Um tempo houve em que a natureza humana pedia mudança constante. Sem raízes, tribos de primatas que se tornariam humanos vagueavam em busca de recursos e vivendo um dia de cada vez, um lugar a cada dia. Com o advento da civilização, cidades e aldeias foram fundadas pelo desgaste que um estilo de vida nómada causava nos nossos corpos e nas nossas relações um com o outro. Em vez de rivalidades móveis, passámos a implicar de maneira estacionária; e é dessa forma que a casa se tornou um monumento à inércia. A qualquer um que se ofereça um emprego ideal, a maioria terá como condição um local para assentar e passar a vida na rotina do mesmo. Algo que eu entendo muito, sendo por enquanto professor - função que me obriga a ser uma espécie de emigrante dentro do meu próprio país à conta do Ministério da Educação. Apela-me pouco, mesmo sendo de História nem todos os apelos do meu humano primitivo ainda batem fundo, mas tenho um amigo que tem feito dos últimos anos uma imensa tômbola de países e não quer agora outra coisa. Trabalha para viver os dias, para viajar, para comer e se hoje está, por exemplo, na Austrália, amanhã pode aparecer no Vietname e duas semanas depois na Macedónia. Sente-se feliz por vaguear sem vagabundear, por conhecer. Quando me gabam a coragem de embarcar para países longínquos, diferentes, sinto.me sempre um berlinde. Porque coragem tem ele: ele vive de facto, eu apenas estaciono e pago tarifa para ir estando. O nomadismo, apesar do que pensamos, não é assim tão incomum. Deverão existir ainda hoje entre vinte a trinta milhões de nómadas em todo o mundo, a maior parte na Ásia. Vão desde os mongóis que passeiam yurts de um lado para o outro até às tribos removidas da civilização das selvas amazónicas ou indonésias. A palidez da roupa beduína sobressaindo no calor dos desertos africanos; a adoração fiel que os Tingit do Alasca têm pelo mar e seus recursos; os Nukak-Maku, que nas profundezas da Amazónia colombiana ainda vivem como caçadores recolectores de há milénios. Ainda é um grupo numeroso de gente que prescinde de compromisso com um local, e nem sempre porque sejam forçados a isso. Na verdade, o avanço do chamado progresso quer muitas vezes, e à força, retirar estes errantes de algo que herdaram de gerações, e conhecem no seu sangue num depósito cultural de séculos, essa vontade inegável de partir e buscar, de trânsito permanente de sítios. Mas eles resistem; e penso sempre que eles têm aquela vantagem que perdemos com a nossa confiança cega em tecnologias, aquela manha de sobreviver que hoje entregamos a circuitos de silicone e sinais de satélite. Na eventualidade de um cataclismo, serão estes habitantes da realidade que reerguerão o mundo, não a nossa inépcia perante o desastre, procurando com desespero a muleta do telemóvel como solução para todo. O mundo é dos nómadas, e não apenas nos seus caminhos.
Por isso sempre me despertaram curiosidade. Quando visitei o Quirguistão, em 2016, pude observar o seu modo de vida, a maneira como Inverno e Verão não são apenas ocasiões para mudar roupa do armário. Marcam um ciclo, marcam um momento: a altura de mudança. Seguem o ritmo das estações e da Natureza, não sendo menos empáticos ou pais por isso. Têm as mesmas preocupações do que eu ou tu que estás a ler, honestas e preocupadas. Apenas escolhem outro meio de cuidar delas. No planalto tibetano, este estilo de vida ainda está presente, o que acaba por me fazer sentido pois as condições naturais são muito semelhantes: relevo montanhoso, vales de planalto verdejantes, cursos de rio e lagos produto do degelo das neves e dos glaciares. Viver aqui significa perceber como estamos dependentes do planeta. Talvez fizesse bem a alguns decisores umas semaninhas afastados de tudo. Depois de conhecer o lado místico desta região, o dia foi tirado para visitar o Tibete real. Num passeio algo fora de tudo, vamos visitar algumas comunidades nómadas que ainda vivem nas planaltos montanhosos, num estilo de vida muito puro e próximo daquilo que era há dezenas de anos, centenas até. Saímos a meio da manhã e antes de nos aventurarmos para lá as casas e aldeias, paramos junto ao Lago Gahai, uma pequena área pantanosa localiza na reserva natural do mesmo nome. É um local de biosfera muito específica e pode ser observado a partir da estrada. Aproveitamos para umas fotos, com uma vista que fantástica muito verde. Uns passadiços de madeira contornam umas das margens do lago, com pontos de observação espalhados por um percurso que se espalha por meio quilómetro. Conseguimos observar alguma aves pernaltas, nomeadamente a garça de pescoço negro, uma das aves mais raras do continente asiático. Acredito, pela quantidade de água aqui localizada e o número de pequenos rios e riachos que aqui desaguam, que este deve ser um local muito importante para as comunidades locais, agricultores e pastores à cabeça. Mas para mim, que só vejo tudo isto como um festim para os olhos, descanso a vista e até algo mais. Depois da melancolia da tarde anterior, sinto uma necessidade visceral de acalmar; e para mim, o bálsamo maior é a distância do mundo e a essência do mesmo. A paisagem, a minha reunião comigo. No regresso aos carros, más notícias para alguns: avaria. Os condutores dão voltas debaixo do capot mas o problema não se resolve assim. Esperamos uns minutos pela chegada de uma nova viatura. A nossa sorte foi de estarmos ainda a pouca distância de Xiahe, o que não atrasou muito o tempo que temos para passeios e explorações. A estrada recebe.nos novamente e depois de quilómetros de pavimento lisinho e bem tratado, um desvio para a direita leva-nos a um pequeno aldeamento centrado numa escola e num recinto de feira. A partir daqui, a civilização passará a ser gradualmente um rumor. A estrada continua, mas os buracos dão-lhe o aspecto do couro malhado de uma vaca.
Ainda são algumas dezenas de quilómetros nisto. A velocidade diminui em obrigatoriedade, a paisagem não muda, mas acalma. O único toque da mão humana está em cercas de arame e casebres de madeira. Mesmo as habitações se tornam portáteis: é frequente vermos montadas tendas iglo à beira da estrada, abrigos de pastores que saíram para dar um giro com os seus rebanhos. Em ocasião, carrinhas com antenas de televisão, sinais de habitação da maneira mais liberal de usar a palavra. Mas para mim, a principal mudança é a liberdade total de câmaras e microfones. Não se vê um único poste que não seja de electricidade. O Estado chinês demitiu-se das tarefas de vigilância, ainda que a sua presença seja sentida pelos nómadas tibetanos de outras maneiras. Primeiro, numa manobra que percorreu todo o Tibete e até zonas próximas como Sichuan - conhecida como a província dos pandas - tentou forçar todos os nómadas a instalar-se nas cidades. Não resultou, porque, como seria de prever, estamos a falar de uma cultura de milénios que nem o todo poderoso estado chinês pode terminar por decreto. E porque é que não resultou? Porque embora toda a esta gente aproveite o Inverno para usufruir de todas as comodidades oferecidas pela vida urbana, como electricidade e a beleza que é o consumismo, chegado o Verão as suas casas ficam desertas e lá regressam eles aos prados e às montanhas. Na verdade, se perguntarem a alguns, nem gostam de viver em casas. O mundo é a sua casa, e chega e já é muito. Têm uma responsabilidade maior para com os seus animais, levá-los até aos pastos férteis e fartos para que não morram à fome. A partir da estrada que percorremos, algumas manadas são bem visíveis e em ocasião, abrandamos ainda mais para que algum grupo de iaques se abra de par em par como se fosse o Mar Vermelho bovino. Imagino que ser nómada é também não ser egoísta, perceber que se faz parte de algo muito maior e que somos apenas um pecinha que faz tudo funcionar se fizermos o que nos cabe. Há algo de humildade nisto, uma espécie de submissão diferente da religiosa. Na verdade, é abdicar do controlo para tomarmos conta de coisas muito mais importantes do que o ego. Nalguns pontos do Tibete Chinês, o Governo construiu uns parques aventura para que qualquer um possa ver in loco como se vivem estes costumes ancestrais... ainda que, à vista de todos, faço os possíveis por eliminá-los. Mas aqui em Gansu, não encontraremos nada disso. Do lado direito vejo um pequeno ribeiro que atravessa um verde vivo que flui e existe bem. Torna-se também visível um conjunto de yurts, guardados por cães e rodeados de animais. À porta de um, algumas pessoas trabalham, lavam louça. O céu ameaça chuva, carrega de nuvens o ambiente. É o nosso primeiro ponto de paragem.
Somos recebidos por um homem jovial, mas que já deve ter uns quarenta anos. Abre-nos a porta da sua tenda e é como se nem fossemos estranhos. Há uma divisão em duas partes: do lado esquerdo, o espaço de trabalho, principalmente culinário. Existe um fogão a lenha, com uma chaminé que sobe até desaparecer por um buraco no topo da tenda. Do lado direito, tapetes espalhados pelo chão indicam a sala de estar, espaço para receber e onde nos convidam a sentar. Reparo imediatamente, porque se torna impossível de ignorar, num armário mesmo à nossa frente onde se destaca uma fotografia A3 do Dalai Lama, sorrindo, abençoando. Ali mesmo à descarada, sem medo. Um sinal óbvio de que as autoridades chinesas não devem passar aqui muitas vezes; ou então um gesto de coragem e arrojo que marca uma posição bem vincada. De que, afinal a uniformização cultural não tem lugar aqui onde a civilização é só fumo branco. Para nos aquecermos, oferecem uma tigela de leite que passa entre nós. Experienciado por outras aventuras, presumo que é leite fermentado, e é mesmo. Oportunidade de passar a quem está ao meu lado. Uma mulher, enquanto nos aquecemos, vai amassando algo que, descubro depois, é um pão feito com leite de cabra. Pelo menos não é de égua. Apesar do frio que faz lá fora, e de um vento que ruge na violência dos sopros e faz tremer a lona, o espaço e o ambiente é bastante acolhedor. Vamos perguntando acerca de como vivem a vida e o homem que nos recebeu, num inglês fluente, esclarece e responde. É incrível como no fim do mundo se domina melhor uma língua estrangeira que nesses locais onde há escolas e meninos que vivem como deve ser. Questiono-o mesmo acerca disso e explica que aprendeu na tenda, com uma professora que percorre as comunidades nómadas e dá aulas aos meninos e meninas que assim queiram. Diz que hoje em dia já há menos professores, mas que ele próprio vai ensinando os próprios filhos nas coisas básicas e também na cultura e religião dos seus ancestrais. Quando chamado à atenção do descaramento da foto do líder religioso budista, encolhe os ombros. Ninguém nota; e também, quem é que vem aqui? Estamos a quarenta quilómetros da cidade mais próxima e não há aqui nada que interesse. Aqui estamos sossesgados, livres e sem chatear ninguém. E penso que, se calhar e enquanto não chatearem, também podem por ali estar. Noutras regiões tibetanas, têm acontecido demonstrações públicas de descontentamento, nomeadamente episódios de auto-imolação de monges em templos. Mas aqui não. Tudo tem estado relativamente calmo; e por isso mesmo, o pão que a mulher elabora não deve ter rugas de tensão.
Mas enquanto não há pão, cria-se agitação. Como a chuva parou, inventa-se o passeio, só mesmo para sentir este ar puro da montanha e mergulhar os pés no verde da erva. Um pequeno percurso até ao topo de um montículo aguarda-nos e a guia será a filha do casal, uma jovem que desde que cheguei não deixou o telemóvel por um segundo. Uma túnica púrpura envolve-a e por cima dela, um kispo da mesma cor. Pelo menos, faz pendant. Saimos do yurt e ela aponta-nos o topo do monte que será o destino dos nossos passos. A distância não deve passar os seiscentos, setecentos metros e é linear o suficiente: primeira parte plana até a terra inclinar gradualmente. Este é também um parte da zona de pasto, pelo que devemos ter cuidado não apenas com animais, como com cercas. Nem todos se dispõem ao desafio, somos oitos. O frio arrepia e o vento forte continua constante, logo parecemos múmias. No entanto, entre piadas e boa disposição, os elementos são enfrentados e a nossa guia, negligente para com a sua tarefa, continua vidrada no ecrã do telemóvel. A China não chega cá de uma maneira, mas planta-se de outra. Espertos. A altitude sente-se, mas de fininho e como tal, engreno um passo que me permite distanciar do resto do grupo. Olho para trás e alguns meteram conversa com a jovem; esta mostra-lhes qualquer coisa no seu aparelhinho móvel, que mais tarde me contam ser uma foto do namorado e algumas outras imagens dela mesma em cenários bem mais de veraneio do que este e com bem menos roupa. Estranha como a noção de privacidade se mantém por aqui, embora reflectida de outra maneira diferente. Depois de alguns desvios - porque a nossa guia não guia, é apenas esguia - atingimos o objectivo. Alguns deitam os bofes, mas não dão o tempo por mal empregue, pois a paisagem é incrível. Conseguimos observar um verde que se estende por dezenas de quilómetros, sem grandes elevações, mas num vale articulado extenso, onde ocasionalmente se vêem iaques e cabras em rebanhos e manadas pastando. São reticências num mundo que se nos abre sem finais ou parágrafos, apenas exclamações. Fotografo o que parece monotonia, mas é na verdade uma terra que respira, numa liberdade condicionada, mas ainda assim liberdade. Percebo o apelo de não permanecer num só local, a vontade de expandir o horizonte e descobrir o que existe para lá do limite da visão. A paisagem cria apetite, recusar o sedentarismo é uma maneira de matar a fome. Enquanto bato umas chapas. a dama do telemóvel surge à minha frente, de um lado para o outro. Imagino que procura o melhor local para ter rede. Quando pára, cria um contraste de cores incrível, que lhe é alheio porque só existe o que vê num pequeno quadrado com luzes e pixels. Mas fico com ela numa imagem, e com uma terra que é dos seus pais e que será talvez sua, embora me pareça que a sua cabeça é nómada para outro género de vida diferente daquela que a sua família escolheu como sua e os orgulha. No regresso, ninguém cai. Nem mesmo ela. O corpo, mesmo sem ver, já deve ter criado um piloto automático seguro.
Somos recebidos por um homem jovial, mas que já deve ter uns quarenta anos. Abre-nos a porta da sua tenda e é como se nem fossemos estranhos. Há uma divisão em duas partes: do lado esquerdo, o espaço de trabalho, principalmente culinário. Existe um fogão a lenha, com uma chaminé que sobe até desaparecer por um buraco no topo da tenda. Do lado direito, tapetes espalhados pelo chão indicam a sala de estar, espaço para receber e onde nos convidam a sentar. Reparo imediatamente, porque se torna impossível de ignorar, num armário mesmo à nossa frente onde se destaca uma fotografia A3 do Dalai Lama, sorrindo, abençoando. Ali mesmo à descarada, sem medo. Um sinal óbvio de que as autoridades chinesas não devem passar aqui muitas vezes; ou então um gesto de coragem e arrojo que marca uma posição bem vincada. De que, afinal a uniformização cultural não tem lugar aqui onde a civilização é só fumo branco. Para nos aquecermos, oferecem uma tigela de leite que passa entre nós. Experienciado por outras aventuras, presumo que é leite fermentado, e é mesmo. Oportunidade de passar a quem está ao meu lado. Uma mulher, enquanto nos aquecemos, vai amassando algo que, descubro depois, é um pão feito com leite de cabra. Pelo menos não é de égua. Apesar do frio que faz lá fora, e de um vento que ruge na violência dos sopros e faz tremer a lona, o espaço e o ambiente é bastante acolhedor. Vamos perguntando acerca de como vivem a vida e o homem que nos recebeu, num inglês fluente, esclarece e responde. É incrível como no fim do mundo se domina melhor uma língua estrangeira que nesses locais onde há escolas e meninos que vivem como deve ser. Questiono-o mesmo acerca disso e explica que aprendeu na tenda, com uma professora que percorre as comunidades nómadas e dá aulas aos meninos e meninas que assim queiram. Diz que hoje em dia já há menos professores, mas que ele próprio vai ensinando os próprios filhos nas coisas básicas e também na cultura e religião dos seus ancestrais. Quando chamado à atenção do descaramento da foto do líder religioso budista, encolhe os ombros. Ninguém nota; e também, quem é que vem aqui? Estamos a quarenta quilómetros da cidade mais próxima e não há aqui nada que interesse. Aqui estamos sossesgados, livres e sem chatear ninguém. E penso que, se calhar e enquanto não chatearem, também podem por ali estar. Noutras regiões tibetanas, têm acontecido demonstrações públicas de descontentamento, nomeadamente episódios de auto-imolação de monges em templos. Mas aqui não. Tudo tem estado relativamente calmo; e por isso mesmo, o pão que a mulher elabora não deve ter rugas de tensão.
Mas enquanto não há pão, cria-se agitação. Como a chuva parou, inventa-se o passeio, só mesmo para sentir este ar puro da montanha e mergulhar os pés no verde da erva. Um pequeno percurso até ao topo de um montículo aguarda-nos e a guia será a filha do casal, uma jovem que desde que cheguei não deixou o telemóvel por um segundo. Uma túnica púrpura envolve-a e por cima dela, um kispo da mesma cor. Pelo menos, faz pendant. Saimos do yurt e ela aponta-nos o topo do monte que será o destino dos nossos passos. A distância não deve passar os seiscentos, setecentos metros e é linear o suficiente: primeira parte plana até a terra inclinar gradualmente. Este é também um parte da zona de pasto, pelo que devemos ter cuidado não apenas com animais, como com cercas. Nem todos se dispõem ao desafio, somos oitos. O frio arrepia e o vento forte continua constante, logo parecemos múmias. No entanto, entre piadas e boa disposição, os elementos são enfrentados e a nossa guia, negligente para com a sua tarefa, continua vidrada no ecrã do telemóvel. A China não chega cá de uma maneira, mas planta-se de outra. Espertos. A altitude sente-se, mas de fininho e como tal, engreno um passo que me permite distanciar do resto do grupo. Olho para trás e alguns meteram conversa com a jovem; esta mostra-lhes qualquer coisa no seu aparelhinho móvel, que mais tarde me contam ser uma foto do namorado e algumas outras imagens dela mesma em cenários bem mais de veraneio do que este e com bem menos roupa. Estranha como a noção de privacidade se mantém por aqui, embora reflectida de outra maneira diferente. Depois de alguns desvios - porque a nossa guia não guia, é apenas esguia - atingimos o objectivo. Alguns deitam os bofes, mas não dão o tempo por mal empregue, pois a paisagem é incrível. Conseguimos observar um verde que se estende por dezenas de quilómetros, sem grandes elevações, mas num vale articulado extenso, onde ocasionalmente se vêem iaques e cabras em rebanhos e manadas pastando. São reticências num mundo que se nos abre sem finais ou parágrafos, apenas exclamações. Fotografo o que parece monotonia, mas é na verdade uma terra que respira, numa liberdade condicionada, mas ainda assim liberdade. Percebo o apelo de não permanecer num só local, a vontade de expandir o horizonte e descobrir o que existe para lá do limite da visão. A paisagem cria apetite, recusar o sedentarismo é uma maneira de matar a fome. Enquanto bato umas chapas. a dama do telemóvel surge à minha frente, de um lado para o outro. Imagino que procura o melhor local para ter rede. Quando pára, cria um contraste de cores incrível, que lhe é alheio porque só existe o que vê num pequeno quadrado com luzes e pixels. Mas fico com ela numa imagem, e com uma terra que é dos seus pais e que será talvez sua, embora me pareça que a sua cabeça é nómada para outro género de vida diferente daquela que a sua família escolheu como sua e os orgulha. No regresso, ninguém cai. Nem mesmo ela. O corpo, mesmo sem ver, já deve ter criado um piloto automático seguro.
O pão estava óptimo. Mas não nos enche o bucho. Continuamos
a precisar de algo mais substancial. De um almoço. Despedimo-nos dos
hospitaleiros nómadas e seguimos a estrada dos mil buracos. Não tem tijolos amarelos, mas, como descobrimos uns quarenta minutos mais tarde, vai dar a Oz. Uma espécie, pelo menos. Um conjunto de casas a que hesito chamar de aldeia, sem ruas organizadas, mas claramente com uma população, por muito transitória que seja. São habitações do fim do mundo, ou pelo menos do entroncamento que pode levar ao vim do mundo. Quatro caminho chegam aqui e em qualquer um que a vista repouse, não encontra um fim. É como se conduzissem todos aos infinito, embora saiba que isso não é possível, quanto mais não seja porque acabámos de chegar aqui através de um. O condutor do nosso carro aponta-nos para um casebre, paredes de cimento e telhado de madeira com placas de zinco. Um alpendre exterior está coberto e por isso, alguns homens, com vestimentas que para mim são exóticas, beberricam chá e umas cervejas. Ergo o braço em jeito de saudação e os olhares de estranheza dão lugar à curiosidade sobre a minha figura. Instalamo-nos num espaço interior e após sentarmo-nos à mesas, separados conforme os lugares existentes, tenho vagar para estudar este micro-cosmos. Quase toda a gente tapa a cara, seja com máscaras cirúrgicas ou com panos e lenços. Se não soubesse melhor, diria que entrei na série "Naruto". Chapéus de feltro altos, grossas samarras, casacos pretos e dourados. O tecto em padrão xadrez vermelho e branco, paredes cobertas com um papel saído do século XVI: Mas há televisão e é LCD. Aliás, tecnologicamente nem me queixo, uso a rede wifi mais confiável da viagem até agora. Alguém vem à mesa informar sobre as duas únicas hipóteses de refeição e escolho noodles, naquela que será a minha estreia. Sim, nunca comi noodles e vou fazê-lo pela primeira vez na China. Sou mesmo patrão. Todas as mesas têm pauzinhos à disposição, logo não preciso de me preocupar com isso. Então, a sala pára com a entrada de três figuras, das quais se destaca com naturalidade um homem que só posso descrever como um Johnny Depp chinês. Apolíneo na pose, esplendoroso no guarda-roupa, é um rebelde sem causa na estepe. Quando se senta, fixa os olhos nestes ocidentais que ocupam o espaço. Não mostra qualquer tipo de distância, lida connosco como se lhe fôssemos naturais. A comida chega e já ele aceita pedidos de fotografias. Dez minutos depois, senta-se junto ao Mário e olha-o embevecido enquanto este fala e se explica numa língua que ele não entende. Ainda que não peça isso, domina tudo e acho que até me esqueci dos noodles (recordei-me agora, estavam bons) enquanto observo a cena decorrendo. Isto é uma espécie de Cheers tibetano e esta figura, não sendo empregado de balcão, é o Sam Malone do sítio, concentrando atenções, piscando o olho às garotas. Dono deste fim do mundo, representa o exotismo que encontramos quando abandonamos o caminho seguro e trilhado, quando vamos um bocadinho para lá da realidade. Encarna muito do que me faz viajar, mesmo quando me sinto no poço, mesmo quando me sinto estrumeiro. Pela oportunidade de estar onde o inusitado acontece e não apenas vê-lo através de um ecrã ou ouvido numa história contada.
No regresso a Xiahe, o tempo não melhora e a chuva forte fustiga várias pessoas que caminham no nosso sentido. São peregrinos, que ainda têm umas boas dezenas de quilómetros para fazer, sem qualquer abrigo de permeio. Ainda apanhamos alguns ciclistas também, mais equipados. A minha mente regressa à relação entre religião e dor, mas rapidamente se dispersa na beleza da paisagem, na liberdade da mesma. De como mesmo com aquela dor do lado esquerdo que circula também na minha barriga, é a paisagem que me torna nómada, pelo menos nessa difusa noção que é a alma. Preso a mim próprio, e a pesos que há demasiado tempo me contorcem e estacam, talvez seja nesta busca pela próxima visão que encontro algum tipo de solução para o problema. Não considero isso um motivo suficiente para peregrinar ou me converter, mas pelo menos, é algum tipo de epifania. Buda já devia contentar-se com isso.
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