segunda-feira, agosto 23, 2021

Georgia on my blog 2: Penitência


Para alguém a quem é regularmente requisitado um relato das viagens que faz, sou um péssimo viajante. Digo-o várias vezes e praticamente ninguém acredita. Mas é verdade. Os grandes viajantes, pelo menos aqueles que leio e que conheço e que sigo, têm um grande sentido de aventuras e disponibilidade. Alinham em tudo e arriscam, são arrojados, estão lá para disfrutar das diferenças. Eu pertenço a um clube diferente, que não tem todas as modalidades; e uma delas é a da alimentação. Dizem que a comida é uma óptima maneira de percorrer um novo país, mas aí sou turista de sofá. Tenho vários problemas de gosto e desgosto, desgosto na maioria, que me cortam a iniciativa no que à culinária concerne. Petisco aqui e ali, mas com o cuidado de um celíaco deixado numa feira de francesinhas. Mas gosto de saber o que é o quê, os ingredientes, a alma de um país nos excessos e ascetismos alimentares; e até mais do que ns restaurantes ou bancas de rua, um bom método de conhecê-los é através dos pequenos-almoços nos hotéis onde durmo. Invariavelmente, há um buffet onde o hóspede pode livremente escolher o que mete na pança. Em quantidade e género. O “Brim”, o nosso primeiro hotel na Geórgia, oferece uma vasta gama de panificação, desde o universal pão de forma até outros de sementes ou mistos. Há também panquecas para gulosos. O queijo abunda, juntamente com os enchidos, mas há também pratos com quadrados de manteiga e vários potes de doce. A fruta faz-se representar pela família dos melões, em três géneros. Para beber, há café, chás vários e noto que existe o hábito de beber o leite frio, não quente, e se o quisermos, temos mesmo de pedir, não está disponível para consumo imediato. Presumo que não seja parte tão integral dos pequenos-almoços caucasianos como dos nossos. Há alguns bolos e tartes também, que considero sábio afastar-me logo na minha estreia. Um contacto medido, calculado. O suficiente para alimentar o corpo para um dia longo, cansativo, de tonificação das pernas. Sento-me algures juntos dos meus companheiros e viagem. Optei por pão de sementes com manteiga e uma caneca de leite. A simplicidade que Buda tão bem apregoava. Talvez Buda fosse um cobardolas alimentar como eu. Os historiadores deviam pesquisar sobre isso.

À saída do hotel, é visível o Palácio da Presidência da Georgia e uma rua que desce em direcção ao centro da cidade. Mas a opção é subir. A uma certa distância, avisto uma cruz no topo de um texto triangular muito angulado. É a pontinha da Igreja da Santíssima Trindade de Tbilisi, conhecida popularmente por Sabema. Os georgianos são uma população profundamente religiosa, em sentimento e em preconceito. Semanas antes de ter aqui chegado, uma marcha do orgulho gay foi cancelada porque os seus organizadores foram atacados por elementos da extrema-direita política local, provando para lá de quaisquer dúvidas o quanto os partidos de extrema-direita têm lugar numa sociedade democrática. A marcha fazia parte de um evento de cinco dias, organizado para celebrar as várias e distintas identidades sexuais do país. Indivíduos menos abertos à iniciativa simplesmente invadiram o escritório dos organizadores, num terceiro andar, uma boa parte dos sevandijas trepando as paredes exteriores, partindo tudo, agredindo gente – incluindo jornalistas – e queimando os símbolos identificativos da comunidade gay. Não é como se o ataque fosse inesperado u até uma aberração dentro dos sinais que o Governo dera. O primeiro-ministro do país, Irakli Gharibahvili, avisara que tais demonstrações de orgulho seriam vistas como inaceitáveis para a generalidade dos habitantes do país. A Igreja Ortodoxa, principal entidade religiosa da nação, invocara um dia nacional de oração contra a marcha, como se algures uma entidade divina tivesse feito da sua vida uma missão contra quem é diferente. A ironia maior é que apesar de tudo, Tbisili tem uma orgulhosa comunidade gay, sem grande medo de demonstrá-lo em público. Nos dias que passei na cidade, vi várias vezes casais de pessoas do mesmo sexo passeando de mão dado, beijando-se e acariciando-se em público; e os anos anteriores viram marchas e festivais de orgulho desenrolando-se na cidade. Ocasionalmente com problemas, outras vezes pacificamente. Mas a estratégia de quem usa a violência para calar o que se celebra na diferença é precisamente obrigar a esconder, a ocultar… o que nunca deu bom resultado, pelo que sei da História. Quase como se a ignorância fosse morte, e em várias maneiras até, estes ogres são prova disso. Os ogres em questão mexem-se no espectro da extrema-direita e nas mangas da Igreja Ortodoxa nacional, que a pretexto de valores tradicionais e outros que, baseados num livros escrito há milhares de anos por povos antigos com uma concepção de vida muito diferente da nossa, são arcaicos e retrógrados, pretendem impor uma visão do mundo que nem sequer se pode chamar de antiquada, visto que até povos antiquados como os Gregos e os Romanos a aceitavam.

A Igreja da Santíssima Trindade é de 2004, recente para os padrões dos grandes edifícios religiosos que conhecemos; mas é um dos mais largos edifícios religiosos do mundo e a terceira catedral ortodoxa mais alta de toda a cristandade. Sendo recente, a ideia foi sintetizar no seu desenho algumas das grandes tendências da monumentalidade da fé georgiana. A início da sua construção, em 1989, marcou uma afirmação da identidade nacional, baseada na religião, contra a opressão soviética e num país que adoptou uma bandeira com cinco cruzes de São Jorge, não é difícil perceber a motivação e o sucesso da escolha. Porque a minha religião é melhor que a dos outros, o Patriarcado de Tbilisi decidiu destruir um cemitério arménio que se encontrava no local, que por sua vez já tinha sido vandalizado pelos soviéticos. É de notar que os Arménios são ortodoxos, mas de um ramo diferente dos georgianos. Os países são vizinhos e, no que talvez não seja coincidência, ambos reclamam para si o título de primeiro país cristão em toda a História. Como o Cristianismo revela paz e amor, claro que os Georgianos optam pelo preconceito e desprezo. É algo tão velho quanto o próprio tempo e chama-se subjectividade. Claro que Cristo falava da amizade entre os povos, mas será que alguma vez conheceu um Arménio? Pois. Portanto, a Georgia sentiu-se legitimada a destruir um importante património histórico e espiritual num bairro historicamente arménio. Acho sempre curioso como a construção de um edifício simbólico pode reflectir o espírito de uma comunidade, a sua caminhada; e concretização desta Igreja acompanhou os avanços e recuos do progresso da Georgia, dentro dos seus problemas e tumultos e guerra civil, avançando e parando conforme os ímpetos da estabilidade. Daí só ter ficado completada em 2004. É estranhamente simples nas suas linhas. O complexo que a rodeia inclui as residência do Patriarca de Tbilisi, um jardim, um mosteiro, um seminário e outra logística de apoio a fiéis e peregrinos. Há um portal de entrada ainda longe da própria igreja e temos de percorrer a distância que os separa agredidos pelo sol da manhã, quente, deixando antecipar um dia de calor abafado. Ainda são nove e meia da manhã e já estou a suar como se fosse um gato num bairro recheado de restaurantes chineses.

Depois de algumas fotos, ouço um murmúrio grave e com o ritmo regular de um metrónomo vocal. Não reconheço a língua, como tal deve ser georgiano. Sinto-o planando do interior do edifício e não estou sozinho. À entrada, duas senhoras idosas vestidas de preto parecem pensar sobre as suas escolhas de vida; e o negro é a cor que mais se repete no vestuário de quem está e de quem chega. O espaço é largo e muito alto, sem decoração na pedra que não linhas directas, verticais, relevadas. Em cada uma das seis colunas interiores, olha-nos o desenho berrante de um ícone ortodoxo, invariavelmente um idoso de túnica azul segurando uma relíquia e um livro com os olhos tenebrosos de quem julga sem vergonha, de quem pede penitência e não dá clemência, só oportunidade. Na parede sobre o altar, há uma gigante versão de um destes ícones, um imenso homem de vermelho e ciano que ergue a mão em bênção. É Jesus, o Nazareno. Por debaixo, numa versão menor, o patrão maior do Cristianismo ensina alguns históricos patriarcas ortodoxos, provavelmente na melhor maneira de conseguir comida infinita. Enquanto capto estes pormenores, os cânticos tornam-se opressivos, inescapáveis, pesados. A ideia parece são ser celebrar, mas punir. Vigiar e punir. Não há instrumentos, apenas vozes de homens, das profundidades de uma caverna já de si profunda, clamando num idioma que me é estranho pela vibração do arrependimento. Os fiéis presentes alternam entre o macilento e o dramático. Enquanto passeio, não ouso fotografar, a não se alguns cliques discretos que carrego com a máquina junto ao peito. Não sou cristão, mas momentos de devoção carregada de desespero de alguma forma comovem-me num certo antro cá dentro que não sei bem como apagar. Tenho simpatia por quem chega ao fim do caminho e só encontra de bom para si o inacreditável. É preciso atingir um certo ponto de angústia, ou de crença inquestionável, para se ser religioso. As instituições religiosas costuma jogar com isso, com essas duas capacidades: a de perder a esperança num saco roto ou a de se entregar sem qualquer tipo de hesitação ao que é incompreensível. Sei-o racionalmente, devia olhar para estas pessoas como papalvos, e sei que parte de mim o faz e fará e está a fazer enquanto escrevo isto. Mas quando beijam os quadros e as figuras com devoção, e total desrespeito para com as regras higiénicas contra a COVID-19, quando estacam minutos desfilantes numa tentativa de desfibrilhar a vida pelas letras que constam num pequeno livro de oração, quando mulheres entram de cabeça coberta numa reverência maquinal, há algo que não se consegue bem transmitir nas palavras e que só as grandes mentiras permitem: a comunhão de uma ilusão que não percebe nem entende, mas que se abraça sob pena de vivermos mais solitários, mais abandonados. Dando uma volta a pé pelo espaço da igreja, vejo bastantes pessoas. Sou apertado por cada nota musical cantada, num momento que me é raro deixo-me deslizar à maneira de uma bola que num jogo de bilhar se encaminha para o buraco, mas bate três vezes nos cantos e sai. Observo, tentando não invadir o espaço de cada um. Reparo que sentado uma cadeira, um homem ricamente vestido, preside a tudo com uma cara menos beatífica e mais feroz. Barba de derviche, longa e grisalha, óculos redondos e uma postura de quem está muito para lá de oferecer consolo. Sinto que os ícones espalhados, atrás de vidros, limitados por molduras, oferecem mais empatia que aquela figura. O momento é solene, tem a sua beleza, mas até naquele antro interior cuja localização me é desconhecida, entendo que o que vejo no mundo está para lá das vibrações da voz que empurra para as brasas. Sem pressa, com paciência, encaminho-me para a saída. O espaço luminoso não esconde as ondas tenebrosas de uma ortodoxia escura, à moda eslava, mas perdida entre a Europa e a Ásia. Um cristianismo feito por gente dura e dada ao sacrifício, cuja História está carregada de episódios de abnegação perante uma força maior, como se o indivíduo se submetesse a vontades insondáveis de morte alheira para a celebração de valores universais se o universo estivesse mais carregado de anãs vermelhas de sangue do que de supernovas de esperança. Oferecem algo naquela igreja, mas não vou aceitá-lo, porque há algo em mim que se repele quando vê mulheres cobertas de negro da cabeça aos pés como se essa fosse a sua única missão enquanto vivas. Antes de me retirar, a última imagem que me fica é a de uma idosa encostada a uma coluna, em transe, com um caderninho nas mãos que lê em sofreguidão existencial. As carnes da cara afundam nos espaços entre os ossos do crânio e por momentos, sinto que quanto mais reza, mais paga em saúde física. Dias depois de ter voltado de viagem, a face daquela pessoa ainda me lança em inquietações sobre o mundo. Quando li pela primeira vez sobre a vitória dos Taliban em Cabul, foi nela que pensei. Gente que parece viver, mas que na verdade se esfuma numa altar pírrico como filhos de um deus menor, desconhecido e inconcebível no seu desprezo e da sua indiferença perante o que é realmente importante. Nós.

                                     

Uma rua, do nosso lado esquerdo, atravessa um bairro antigo de Tbilisi e é por ela que vamos aceder ao centro da capital. Casas velhas e decrépitas alternam com casas destroçadas. Tijolos persas associam-se a novas cores berrantes e há, espreitando de portas espaçadas, desejos de transformação turística. Existem ocasionais negócios, mas acima de tudo a confusão que aprendi a associar às cidades asiáticas, um caos organizado onde todos se entendem, menos os pobres estrangeiros que não receberam o manual. A certo ponto sinto-me a alucinar, porque juro ter visto condutores em posições diferentes de veículos. Uns guiando à esquerda, outros à direita; mas percebo que é o comum, que os carros com volante destro são mais baratos e afinal, uma das grandes capacidades do ser humano é a adaptação. Passamos por um pequeno parque onde velhotes jogam à sueca e continuamos a descer, ladeados por trânsito aleatório até um pequeno miradouro que oferece uma vista de grande quilate sobre o parque Rike, um dos locais mais frequentados de Tbilisi. Situado junto ao rio Kura, é um espaço para se estar e ficar, muito verde, com fontes luminosas, um skate park e várias construções de aspecto modernaço. É um dos símbolos da transformação da Georgia numa pátria de inspiração ocidental, europeia, contemporânea. Tenta fazer pelos seus habitantes o que a perseguição de gays desfaz rapidamente. O parque têm outros objectivos simbólicos. Visto numa perspectiva aérea, e é possível fazê-lo através de um balão estacionado mesmo no centro da área, cria um mapa em grande escala da Georgia, com as suas linhas fronteiriças regionais. Espalhados pelo espaço, há objectos curiosos e claramente colocados para oportunidades fotográficas: um grande piano branco de mármore, um tabuleiro de xadrez gigante com peças a condizer e uma sala de espectáculos construída para se destacar, pois termina em dois mastodônticos tubos de metal que dominam o lado leste do parque. Brincam com a opinião alheia acerca da sua harmonia ou cacofonia relativamente ao espaço. Mas destacam-se e convidam-nos a explorar e ver. Todo este espaço chama-se, apropriadamente, a Praça da Europa. É um piscar de olho à União Europeia, um convite ao convite. Uma demonstração de simpatia pela Europa ou a reflexão da ideia de que se a Polónia e a Hungria podem fazer parte dos valores europeus, porque é que não temos os mesmo direito?

                                   

O miradouro é um varandim onde podemos tirar fotos  e contemplar os elementos mais evidentes do parque e também a outra margem do rio, que visitaremos de seguida e inclui o que de mais importante compõe o seu centro histórico. É o nosso objectivo seguinte. Temos de descer umas escadas íngremes, atravessar o parque e depois o rio. Vou presumir, porque adoro presumir sem certezas, de que existe uma ponte para atravessar. É a beleza da presunção do que não se sabe, a esperança e a fé de que existe. Enquanto caminhamos, vejo crianças brincando, artistas de rua, vendilhões que não do templo. Neste parque, Tbilisi é uma cidade de tempo que há-de vir e não o amontoado confuso de casas inabitáveis onde mora gente, de poeira e sujidade que vi no caminho que desci. Da mesma forma que se pode perceber muita coisa sobre um por aquilo que come, também se intui a ideia que fazem de si através das suas cidades. Esta capital procura-se num meio caminho entre o que o passado fez e o que um futuro pode trazr de novo ou manter de antigo. O parque Rike e a Igreja da Santíssima Trindade são ambas modernas, mas não da mesma maneira. Um abraça a ruptura, a outra mantém uma continuidade de algo necessário, mas pernicioso. Como a paixão da qual não desligamos e nos vai mirrando. Talvez seja assim a Georgia. Um jogo de corda que puxa de um lado, puxa de outro, mas não parte nem acaba. Só estica e vai esticando. Numa encruzilhada que não sei bem onde vai dar; mas numa cidade que ainda que dividida, tem muita personalidade, sinto-me com vontade, apetite e abertura de mente para tentar descobrir o que mais há. Se sou renitente em encher o bandulho de comida internacional, dou graças a esses deuses da viagem chamados curiosidade e caminhada de ser felizmente muito guloso nos cozinhados da descoberta.

segunda-feira, agosto 16, 2021

Georgia on my blog 1 - Reinícios


 Portanto, a bem da honestidade que sempre caracteriza as crónicas de viagem que escrevo, devo informar que este não era o plano original. Vamos rumar ao Cáucaso, mas era suposta, depois de duas semanas com os olhos e os pés na Ásia, uma viragem radical na bússola e aterrar na América do Sul. Uma andança pelos Andes, bulindo na Bolívia com um desvio pelo Chile, na pontinha que abarca o Atacama. Duas semanas, montanha da boa e altitude para me dar cabo das articulações. No entanto, desde as minhas desventuras pela terra do tio Jinping, o Império do Meio passou a ser mais falado. Em primeiro, porque finalmente deu jeito à comunidade internacional usar os uigures como arma de arremesso contra a China, depois de ter feito aqui o alerta. Não estou a dizer que o Guterres fala comigo todos os dias, mas… não, não fala. Bolas, se quiser missa, há muito por onde escolher em Coimbra. E depois, algures por volta de Dezembro de 2019, uma história passou rapidamente de risota para pânico generalizado sob a forma de um vírus saído de Wuhan, anónimo, manhoso, uma praga respiratória mais parida no Extremo Oriente. Mas ao contrário de gripes aviárias e suínas, esta pegou mesmo. Era uma questão de tempo até a nossa própria incúria como espécie de pináculo da evolução nos apanhar. Os Gregos chamam-lhe “hubris”; e esta “hubris”, que também virou “nemesis”, condiciona as nossas vidas em fluxo temporal e sem pedir licença. Vai para ano e meio. Daí que no ano passado tenha ficado em terra; e daí que mesmo este ano, até um mês antes de ter  comprado a viagem, também temesse mais uma translação planetária de arranhar os braços, qual viajómano sem dose. Mas tudo se deu pelo melhor e tive carta branca e certificado preenchido. Só mudou o destino. Dos Andes, mudei para o Cáucaso.

Porquê a Georgia? A bem dizer, estava na minha ideia há alguns tempos. A divisão geográfica entre Europa e Ásia é um daqueles territórios ambíguos de identidade, fecundos de histórias e Histórias. Ter sido passadeira de impérios e povos, culturas várias de fusões únicas torna esta região que vai do Mediterrâneo às fronteiras do Irão numa espécie de caixinha de brinquedos partidos, mas valiosos. Ainda hoje o território georgiano está marcado pelas múltiplas identidades que ficaram destes passeios. A Abecássia e a Ossétia do Sul são duas nações sem estado, que reclama uma existência separada da Geórgia e que ainda hoje mantêm uma disputa na sua independência. Falaremos delas mais à frente. São ainda resquícios de uma ocupação soviética longa e que ainda hoje marca uma boa parte do país, ainda vivendo no estado mental russo, num espírito eslavófilo impossível de apagar. Percorrer o país é assistir ao confronto entre esse passado e um desejo de fuga para a frente, que como na esmagadora maioria dos países europeus de Leste que fizeram parte do sistema comunista, encontra abrigo e desespero na adesão à UE. Mas o passado da Georgia é muito mais antigo do que a ideologia de Lenine. Entre a realidade história e o planalto mítico, o país chama a sai múltiplas heranças, quase todas com a marca ocidental. Numa bruma de imaginação, era aqui que estava guardado o tosão de ouro buscado por Jasão; e também no Cáucaso encontramos o local de tortura bárbara a que foi sujeito Prometeu, o Titã que ousou a entrega do fogo divino da inteligência aos homens e que por isso foi punido a ser parcialmente comido por uma águia todos os dias durantes séculos. Os achados arqueológicos, dizem-nos, no entanto, que a região era habitada desde o Paleolítico e que foi uma das primeiras regiões do mundo a produzir vinho – os georgianos dirão que foi a primeira. A alguns reinos temporários, como Colchis ou a Iberia (sim, Iberia, leram bem), seguiu-se uma ocupação romana tensa, com disputas permanentes com os Partios, antepassados dos actuais iranianos. A área, plena de cultos pagãos, foi cristianizada em 337 e desde então, orgulha-se de se proclamar como a mais antiga nação cristã do planeta. Como verão, este é um dos suportes maiores da identidade do país. Depois de uma ocupação muçulmana, a Idade Média trouxe nos séculos XII e XIII um período de esplendor nas artes, ciências e política nos reinados de David II e da sua neta Tamar; mas durou pouco e os séculos seguintes viram este território a soçobrar primeiro perante os Otomanos e depois o Império Russo. Foi na esfera deste último que a Georgia se manteve até 1991 e é o bafo deste último que sopra ocasionalmente no pescoço dos georgianos quando os senhores de Moscovo se recordam do quanto gostam de aventuras expansionistas. Hoje, Salome Zurabshvilli é a presidente do país e um raro caso de uma mulher liderando um país numa região marcada a fundo por fundamentalismos religiosos que por natureza não têm grande amor pela plenitude da Mulher.

Acima de tudo, e algo que me interessava por demais depois da experiência chinesa, a Georgia é um país onde é possível andar com liberdade e existe uma certeza relativa de que não me estão a espiar constantemente. Ainda que esteja vacinado e, como sabem, o meu chip de 5G me denuncie aos overlords do mundo. Depois de um ano parado, não estava com apetite para grandes aventuras e risco. Nove dias no Cáucaso, relativamente interessantes e com bastantes oportunidade fotográficas, apelavam-me o suficiente. Para mais, ainda me permitia presenciar o aniversário da minha sobrinha, algo que lhe prometera. Ainda que a Beatriz não saiba distinguir, por ora, “promessa” de “à pressa”, era para mim importante, visto que sou tio e padrinho e acima de tudo, palhaço da garota. É um cargo importante. Encaro tudo com alguma leveza: levo apenas dois livros e alguns podcasts para me entreter. As viagens não serão longas e com um bocado de sorte, ainda passo pelas brasas. Calha que o dia da viagem seja precedido por uma noite muito mal dormida. Quando chego ao aeroporto e me despeço da Catarina, ainda me sinto meio grogue. Não ao ponto de me sentir a desmaiar quando o avião descolar, mas já naquele ponto onde a realidade é apenas um conceito desfiado a lã. Os protocolos de segurança parecem-me, por isso, normais ainda que não o sejam. A minha temperatura é medida várias vezes no aeroporto e sinto que sou mesmo uma brasa e toda a gente o nota. O certificado é obrigatório em todos os pontos e a certa altura, julgo até que me vão perguntar pela cor dos boxers e se tal bate certo com o lote da vacina que consta do ficheiro. Quando encontro o grupo com o qual vou viajar, uma novidade: algures, quatro portas abaixo da nossa, está uma conhecida figura. José Sócrates. Ex-primeiro ministro, actual bandido. Se calhar, quer roubar milhas aéreas às pessoas, sob o pretexto que são todas suas amigas e que no fundo, é apenas um empréstimo. Talvez venha inspeccionar se os aviões cumprem as regras relativamente ao combate às alterações climáticas. Afinal, Sócrates foi ministro do Ambiente, uma pasta que pertenceu a indivíduos honestos e ligados à causa pública, como Isaltino Morais ou Arlindo da Cunha; mentes tão brilhantes e progressistas quanto Assunção Cristas e Luís Nobre Guedes; ou esse monstro da decência que é o corrente João Matos Fernandes, homem que defendendo a causa ecológica, quer escavações a céu aberto no único parque natural português e um aeroporto numa área natural protegida. Não sei mesmo como é que acham Sócrates uma anomalia. Ele apenas fez escola. Veio ao aeroporto certamente para aguçar o seu instinto verde. Sinto a tentação de conversar com ele, de lhe perguntar se é rumor ou realidade que fará com Al Gore uma dupla de forças especiais que, vestida de Capitão Planeta, andará por aí a punir os criminosos do ambiente; e se eventualmente tem mais amigos em Paris ou quem sabe, ruma a Atenas para assumir o manto de filósofo do seu histórico homónimo. Mas fico-me. Reduzido a uma insignificância de aldeão. A única coisa que gamei na vida foi um rebuçado e senti-me culpado. Tenho consciência, claramente não estou na mesma liga de sociopatas compulsivos.

O voo atrasa-se, mas sai. Ao meu lado, um casal português que viaja para Istambul. Têm musiquinha de Lisboa no paleio. Vêem imensos filmes. Aliás, no voo, querem ver um filme e “óvi-lo” também. Mas riem ambos; ela diz que é uma aborrecimento ver filmes, porque mesmo gostando muito acabam sempre por adormecer. Acharam o “Matrix” um tédio, mas aconselho-lhes o “Casablanca” e isto parece ao homem uma ideia xexional. Explico a premissa, falo do Rick Blaine e ele fica convencido. É um cláchico. Tem de ser visto, nem que seja umavez, tudo pegado. Os clássicos são mto importantes e eu concordo. Escusado será dizer que vinte minutos depois, sornam pegados. Tento ler, mas sinto o cansaço a apanhar-me. Opto por um podcast sobre Scorsese mas a meio, sinto que perdi algo. Dormi uns minutos e nem me apercebi. Há anos, isto não aconteceria. Nunca fui de ter posição para dormitar em transportes. Mas hoje a espera foi curta. Talvez seja a idade, talvez tenha de abandonar esta ideia de que ainda sou jovem. Só na cabeça, só nas ideias. Só na imaturidade. Até o tempo parece correr em vez de coçar e estamos a descer para Istambul antes que me aperceba. Algures na memória, recordo-me de um mar turquesa, de pequeninas casas, de barcos vagabundos. Mas não consigo localizar onde. Divago sem voo, o único ar está lá fora e o que respiro é mais ficção do que conhecimento do que sou, de onde estou. Sinto-me ainda mais trocado quando aterramos na grande metrópole turca. Não é a minha primeira vez, mas sinto-me como se fosse. Nada reconheço no aeroporto. Perco-me em mim e no exterior; vejo um enorme painel relativo a Gobekli Tepe, que parece ainda maior perante a pequenez do espaço. O Ataturk, quando aqui estive, pareceu-me bem maior, uma cidadezinha própria. Mas depois de alguns letreiros, percebo que é um novo aeroporto inaugurado em 2018, o terceiro internacional da cidade. É marcado pela celebração a cultura turca. Gobekli Tepe é o expoente maior, prodígio arqueológico descoberto no início do século e que obrigou a rever o que sabíamos acerca da evolução das sociedade humanas. Datado de pelo menos 9000 anos antes de Cristo, é indubitavelmente o local onde se desenvolveu uma cultura complexa e com construções megalíticas dominadoras. Se não era uma cidade, era um espaço religioso vasto. Para terem uma ideia, quando estive na faculdade, a cidade mais antiga do mundo era Jericó, o Çatal Huyuk, conforme os estudiosos. Ambas eram do ano 5000. Ou seja, Gobekli Tepe quase que dobra esta etapa da evolução humana. É um local tremendamente importante e os Turcos, sempre prontos a celebrar-se nacionalmente num onanismo otomano bacoco, aproveitam a boleia e transformam em folclore este importantíssimo achado. O costume em autocracias. Mas o nacionalismo bacoco também nos calha, Portugueses. Na espera pelo voo para Tbilisi, sabemos que Patrícia Mamona ganha medalha de prata no Triplo Salto. Com tudo isto, até me esquecera que há Jogos Olímpicos a decorrer e que Portugal tem um ou outro atleta com qualidade. Nenhum de nós treinou para a medalha, mas congratulamo-nos como se a tivessemos ganhos. Mamona somos nós, nós somos Mamona. Quando digo esta frase na minha mente, soou muito melhor do que ao vê-la escrita agora. Recordo-me da experiência na Ataturk em 2016, nas mulheres tapadas, nas separações claras entre sexos, no domínio óbvio dos homens. Não noto tanto isso desta vez. O Istambul International Airport está mais distante da civilização, talvez seja disso. Talvez seja um hub entre países onde o fantasmas das burkas e da Sharia não esteja tão presente. Ou talvez tenha aparecido na hora da Tolerância e algures depois das oito, apareçam os verdadeiros facínoras.



Duas horas e meia separam-nos da capital georgiana. À noite, a Anatólia é tão obscura quanto o nosso conhecimento sobre as culturas que daqui até às estepes mongóis, assombram a visão do comum ocidental. Não sei o que esperar dos georgianos. Não o mesmo que dos quirguizes, ou sequer dos chineses. Se serão mais europeus, mais asiáticos. Se serão uns mestiços culturais. Perdidos entre dois mundos ou bem encontrados num seu, com parcelinhas de todos os que fizeram destas terras casa temporária e por aqui semearam mais do que vinhas. Consigo ler um pouco durante o voo. Um livro sobre as consequências da Revolução Bolchevique na Ásia Central e os velhos jogos entre os Russos e os Britânicos nesta importante geografia. Os capítulos finais do chamado Grande Jogo. Algures no livro, após a morte de Lenine, Estaline abre caminho para liderar a União Soviético. O paizinho dos povos José nasceu na Georgia, é talvez o mais famoso dos todos os que deram por si vivos neste país. Com o nome de Ioseb Besarionis Jughashvilli, nasceu em Gori. Os mais lúcidos entre nós reconhecem nele um dos homens mais sinistros do século XX, essencial para entender alguns dos seus principais eventos e assustador para quem ainda se impressiona com a crueldade humana. Revelou algo dela quando pôde dispor dos povos da Ásia Central. Teria ainda muito mais para gastar até morrer em 1953; mas a história de Estaline é para ser contada mais à frente. Quando me deparar no impacto desta figura num país em vários episódios, nomeadamente num mercado de rua. Mas é incontornável. Portugal tem a sorte de não ter um Estaline para recordar. Salazar, ditador conservador e de casual e efectivo desprezo por quem pensava diferente, marca-nos pelo seu período de governo, pela repressão e perseguição do que é diferente, pelo atentado contra a liberdade que a sua existência representou na nossa História, pelo tratamento dado aos que vivendo num espaço dito português, eram tudo menos isso no além-mar. Mas no grande contexto da História, é aquilo pelo qual tanto lutou: um provinciano, uma figura paroquial, um idoso desenhado na capa da Time sem expressão mundial. A vilania de Salazar é, como Portugal, nossa e de pouco interesse para os que marcam recordes de vítimas. Estaline está na primeira liga. É um papão do mundo, é verbo de encher, é insulto fácil. Todos sabem que foi Estaline. O que representa verdadeiramente. Alguém tão virulento na sua impiedade, na sua iniquidade, que todo um regime de brutal repressão sentiu necessidade de se afastar e renunciá-lo. Como o apóstolo Pedro fez a Cristo, ele apóstolo misógino e misantropo. O legado deste fantasma é algo com que a Georgia ainda hoje lida. A União Soviética era um espaço único, mas os males são individuais. Estaline não é russo: é georgiano.

A viagem é tranquila. No aeroporto, rapidamente encontramos o caminho para a zona dos passportes. Vou estrear o meu. Uma jovem mulher interroga-me num inglês engasgado. Por debaixo da máscara, fala baixo. Temos de nos repetir várias vezes, mas sorri-me com os olhos várias vezes, pede-me mais documentos, o certiciado. “Welcome to Georgia”, carimba-me e tenho a primeira marca no meu quase imaculado documento de viagens. Há algo no ar e não é o perfume de uma nova terra. Um burburinho de infecção não covidiana preenche as paredes. Não luz nem é ouro, mas revela-se precioso. Enquanto espero a chegada da minha mala, vejo o constante abrir e fechar da porta que dá acesso à entrada do aeroporto. Uma multidão imensa, cheia de cartazes, enche o espaço. Por momentos, comovo-me. Sinto Portugal brilhando alto, o orgulho da nação. Porque só pode ser uma de duas coisas: ou esta imensa turba georgiana quer celebrar connosco a medalha de prata da saltadora Mamona ou, atrevo-me a sonhar, são espectadores fiéis da RTP Internacional. Há uns meses, participei no programa televisiso “Joker” e com certeza sabem que chegava hoje. Querem parabenizar-me, aplaudir-me por não saber qual é o elemento base de uma queijada de Sintra. Levar-me em ombros por ter posto Vasco Palmeirim na ordem ao mostrar-lhe que há uma parvoíce maior para lá de Alvalade e que ele desconhecia. Saudar com aparato militar o entretenimento puro que a minha presença sempre desperta. Com ansiedade mal contida, lágrimas transparentes nos cantos dos olhos, encaminho-me para aquele vasto magote, pronto a abrir os braços, a receber aplausos. Mas desilusão: não é a mim que esperam. O meu rosto não consta nos cartazes, a minha semelhança é pouco com um outro homem que faz dois de mim e veste um kimono. Branco, ainda por cima. É difícil exagerar o número de pessoas que ali estão. São centenas por certo, há grupos folclóricos vestidos a preceito e dando música, bandas filarmónicas, militares em peso com armas carregadas e prontas e render a guarda. Cartazes toscos, demonstrações de admiração popuçar, bandeiras georgianas insufladas de orgulho num quantidade capaz de enciumar Cristiano Ronaldo, melhor ser humano português de toda a História e destinado a trocar de lugar com Afonso Henriques no Panteão de Santa Cruz. Saberei mais tarde que o aparato se destina a receber Lasha Bekauri, judoca que trouxe o ouro de Tóquio a uma nação de 4 milhões de habitantes. Ao todo, o país trouxe 8 medalhas, metade delas no Judo. A de Bekauri foi a primeira de ouro, à qual se seguiu outra no halterofilismo. A luta livre completa o trio de modalidades que trouxeram a glória olímpica. Um país de força e de defesa. Quando Bekauri chegar, verei mais tarde, está-lhe guardada a volta em ombros que julguei minha por conta da aparição que fiz num concurso de cultura geral. Ninguém dá o devido valor aos acumuladores de tralha na cabeça.

Uma viagem de carrinha separa-nos do hotel. São vinte minutos de aceleração até ao centro de Tbilisi. O nosso hotel recebe-nos às onze e meia da noite. Sinto-me meio morto, mas não completamente. O interior é meio bruto, o aproveitamente de uma estrutura industrial. Cinzentos, azuis e esculturas a atirar para o contemporâneo. Mas o pessoal é simpático, prestável, acolhedor. É o nosso primeiro contacto com estas pessoas de um país diferente e saberei que, no geral, é um prenúncio certo. Vou para o quarto. Tbilisi recebe-me abafada, estão quase trinta graus à noite. Da varanda, contemplo uma cidade estranha. Por entre as luzes nocturnas, despontam inércias arquitectónicas que parecem não ter lugar, parecem de outro espaço. Têm cores berrantes, não se escondem nem disfraçam. Tecem as vozes que vêm da rua e escondem a identidade tbilisiana, guardam um mistério que talvez a luz do dia desvende. Depois de alertar os que me são queridos de que tudo correu bem, de que não foi mais este país com nome esquisito a afastar-me do seu convívio, estendo-me na cama, ainda nebuloso, ainda perdido. Talvez por estar numa fronteira, talvez por eu próprio ser fronteira. Entre o que sou e o que quero. Ou talvez esteja a complicar demasiado. Isso seria tão meu que até na Georgia sou capaz de me sentir em casa.