Há um enorme falatório em meu redor, um barulho que não pede licença e simplesmente me arromba os ouvidos. Tenho alguns segundos para me relocalizar e estendido na horizontal, sei que estou deitado. Vejo os meus pés mexendo-se debaixo de um lençol branco. Não fosse o barulho podia ser numa morgue. Em meu redor, as pessoas mexem-se e só não o fazem mais porque o espaço é apertado. Estou numa carruagem de comboio e acabadinho de acordar, começo a lembrar-me do contexto. Fizemos uma viagem nocturna novamente, desta vez saindo de Shanshan, uma daquelas pequenas cidades chinesas com nomes que fazem lembrar coisas não chinesas - no caso, e talvez seja a minha imaginação febril trabalhando a energia atómica, uma procissão de rumba abanando a anca ao som de uma orquestra de percussão e sopros. Há a vaga ideia de que o nosso destino é Zhangye, uma urbe com dois milhões de habitantes. Duas Lisboas, portanto. Tudo isto apesar de ter metade do tamanho. Talvez vos pareça estranhos, mas esta viagem de comboio fez-me perceber que os chineses, na verdade, não vêem problema na concentração de tantas pessoas num espaço tão pequeno, porque, e esta é apenas uma conclusão pessoal, possuem uma definição de espaço pessoal que é bastante lata. O que me levou a concluir isto foi a noite da viagem, as particularidades dos passageiros e acima de tudo, a disposição do género de camaratas - e vamos usar esta palavra para facilitar, porque na verdade é uma má descrição - que os comboios daqui usam na segunda classe. Para um país comunista, que pretende a igualdade entre todos, as diferenças de classes são notórias e pedem, claramente, a cada um que trabalhe mais para que o seu salário seja alto.
Mas tudo começou no dia anterior, logo após sairmos do chá no deserto. Shanshan não fica muito longe do deserto de Kumtag, onde vos deixei na minha companhia contemplativa. Depois de comprar comida numa lojinha local, onde podem encontrar todo o tipo de sopas chinesas instantâneas contempladas pela Humanidade, cada um arruma no saco aquilo que serão, afinal, os seus mantimentos nas próximas doze horas. Como já referi, o nosso próximo destino será Zhangye, a quase 1150 kms de distância. Para aqueles que não conseguem imaginar esta distância no abstracto, é um bocadinho como se eu fosse de Coimbra para Barcelona. A bitola da linha chinesa permite que nesta viagem possamos atingir os 300 kms horários, ainda que não seja esta a tão falada linha de alta velocidade com que o Governo promete rechear o país - e tentar calar alguns críticos de que anda a desprezar as regiões afastadas nos grandes centros financeiros da Costa Leste. Se olharem para a imagem abaixo, que representa a distribuição do caminho de ferro no país, poderão ter uma ideia mais próxima do que esta diferença significa. Xinjiang, esta província que tenho visitado até este momento, é a mais afastada do poder central. Reparem bem no suspeito vazio de traços que podem encontrar no lado Oeste. Diz-vos bastante acerca de onde passam as prioridades da modernidade do antigo reino do dragão. Claro que, como português, sinto-me pouco à vontade para posições de superioridade para fazer comentários à política ferroviária de outros países. Bem sabemos como os comboios deixaram de surgir em tantas regiões portuguesas sob o pretexto de que ou não eram necessários ou havia alternativas ou que não são rentáveis. A rentabilidade, na China, um país em que cada buraco tapado é uma possível saída para 500 habitantes que por lá estavam à espera de aparecer, não se coloca; e apesar dos meus comentários, é impossível não ficar espantado pelo facto de, num espaço de setenta anos - com várias crises políticas, económicas e humanitárias pelo meio - a rede ferroviária ter crescido mais de cem mil quilómetros quadrados.
A estação de comboio de Shanshan é igual a todos os edifícios públicos chineses: um enorme mamarracho branco com inscrições chinesas a encarnado. Damos umas voltas até percebermos a entrada, mas com malas arrastadas e mochila às costas, orientamo-nos. Uma vez mais, cumprimos o ritual da prisão. Os nossos pertences atravessam máquinas de verificação; pedem-nos passaportes e bilhetes; fazem-nos questões sobre a nossa estadia no país e se eu ficasse lá mais tempo, ainda me questionavam acerca do que tenho achado do Cinema este ano. Quando chega a altura de ser revistado, os polícias não têm em consideração o nosso pudor. No meu caso, mandam-me que suba um banco e mesmo havendo um homem disponível, é uma jovem chinesa que me passa mão pela roupa. Ela sorri e eu sorrio de volta. Há que dizer que aqui são muito mais simpáticos do que em Kashgar. Pelo menos pronunciam palavras e não rosnam. Prefiro até que ela me sorria, porque evita aquele inglês atabalhoado que os nativos utilizam à laia de comunicação. As minhas mala e mochila encontram-se já no chão. Desta vez, ninguém implicou. O garfo continua no mesmo local, as latas de atum também. Talvez o grande inimigo chinês seja mesmo a higiene. Talvez desodorizantes sejam vistos aqui como armas atómicas, prontas a destruir um certo destilo de vida oriental que exclui a paz do sovaco. O conforto do sovaco. Talvez tenha a ver com a semelhança entre a pelugem que desponta dessa área e a barba hirsuta de um convicto muçulmano. Afinal, esta é a gente que olha para mim e vê um terrorista. Qualquer pessoa que me tenha conhecido sabe que me as minhas bombas são outras. No interior da estação, procuramos um local para, por fim, alaparmos. Teremos muito tempo para isto, penso. Uma noite e várias horas mais. Vou dar uma voltinha a pé, observando as pessoas. Sempre pensei que as famílias chinesas viajavam ao monte, mas o que mais vejo aqui são indivíduos em modo solitário esperando, contando segundos no relógio. Esperar é igual em qualquer lado do mundo. Fones são produto comum, há menos quem leia e um ou outro, normalmente mais velho, passa um pouco pelas brasas. Ser recebido pela polícia à entrada assusta um ocidental, mas garante aos já habituados que deverá haver pouco quem se atreva a ser amigo do alheio.
Oito e vinte. Regresso ao grupo, estamos quase a sair. Nesse exacto momento, um dos funcionários de estação vem ter connosco. Uma saudação rápida e pede bilhetes. Quer saber se somos quem eles pensa, e somos. Um grupo de doze estrangeiros, não deve haver outro ali. O homem fala zero de outro idioma que não o mandarim, mas é incrivelmente expressivo com os braços. Tragam as malas, sigam-me, percebe-se de imediato. Assim fazemos. Entrega.nos a outro colega, a quem dá indicações. Este saúda-nos com um sorriso maquinal e volta a atenção para o tempo. Por cima de nós está o quadro de chegadas e partidas, é grande e com números e letras fluorescente amarelo. O nosso comboio é logo o primeiro, o próximo a sair. Quando pisca, somos quase puxados pelo diligente homem, conduzidos com profissionalismo e intenção até à nossa plataforma. Subimos escadas e estamos ao lado da linha de comboio. A sua precisão é muito séria: olhando para o chão estaca de repente e indica-nos a posição devida. Faz-nos perceber que não devemos mexer-nos um centímetro, aquele é o nosso local e pronto. Bem sei que tenho passado estas crónicas a queixar-me dos Chineses, mas achei este gesto extremamente simpático. Não sei se fazem isso com todos os tótós que vistam de fora, mas pelo menos, tirou-nos uma preocupação de fora. Então, some na noite que caiu e que tapou tudo em redor. As luzes da estação são a única protecção que temos contras as trevas, como um amuleto de Dungeons & Dragons. Felizmente, a temperatura amena torna a noite num colchão no qual apetece encostar e simplesmente estar. Desponta então, bem lá na distância do breu, um triângulo de círculos brancos. Num gradual vagar, aproximam-se e a sua aparição provoca reacção em quem espera. É o comboio. Tudo preparado, basta-me entrar. As carruagens diminuem a sua marcha, num barulho resfolegante, mas que não incomoda. Quando param, a porta da carruagem que nos corresponde está imediatamente à nossa frente. Que eficácia incrível. Não sei se é coincidência ou planeamento perfeito, mas o pouco que existe em mim capaz de acreditar em magia agarra-se à segunda como Rúben Dias a um adversário contrário. Não consigo deixar de ficar espantado. Olho para as restantes plataformas e aconteceu exactamente o mesmo. Não admira que os Chineses apreciem tanto estas virtudes de organização do seu estado autocrático.
Uma surpresa aguarda-me no interior da carruagem. Contrariamente ao conforto e privacidade das cabines que nos receberam na primeira viagem nocturna, desta vez vamos em segunda classe. O que significa desde logo uma série de coisas. Em primeiro, que este é mais um episódio da série "Tudo ao molho e fé em Deus, ou Deuses, ou aquilo a que seja que te agarres". Há uma multidão aqui metida neste caixote de de metal comprimido e circulam todos para cima e para baixo num corredor onde cabe um homem de pé e sem se atrever a expirar o ar com vigor. São crianças, velhos, adultos de meia idade, toda a gente. Dançamos todos quando decidimos circular e mesmo quando nos sentamos em redor das pequenas mesas que estão disponíveis, a operação de levantar e alapar é garantida. Pelo menos, faço exercício activo e agachamentos constantes. Em segundo lugar, a dormida é muito mais comunitária. Existem dez espaços abertos, cada um deles com seis pranchas de madeira - três de um lado, três do outro - que a trepam pela vertical. As separatórias são apenas laterais. Ou seja, a minha vigília de sono estará exposta ao mundo. O que é incrível. Ninguém parece importar-se. O meu lugar está numa das pranchas do meio. Quando trepo até lá que nem um macaco de Java, por uma escada que tem pouco de prático, ninguém treme ou pestaneja, ainda que tenha dado um ligeiro pontapé ao infortunado que dorme por baixo de mim. Leito estreito, lençóis de risco. A almofada é baixa e existe um cobertor curto para me tapar. Embora, e isto especulo eu com a quantidade de gente que dorme nesta carruagem, não me pareça que sofra de problemas de frio esta noite. Tiro as medidas à "cama". Dá para me esticar sem ficar corcunda. É uma vantagem. A mala está arrumada no meu campo de visão. Confio na passagem constante de um polícia balofo, com corte de cabelo militar, mas ondas de suor a escorrer pela cara à medida que a noite avança. No entanto, e por muito que a opressão chinesa me mereça respeito, não entrego a protecção da minha mochila à Virgem Maria da Conchichina. A ideia de despertar no pesadelo do roubo da minha máquina é quase suficiente para nem pregar olho durante a noite. Na, vá lá, parede ao meu lado, um gancho de metal desafia-me a acordar subitamente sem sofrer um galo. Talvez passe por ali a solução dos meus problemas.
Enquanto me dão encontrões, como uma lata de atum à maneira
de jantar. Ao sexto dia de viagem, os meus colegas de jornada já começam a
olhar com alguma inveja para as garfadas que levo à boca, como se este peixinho
que parece carne fosse o pitéu mais desejado. Sem ter provado os produtos
chineses que se compram em supermercados, tiro a conclusão de que talvez não
sejam a refeição saborosa da Ásia. Confesso que me acontece sempre, depois destas viagens, evitar ao máximo manjares de atum durante o resto dos meses, pois não é de todo o meu prato de eleição. Mas o facto é que me tem ajudado, a um esquisitinho com comida, nestas explorações mais exóticas que tenho feito. Eu, que não gosto de nada de comida chinesa, vim à China. A conclusão era por demais óbvia. Mas até me tenho surpreendido. Vão-me puxando conversa, aqui e ali. Dou uma olhada no plano dos próximos dias: temos atracções geológicas, visitas ao Tibete Chinês e alguns dias na capital. Prometedor. No entanto, acho que ninguém está bem para ficar ao paleio, até porque em nosso redor, os passageiros vão recolhendo. Neste género de viagens, conta-me o Zé Luís, as luzes fecham aí pelas dez e meia. O que até faz sentido. Recolho ao meu belo refúgio e descubro um pequeno candeeiro. Enquanto ao meu redor a claridade se extingue e consigo escutar um senhor velhinho que dorme paralelo a mim ressonando, continuo o meu livrinho sobre os diabinhos de Hollywood. Mas a certa altura, até eu começo a sentir o peso das horas, ou o efeito mágico do embalo do comboio. Arrumo o livro e a minha mochila vai logo para o tal ganchinho. A minha posição de dormida está calculada para roçar sempre esta guardiã dos meus tesouros - inclusive o meu passaporte, o mais importante de todos, a minha defesa máxima contra a Magia Negras das autoridades chinesas. Num estado de vigilância relaxada, recupero o que vivi neste canto que, na altura em que visito, está tão longe dos olhos do mundo. Quando, meses depois, escrevo estas crónicas, várias informações sobre as opressões e maquinaçãoes em Xinjiang se tornam públicas, surgem em jornais, através da publicação de documentos secretos e testemunhos sempre ignorados. Um dos principais exilados uigures que vem chamando a atenção para este problema será até recompensado com o prémio Sakharov da União Europeia. Mas quando aqui venho, sou abençoado com o dom de ver no futuro, de viver tudo sem saber minimamente ao que vou. Tenho a noção de que o pior me passou mesmo ao lado, mas vi ainda assim coisas assustadoras. Nunca estivera num país onde visse pessoas amedrontadas pelo simples facto de existirem. Que me dizem, sempre em sussurros, que podem ser levadas, que conhecem quem foi e que alguns nunca mais voltaram. É como viver num perverso jogo de escondidas com consequências graves. Senti que nalguns pontos, via uma realidade com filtro à frente, sem contactá-la. Um museu de cera, mas irreal. As câmaras e as abordagens nos edifícios públicos impressionaram-me, mas não tanto quanto uma sensação de quase vergonha em ser-se, de pedir licença para simplesmente prolongar uma cultura milenar ou sequer ousar viver de forma digna. Mais do que a liberdade, o roubo chinês foi o da dignidade, ou pelo menos a tentativa de fazê-lo. Porque ainda não conseguiram. Nem aos uigures, nem aos próprios chineses. É sempre tentador, numa ditadura, acharmos que todos os cidadãos reflectem os ideias do seu governo; mas encontrei na China gente aberta e acessível também, curiosa pelo que vem de fora, disponíveis para dar a conhecer algo de que também se orgulham e é seu. E a resistência dos uigures não está em manifestações, mas naquele olhar que indica uma espera pelo momento em que, atravessando a distância que nos separa, nos dispõe num gesto simpático e acolhedor, na palavra hospitaleira, na disponibilidade para ajudar. Enquanto o espírito humano resistir ao veneno do ódio, a maldade não triunfa. Não pode. Nem sequer o poder absoluto que põe e dispõe conforme o vento lhe manda.
E regresso ao meu despertar que começou esta crónica. Quando abro os olhos como deve ser, a primeira coisa que vejo é um garoto. Tem talvez uns quatro anos. Camisola vermelha, da cintura para baixo apenas cuecas e sapatilhas. Ao lado, um irmãozinho com metade da idade, talvez. Descasca uma laranja e vai alimentando o pequeno, com indicações da mãe. Estão todos sentados na plataforma mais próxima do solo. O miúdo olha-me fixamente enquanto estende simpatia ao mano. Sorri e eu não se consegui retribuir tão pouco tempo depois de ter acordado. Mas faço umas caretas e cria-se uma pequena empatia entre nós. A minha mochila ainda está comigo. Depois de ter sido desarmado por aquele momento espontâneo, o meu coração, definitivamente, também.
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