentar corpos pelo olfacto. Volta e meia, e discretamente, somos fotografados e filmados com telemóveis. Podem ser curiosos, podem ser espiões. Na maior parte das vezes, estes últimos. Enquanto a minha atenção se prende em alguém que sem qualquer pudor me aponta uma câmara, uma face diferente cruza-se. É como a minha, sem traços árabes, sem olhos esguios. Vendo um grupo de ocidentais, pára também e apresenta-se: chama-se Michael, é norte-americano e aparentemente, o nosso guia conheceu-o na noite anterior num hostel. Está em Xinjiang há três anos, diz ele. É professor de inglês, diz ele. Decidiu viver cá uns tempos por gostar de aventura, diz ele. Tem saudades de casa, diz ele. Se precisarmos de qualquer coisa é dizer, diz ele. Que bom rever caras mais familiares, diz ele. E retira-se com mil desculpas, porque tem uma coisa combinada com amigos para o jantar e não pode ficar por ali; mas deseja.nos uma boa visita e quem sabe não nos voltaremos a cruzar, Kashgar não é tão grande assim.


 Vêem-se coisas curiosas nestes caminhos. São quase oito da noite e há um centro de saúde aberto virado para a rua. Ao fundo de um estreito beco, um velhote de cavas deita-se numa cama de armação amarela de ferro. Uma mulher bem mais nova vem trazer-lhe um chá e essa parece ser a única coisa que o convence a mexer-se de tão bem que está. Um garotinho encavalita-se numa estátua de bronze que homenageia os chapeleiros - coloca-se às cavalitas e finge que anda a galope. São ruas com vida. Mas a fome também ressuscita. Há a ideia de jantar num pequeno restaurante que fica na praça principal. Voltamos já em tons de fogo no céu, a noite tomba com vagar. Entramos num prédio e espera-nos um detector de metais e uma máquina de raio X. È procedimento padrão em todos os espaços públicos de Xinjiang. A minha mochila é observada e revistada, eu também. De braços no ar e inquirido por onde magnéticas. Somos todos iguais perante a lei. Subimos dois andares e o "Min'an" recebe-nos. O dono mostra-se hospitaleiro, junta várias mesas para totalizar os 13 lugares que ocuparemos. Espero que não seja a nossa Última Ceia. Os menus chegam e são em chinês. Os pratos têm imagens, o que ajuda. Nada que me surpreenda, este método. Enquanto escolhemos, uma banda entoa desgarradamente tons de beduínos. O deserto está perto, mas não tanto. Decidimos pedir vários pratos e partilhar. Enquanto não chegam, trocamos impressões e escutamos a música. Volta e meia, uma jovem de tule verde ensaia uns passos, sem que o ventre seja chamado muitas vezes à questão. Dança para os comensais, espectadores da sua expressão e mesmo sem grande brio ou chama, parece falar algo, apelar a algo que nunca atinjo verdadeiramente. A comida chega e descobrimos porque é que o Oriente é a terra das especiarias: há picante suficiente nestes pratos para criar uma crise nacional de hemorroidal. Bebidas são obrigatórias, alguns experimentam cerveja chinesa, que dizem não ser má. Há frango e cogumelos, tofu e carne de vaca, algum cordeiro, bastantes vegetais. Estamos esfomeados, o nosso estômago só conheceu comida de avião nas últimas horas - péssima, na minha opinião - e ainda que eu não vá nada à bola com gastronomia oriental, obrigo-me a ingerir algo para não fazer desfalecer o meu corpo. Não me dou mal.


Na noite já fixa, regressamos ao hotel pelo mesmo caminho que fizemos. Na praça central, crianças brincam à apanhada, há agora um pequeno carrossel, o calor convida a populaça a caminhar na rua. O regresso é assombrado pelas aceleras, que na escuridão passam de tubarões a panteras. O mesmo perigo, mas mais fosco . A Polícia continua na rua, as armas variam. De metralhadoras, passam a varas com laços na ponta. Como se fossem apanhar cães. Sinto-me mesmo cansado. As minhas pernas como rochas necessitam de se estender. Quando chego ao quarto, só penso nisso. Descanso em primeiro, banho depois. Ensaio aceder à Internet. Como a China controla a entrada em quase todos os sites ocidentais, sou obrigado a usar uma VPN; que é basicamente uma firewall que contorna as limitações chineses. As autoridades sabem, apenas permitem porque são simpáticas. Demoro a entrar, como é apanágio das VPN e a velocidade diminui drasticamente. Há certas coisas básicas que não consigo fazer, como aceder ao Gmail, mas as coisas fazem-se. Informo a minha família de que estou bem. Recebo fotos da minha sobrinha, d«os olhos da pequena Beatriz maiores do que Xinjiang. Aviso outras pessoas também. Amigos. Este mundo, e outro também. Escrevo o meu pequeno telegrama, como forma de me sentir normal na minha viagem, mas ainda não consigo o conforto que quero. Não conseguirei. Não ajuda que a minha maior bagagem nem sequer esteja no chão do quarto. Penso nos meus problemas e depois, nos destas pessoas que vi hoje, pessoas que mesmo quando não podem ser elas própria, não têm outro remédio pois é o que as faz viver. Apenas encontram disfarces, por vezes engraçados, por vezes arriscados. Penso em como os problemas são diferentes e de como as almas sofrem com igual intensidade, de como os corpos em dor se contorcem de maneira diferente conforme o que os aperta. Mesmo quando me passo por água, continuo a pensar. Nisto. Em mim. Nela. Ponho-me como para dormir e continuo a pensar; e sinto uma picada na nuca, que me diz que mesmo que sejam como o ar, os meus pensamentos são observados pelas câmaras. Sempre presentes, sempre perguntando, exigindo repostas a perguntas que não fazem. O olho que tudo vê

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