quarta-feira, janeiro 15, 2020

Fachinação 16: Zhangye e uma outra China


É uma China diferente. O dia confirmar-me-á isto, mas ainda antes de o comboio parar, dou uma olhada ao mapa do país e algures durante a noite, quando passámos na cidade de Jinquan, abandonámos Xinjiang. Na prática, é como se entrasse noutro país, com pessoas da mesma nacionalidade, mas outra liberdade para obedecer. É o que se faz na China, obedece-se; mas nos próximos dias, de forma menos aparente e com outros... patrões. No entanto, quando saio na estação de Zhangye, a minha primeira impressão, imediata e inescapável, é uma longa caravana ferroviária militar. Soldados e material são transportados para um ponto incógnito. Observo tanques e blindados, jipes também, à vista de toda a gente. Uma lembrança à populaça de que eles andam aí. Uma conspiração aberta, transparente. Jovens fardados de preto olham pela janela, alguns de volta do telemóvel, reparo num que lê. O tédio da fanfarra da tropa. É o que têm na vida e agora, vão para algures. Calculo que sejam exercícios militares, mas podem perfeitamente ser enviados para a mesma província de onde cheguei, mantendo aquela gostosa marcação pessoal que testemunhei. Não sei, também não pergunto. Li algures que pela enorme quantidade de território desabitado, Xinjiang foi, desde 1949, o palco preferido para testes de armas, atómicas inclusive, do exército chinês. É provável que continue a ser o recreio de guerra nacional. Um dos magalas cruza o seu olhar com o meu. Digo-lhe adeus, de forma quase automática, como quando se encontra alguém na rua e não se consegue disfarçar o desconforto da inércia. Para minha total surpresa, devolve-me a saudação. Encolhe os ombros e sorri. Imito-o e cada vez mais entendo que ser humano é universal, que as esfregas de cada um, seja qual for o regime político, são as mesmas. O tédio é a linguagem comum de quem acorda todos os dias. Todos percebemos o preço de um frete. Ele preso ao dever, eu devendo qualquer coisa a mim próprio. Debaixo deste céu nebulado, pergunto-me o que faço aqui. Não na China, mas aqui. Ele viaja algures para onde lhe mandam e vai; eu tenho toda a liberdade para ser eu e não consigo, há sempre algo. Esse algo poderei ser eu talvez. Vamos apanhar um taxi para o hotel e tenho de me ir. Despeço-me daquele desconhecido e ele aponta para um dos olhos e despede-se também. Não sei se é piada, cagança, algo sério. Mas rio-me. Talvez me veja ao longe. Tem muitas câmaras para ajudar.

Zhangye é uma das cidades mais importantes da província de Gansu, principalmente por centrar uma larga bacia hidrográfica, do rio Heihe, que é um dos celeiros da China. É o maior centro de produção de milho do país e a sua expansão urbana nos últimos anos deve-se à proximidade de uma atracção turística que visitaremos de tarde, o parque geológico de Danxia. Com quase um milhão e meio de habitantes, é uma cidade média naquilo que é o país. Apesar de algumas atracções turísticas, Zhangye é acima de tudo uma cidade de passagem ou paragem para quem se dirige acima de tudo para Sul ou Oeste. Portanto, é um reclinatório. Apesar da sua posição actual, existem várias menções histórica,s nomeadamente por Marco Polo, no tempo em que se chamava ainda Ganzhou - não confundir com o nome da província. Na altura, devia a fama a um oásis que permitia aos viajantes parar para reabastecer água. É aliás o significado do seu antigo nome de Ganzhou: "águas doces". Já devem ter reparado que há um padrão nestas cidades que tenho visitado. Todas elas deveram o seu desenvolvimento a oásis ou lagos, o que dá para terem um ideia, em primeiro, do quão afastadas dos centros de desenvolvimento sempre foram estas regiões; e em segundo, do quão desértica e montanhosa é esta parte da China.


Antigamente, no tempo dos reino chineses, havia uma clara distinção entre a verdadadeira China e imitação da mesma. Um pouco à maneira romana, que distinguiam claramente o centro do império das suas periferias, e ainda mais tudo o que ficava fora dos seus limites. Zhangye era uma periferia, tratada pelo centro como um posto avançado de civilização, mas sem pertencer à mesma. Uma protecção contra os inimigos, um ponto de resistência ao avanço dos invasores. Dentro do Império, mas bem fora dele. Longe. Foi ocupada por vários povos, dos quais os mais conhecidos serão os Mongóis. Um dos seus líderes mais famosos, Kublai Khan - com quem, aliás, Marco Polo supostamente contacta e serve nas descrições, ahm, dúbias das suas viagens - terá nascido em Zhangye. Uma história local, que mais tarde descobri num livro, mostra como algumas tradições chinesas actuais, como tentar dobrar a Natureza à soberba oficial, sempre se verificaram no passado. Existia perto da cidade um famoso pinhal, de frondoas e belas árvores, que era o orgulho de quem aqui vivia. Mas a sua importância prática era bem maior: rodeada de montanhas, Zhangye estava exposta aos perigos das águas do degelo. Ora, o pinhal ajudava a abrandar o seu avanço para o rio Heihe, impedindo assim inundações. No final do século XIX, no entanto, um oficial do Imperador ordenou o corte das árvores para construir postes da rede de telégrafos da região. No ano seguinte, aos primeiros degelos, a região foi afectada por grandes alagamentos que mataram centenas de pessoas, e para culminar tudo, um Outono sequíssimo pela correspondente falta de água. Naquilo que é um fenómeno recorrente no país: das dez inundações mais mortíferas da História, metade desenrolou-se na China, quase todas uma mistura de incúria humana e inclemência natural.


Depois de deixarmos as nossas coisas no hotel, o mais modesto onde dormi até agora (exceptuando os vagões ferroviários, claro), ocupamos a manhã com um passeio pela cidade. Há desde logo uma grande diferença que se nota: as lojas dominam, não importa que exista, por exemplo, uma de marca igual a cada meio quilómetro - o que é mais notório, por exemplo, na Huawei. Aqui, compra-se. O sonho capitalista do socialista Mao. Se em Xinjiang a vigilância era intrusiva, forçada, aqui cada um passa o seu tempo em redor do telemóvel. O Governo agradece. A maior parte das pessoa que vejo estão constantemente presas ao ecrã, falando, filmando, escrevendo. Estejam a andar no passeio, a atravessar a estrada ou a conduzir, o telemóvel é o seu grande mestre. Passear nestas ruas, esbaforidas de gente, dominadas pela publicidade e marketing, pelas montras, por algo que só se reconhece culturalmente pelos caracteres e linguagem diferentes, é uma experiência algo desapontante. De súbito, percebemos todos que temos fome e depois de umas voltas, entramos numa zona da cidade cheia de restaurantes e mercados. Está vazia. A hora de almoço deve ser diferente no fuso horário local. mas o nosso estômago não está adiantado. Comemos numa casa de dois andares, que não tem menus em inglês, mas imagens que ajudam e empregados de mesa que nada explicam. Ainda assim, atinamos e chegam seis pratos diferentes para petiscarmos. Ainda não me habituei a comida chinesa - nem me habituarei, não vou criar suspense - mas já entendi o que pode ser adequado e o que não pode. Frango, por norma, marcha de qualquer forma, ainda que os restaurantes locais abusem em demasia dos molhos picantes e agridoces, que nada têm a ver com o que se encontra nas versões portuguesas. Carne de vaca, varia, que de vez em quando apanham-se umas misturas com vegetais que não são a minha praia. Há um porco frito que também é fixe; cogumelos, depende da preparação. Há uns camarões fritos pequeninos que não me molestam nadinha, mas certos pratos de peixe são para esquecer. O mesmo para patos e afins. Gansos também. O arroz podia ser um bocadinho mais simplificado, que de vez em quando aparecem umas mixórdias com passas e cereais e verduras que tiram o direito de escolha e irritariam os membros da Iniciativa Liberal. Mas no geral, com algum cuidado e olho vivo, não se passa muita fome dentro dos restaurantes. Quando se trata de comer fora deles, no entanto, o paleio é outro. Felizmente, o pão é uma benesse universal.


Para resmoer o almoço, a nossa deriva leva-nos ao parque de Ganquan, um espaço verde grande, com um laguinho no meio. Há um imenso portal em kitsch chinês que marca a entrada. O tecto exibe pinturas de motivos campestres e florais, rematados por um quadro circular onde dois dragões azuis circundam um sol vermelho intenso. Os portões vermelhos estão cravejados de bolas de bronze dourado. Quando olho o parque, a primeira coisa que me salta à vista são vários grupos de idosos do lado esquerdo. Reúnem-se em torno de mesas e jogam... o que há. Há quatro que se despicam em torno de uma partida de Mahjong. Um dos jogadores enverga um chapéu de palha e antes de iniciar aquela que deve ser uma jogada particularmente complicada, tira-o e descansa-o no ramo de uma árvore atrás de si. Limpa o suor da testa com um lenço de pano e ri muito, o que contagia os colegas de partida. Aproximo-me placidamente e de mãos atrás das costas, para não criar a ideia de que vou fotografá-los. Quero fazê-lo, mas o melhor é ganhar a confiança em primeiro, deixar-me envolver. Fotografar pessoas é diferente de captar paisagens, as paisagens não respondem de volta, nem podem mandar-te uma peça de Mahjong ao nariz. Numa mesa lateral, um estranho jogo que envolve longas tiras de papel branco com pintas vermelhas e negras em cada extremidade. Cada jogador segura um molho delas e não consigo discernir lógica. Lembro-me como como jogava dominó com o meu avô e o jogo era muito simples de entender. Talvez seja por isso que os orientais parecem ser tão bons a Matemática. Já fazem cálculos complexos em tenra idade e quando chegam a velhos, para eles isto é como jogar ao Burro. Entretanto, ainda não reuni coragem para bater umas chapas e vou dar uma voltinha pelo parque para dar ao dedo. Há vários motivos de fotografia, ainda que este parque tenho pouca personalidade: uma imitação do "David" de Miguel Ângelo à beira de um lago sujo, vingança contra as imitações orientais bacocas que Joe Berardo colocou nos seus parques de lavagem de dinheiro; uma idosa que guarda a entrada da casa de banho do jardim, esperando para recolher o seu dízimo a quem quiser usá-la. Enquadrada com o um fundo de flores amarelas que brilham ao sol, veste uma dignifica maior do que a sua função, ou se calhar igual, visto que haverá poucas coisas mais dignas do que ajudar quem em indignas aflições acorre àquele local. Há também uma mutiplicação da famosa escultura fálica que Cutileiro criou para o Parque Eduardo VII, que me faz pensar se na China o famoso mito da pilinha pequena não terá criado uma obsessão nacional. Volto aos jogadores. Ganho arrojo e levantando a máquina com vagar, fotografo. Mais uma vez. Outra. Desta vez as mãos, desta vez as peças e as tiras. Numa e noutra reacções de jogadores. Percebo que não tenho grande talento para captar pessoas, mas que me sinto brutalmente atraído pela maneira como a luz lhes guia as mãos a cada jogada.


Depois de uma voltinha para alguns beberem café - e aproveitar para descobrir que um bar local exibe como especialidade da casa aquilo que designa por "Cock beer" - encaminhamo-nos por entre o trânsito para o Pagode de Zhangye, que desilude ao não ser uma gigantesca festa municipal. É uma torre que sobra como único vestígio de um antigo templo chamado Wanshou. Há-de ter alguma importância para estas pessoas, porque desde a sua construção em 521, tem sido destruído e reconstruído dezenas de vezes, a últimas delas em 1926. Dos seus trinta e três metros de altura, octogonal no formato, domina uma larga praça com campos de jogos e bancos onde se pode passar o tempo da sorna pós-comida. Várias pessoas, idosos acima de tudo, usam aparelhos de manutenção fúsica azuis e amarelos, que permitem exercícios simples só para dizer ao corpo que não se desistiu e este ainda tem uso. Olho para o pagode de madeira, alto mas com aquela impressão de poder voar se rajadas de vento mais fortes insistirem na sua opinião, e entendo esta relação próxima que as pessoas têm com ele. As fragilidades reflectem-se, mas apesar de tremerem, nenhum deles cai. No centro da praça, há courts de basquetebol onde adolescentes ensaiam a tarefa de se tornarem no próximo Yao Ming. Enquanto não nos notam, driblam distraidamente e quando atiram a bola, é com a mesma despreocupação que exibo quando um aluno me diz "Professor, não estudei para o teste". Mas ao erguer da minha máquina, acorda uma atitude competitiva acelerada. As bolas disputam-se com vigor e cresce o número de lançamentos de longa distância, cada vez com mais floreados e tropelias. Olham para mim e confirmam se estou a fotografá-los, mas até nem estou. Capto imagens do pagode, mas deixo que se enganem, ao menos exercitam-se a sério. Um arrepio frio sobe pela minha espinha e não me abandona a sensação de que me observam. Não uma câmara. Alguém. Continuo na minha e tento criar uma rotina natural que me permita virar o corpo. Não sei se fui bem sucedido, mas contemplo o que estava atrás de mim. A alguma distância, uns duzentos metros, uma mulher de óculos escuros, chapéu cor de rosa, cara tapada por uma echarpe violeta, olha na minha direcção enquanto segura uma cadeira de rodas onde um homem vegeta. Na mão, ela segura uma gabardine beije e não se mexe um milímetro. Uma estátua de olhos fixos, expressão escondida, inexprimível na sua vontade e um mistério na sua intenção. Não sei se me observa. Talvez ao pagode, mas duvido. Fotografo-a e não há reacção. A mesma posição. Não sei se vive ou é uma aparição, se sou o único que a vê. Talvez daqui a sete dias salte de uma televisão para me apertar o pescoço. Talvez de seguida vá bater umas peças no parque com os restantes velhos. Não sei. Aos meus pés bate uma bola de basquete. Um lançamento mal calculado e veio ter comigo. Devolvo a bola. Quando procuro novamente a mulher, desapareceu. Ela e o homem. Sinto-me num thriller de Brian de Palma e antes que apareça Michael Caine vestido de mulher, quero ir embora dali.


O local mais visitado da cidade, no entanto, é o Templo de Dafo, também conhecido como o Templo do Buda reclinado. Não fica a muita distância do pagode, aliás menos de dez minutos de caminhada e encontramo-nos às portas. Grupos alargados de turistas, com o tradicional bandeirinha no meio sinalizando a sua presença para que ninguém se perca, aguardam a sua vez para entrar. O templo data do século XII, depois de a cidade ter sido tomada pelo reino de Xia, seguidores do Budismo. Segundo a linda, um monge terá ouvido belas melodias acompanhando luzes proféticas numa colina a pouca distância do centro da cidade. Investigando os fenómenos, este corajoso encontrou enterrada uma caixa com uma estátua de um Buda deitado e decidiu logo ali dedicar a sua vida à construção de um templo à imagem desta preciosidade. A história pode ser tosca e risível, mas a verdade é que as imagens que existem no interior do templo, supostamente fazendo parte do mesmo tesouro original do monge, tiveram muitos patronos e protectores ao longo da História. Os habitantes de Zhangye levam-nas muito a sério e conseguiram a proeza de impedir a sua destruição durante a Revolução Cultural de Mao Zhedong. Conhecendo o fervor com que os seus prosélitos arruinaram o património histórico de um país sob a égide de uma China moderna e socialista, isto é um exemplo. As pessoas, na maior parte das vezes, podem não acreditar em outras pessoas; mas têm a vantagem de se agarrar à imaginação e suas criações. Nunca desprezem esse poder, é o que nos separa realmente dos animais irracionais. Terá sido aqui que o tal Kublai Khan nasceu e que um antigo imperador se tornou monge neste templo mais tarde na vida. Ambas as histórias não têm suporte documental, mas a sua presença no imaginário popular mostra o quanto os habitantes de Zhangye se colam à tradição deste edifício para legitimar a sua importância. É algo de bastante básico e compreensível em História. A cidade de Guimarães, por exemplo, anda há séculos a usar este estratagema e a figura de D. Afonso Henriques com o mesmo objectivo. A busca pelo prestígio é universal, uma verdadeira ponte entre Ocidente e Oriente. Quando, em 2006, o Governo chinês voltou a permitir actividades de culto no tempo, uma multidão compareceu à primeira cerimónia, a maior concentração de pessoas neste local em séculos. Vigiando-as, relaxado em posição, o gigante Buda de madeira, onde a figura maior do Budismo mostra o que é sentir o nirvana (falta-lhe a meu ver, uma cabeça balouçando ao som de "Smells like teen spirit", mas é uma opinião), abençoou certamente a cerimónia. Tenho curiosidade em entrar e principalmente contemplar as famosas pinturas murais publicitadas no exterior. No entanto, está quase na hora de seguirmos para o Parque Geológico de Danxia, o motivo que nos trouxe a esta região, e qualquer visita teria de ser feita em corrida.


No regresso ao hotel, enveredamos por uma rua que não visitámos pelo caminho. É comercial, cheia de lojas de luxo. Roupa, jóias, grandes marcas internacionais e locais, incluindo uma chamada Spider King. Peter Parker de coroa na cabeça, é o que imagino. Ao fundo da rua, existe um templo ortodoxo, todo encarnado. Não sei se devido a um disfarce comunista. Mas o que me chama a atenção é um slogan inscrito em letras douradas na base da montra de uma loja de roupa. Mais uma vez, as grandes traduções de chinês para inglês macarrónico assumem protagonismo cultural nas Letras chinesas. Esta diz simplesmente "Origin from create. Enjoy the personailty. It is the fashion. Lapidar, eloquente, definitivo. E depois surpreendem-se com as minhas dificuldades em lidar com ementas de restaurantes chineses.


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