Portanto, a bem da honestidade que sempre caracteriza as crónicas de viagem que escrevo, devo informar que este não era o plano original. Vamos rumar ao Cáucaso, mas era suposta, depois de duas semanas com os olhos e os pés na Ásia, uma viragem radical na bússola e aterrar na América do Sul. Uma andança pelos Andes, bulindo na Bolívia com um desvio pelo Chile, na pontinha que abarca o Atacama. Duas semanas, montanha da boa e altitude para me dar cabo das articulações. No entanto, desde as minhas desventuras pela terra do tio Jinping, o Império do Meio passou a ser mais falado. Em primeiro, porque finalmente deu jeito à comunidade internacional usar os uigures como arma de arremesso contra a China, depois de ter feito aqui o alerta. Não estou a dizer que o Guterres fala comigo todos os dias, mas… não, não fala. Bolas, se quiser missa, há muito por onde escolher em Coimbra. E depois, algures por volta de Dezembro de 2019, uma história passou rapidamente de risota para pânico generalizado sob a forma de um vírus saído de Wuhan, anónimo, manhoso, uma praga respiratória mais parida no Extremo Oriente. Mas ao contrário de gripes aviárias e suínas, esta pegou mesmo. Era uma questão de tempo até a nossa própria incúria como espécie de pináculo da evolução nos apanhar. Os Gregos chamam-lhe “hubris”; e esta “hubris”, que também virou “nemesis”, condiciona as nossas vidas em fluxo temporal e sem pedir licença. Vai para ano e meio. Daí que no ano passado tenha ficado em terra; e daí que mesmo este ano, até um mês antes de ter comprado a viagem, também temesse mais uma translação planetária de arranhar os braços, qual viajómano sem dose. Mas tudo se deu pelo melhor e tive carta branca e certificado preenchido. Só mudou o destino. Dos Andes, mudei para o Cáucaso.
Porquê a Georgia? A bem dizer, estava
na minha ideia há alguns tempos. A divisão geográfica entre Europa e Ásia é um
daqueles territórios ambíguos de identidade, fecundos de histórias e Histórias.
Ter sido passadeira de impérios e povos, culturas várias de fusões únicas torna
esta região que vai do Mediterrâneo às fronteiras do Irão numa espécie de
caixinha de brinquedos partidos, mas valiosos. Ainda hoje o território
georgiano está marcado pelas múltiplas identidades que ficaram destes passeios.
A Abecássia e a Ossétia do Sul são duas nações sem estado, que reclama uma
existência separada da Geórgia e que ainda hoje mantêm uma disputa na sua
independência. Falaremos delas mais à frente. São ainda resquícios de uma
ocupação soviética longa e que ainda hoje marca uma boa parte do país, ainda
vivendo no estado mental russo, num espírito eslavófilo impossível de apagar.
Percorrer o país é assistir ao confronto entre esse passado e um desejo de fuga
para a frente, que como na esmagadora maioria dos países europeus de Leste que
fizeram parte do sistema comunista, encontra abrigo e desespero na adesão à UE.
Mas o passado da Georgia é muito mais antigo do que a ideologia de Lenine.
Entre a realidade história e o planalto mítico, o país chama a sai múltiplas
heranças, quase todas com a marca ocidental. Numa bruma de imaginação, era aqui
que estava guardado o tosão de ouro buscado por Jasão; e também no Cáucaso
encontramos o local de tortura bárbara a que foi sujeito Prometeu, o Titã que
ousou a entrega do fogo divino da inteligência aos homens e que por isso foi
punido a ser parcialmente comido por uma águia todos os dias durantes séculos.
Os achados arqueológicos, dizem-nos, no entanto, que a região era habitada
desde o Paleolítico e que foi uma das primeiras regiões do mundo a produzir
vinho – os georgianos dirão que foi a primeira. A alguns reinos temporários,
como Colchis ou a Iberia (sim, Iberia, leram bem), seguiu-se uma ocupação
romana tensa, com disputas permanentes com os Partios, antepassados dos actuais
iranianos. A área, plena de cultos pagãos, foi cristianizada em 337 e desde
então, orgulha-se de se proclamar como a mais antiga nação cristã do planeta.
Como verão, este é um dos suportes maiores da identidade do país. Depois de uma
ocupação muçulmana, a Idade Média trouxe nos séculos XII e XIII um período de
esplendor nas artes, ciências e política nos reinados de David II e da sua neta
Tamar; mas durou pouco e os séculos seguintes viram este território a soçobrar
primeiro perante os Otomanos e depois o Império Russo. Foi na esfera deste
último que a Georgia se manteve até 1991 e é o bafo deste último que sopra
ocasionalmente no pescoço dos georgianos quando os senhores de Moscovo se
recordam do quanto gostam de aventuras expansionistas. Hoje, Salome
Zurabshvilli é a presidente do país e um raro caso de uma mulher liderando um
país numa região marcada a fundo por fundamentalismos religiosos que por
natureza não têm grande amor pela plenitude da Mulher.
Acima de tudo, e algo que me
interessava por demais depois da experiência chinesa, a Georgia é um país onde
é possível andar com liberdade e existe uma certeza relativa de que não me
estão a espiar constantemente. Ainda que esteja vacinado e, como sabem, o meu
chip de 5G me denuncie aos overlords do mundo. Depois de um ano parado, não
estava com apetite para grandes aventuras e risco. Nove dias no Cáucaso,
relativamente interessantes e com bastantes oportunidade fotográficas,
apelavam-me o suficiente. Para mais, ainda me permitia presenciar o aniversário
da minha sobrinha, algo que lhe prometera. Ainda que a Beatriz não saiba
distinguir, por ora, “promessa” de “à pressa”, era para mim importante, visto
que sou tio e padrinho e acima de tudo, palhaço da garota. É um cargo
importante. Encaro tudo com alguma leveza: levo apenas dois livros e alguns
podcasts para me entreter. As viagens não serão longas e com um bocado de
sorte, ainda passo pelas brasas. Calha que o dia da viagem seja precedido por
uma noite muito mal dormida. Quando chego ao aeroporto e me despeço da Catarina,
ainda me sinto meio grogue. Não ao ponto de me sentir a desmaiar quando o avião
descolar, mas já naquele ponto onde a realidade é apenas um conceito desfiado a
lã. Os protocolos de segurança parecem-me, por isso, normais ainda que não o
sejam. A minha temperatura é medida várias vezes no aeroporto e sinto que sou
mesmo uma brasa e toda a gente o nota. O certificado é obrigatório em todos os
pontos e a certa altura, julgo até que me vão perguntar pela cor dos boxers e
se tal bate certo com o lote da vacina que consta do ficheiro. Quando encontro
o grupo com o qual vou viajar, uma novidade: algures, quatro portas abaixo da nossa,
está uma conhecida figura. José Sócrates. Ex-primeiro ministro, actual bandido.
Se calhar, quer roubar milhas aéreas às pessoas, sob o pretexto que são todas
suas amigas e que no fundo, é apenas um empréstimo. Talvez venha inspeccionar
se os aviões cumprem as regras relativamente ao combate às alterações
climáticas. Afinal, Sócrates foi ministro do Ambiente, uma pasta que pertenceu
a indivíduos honestos e ligados à causa pública, como Isaltino Morais ou
Arlindo da Cunha; mentes tão brilhantes e progressistas quanto Assunção Cristas
e Luís Nobre Guedes; ou esse monstro da decência que é o corrente João Matos
Fernandes, homem que defendendo a causa ecológica, quer escavações a céu aberto
no único parque natural português e um aeroporto numa área natural protegida.
Não sei mesmo como é que acham Sócrates uma anomalia. Ele apenas fez escola.
Veio ao aeroporto certamente para aguçar o seu instinto verde. Sinto a tentação
de conversar com ele, de lhe perguntar se é rumor ou realidade que fará com Al
Gore uma dupla de forças especiais que, vestida de Capitão Planeta, andará por
aí a punir os criminosos do ambiente; e se eventualmente tem mais amigos em
Paris ou quem sabe, ruma a Atenas para assumir o manto de filósofo do seu
histórico homónimo. Mas fico-me. Reduzido a uma insignificância de aldeão. A
única coisa que gamei na vida foi um rebuçado e senti-me culpado. Tenho
consciência, claramente não estou na mesma liga de sociopatas compulsivos.
O voo atrasa-se, mas sai. Ao meu
lado, um casal português que viaja para Istambul. Têm musiquinha de Lisboa no
paleio. Vêem imensos filmes. Aliás, no voo, querem ver um filme e “óvi-lo”
também. Mas riem ambos; ela diz que é uma aborrecimento ver filmes, porque
mesmo gostando muito acabam sempre por adormecer. Acharam o “Matrix” um tédio,
mas aconselho-lhes o “Casablanca” e isto parece ao homem uma ideia xexional.
Explico a premissa, falo do Rick Blaine e ele fica convencido. É um cláchico.
Tem de ser visto, nem que seja umavez, tudo pegado. Os clássicos são mto
importantes e eu concordo. Escusado será dizer que vinte minutos depois, sornam
pegados. Tento ler, mas sinto o cansaço a apanhar-me. Opto por um podcast sobre
Scorsese mas a meio, sinto que perdi algo. Dormi uns minutos e nem me apercebi.
Há anos, isto não aconteceria. Nunca fui de ter posição para dormitar em
transportes. Mas hoje a espera foi curta. Talvez seja a idade, talvez tenha de
abandonar esta ideia de que ainda sou jovem. Só na cabeça, só nas ideias. Só na
imaturidade. Até o tempo parece correr em vez de coçar e estamos a descer para
Istambul antes que me aperceba. Algures na memória, recordo-me de um mar
turquesa, de pequeninas casas, de barcos vagabundos. Mas não consigo localizar
onde. Divago sem voo, o único ar está lá fora e o que respiro é mais ficção do
que conhecimento do que sou, de onde estou. Sinto-me ainda mais trocado quando
aterramos na grande metrópole turca. Não é a minha primeira vez, mas sinto-me
como se fosse. Nada reconheço no aeroporto. Perco-me em mim e no exterior; vejo
um enorme painel relativo a Gobekli Tepe, que parece ainda maior perante a
pequenez do espaço. O Ataturk, quando aqui estive, pareceu-me bem maior, uma
cidadezinha própria. Mas depois de alguns letreiros, percebo que é um novo
aeroporto inaugurado em 2018, o terceiro internacional da cidade. É marcado
pela celebração a cultura turca. Gobekli Tepe é o expoente maior, prodígio
arqueológico descoberto no início do século e que obrigou a rever o que
sabíamos acerca da evolução das sociedade humanas. Datado de pelo menos 9000 anos
antes de Cristo, é indubitavelmente o local onde se desenvolveu uma cultura
complexa e com construções megalíticas dominadoras. Se não era uma cidade, era
um espaço religioso vasto. Para terem uma ideia, quando estive na faculdade, a
cidade mais antiga do mundo era Jericó, o Çatal Huyuk, conforme os estudiosos.
Ambas eram do ano 5000. Ou seja, Gobekli Tepe quase que dobra esta etapa da
evolução humana. É um local tremendamente importante e os Turcos, sempre
prontos a celebrar-se nacionalmente num onanismo otomano bacoco, aproveitam a
boleia e transformam em folclore este importantíssimo achado. O costume em
autocracias. Mas o nacionalismo bacoco também nos calha, Portugueses. Na espera
pelo voo para Tbilisi, sabemos que Patrícia Mamona ganha medalha de prata no
Triplo Salto. Com tudo isto, até me esquecera que há Jogos Olímpicos a decorrer
e que Portugal tem um ou outro atleta com qualidade. Nenhum de nós treinou para
a medalha, mas congratulamo-nos como se a tivessemos ganhos. Mamona somos nós,
nós somos Mamona. Quando digo esta frase na minha mente, soou muito melhor do
que ao vê-la escrita agora. Recordo-me da experiência na Ataturk em 2016, nas
mulheres tapadas, nas separações claras entre sexos, no domínio óbvio dos
homens. Não noto tanto isso desta vez. O Istambul International Airport está
mais distante da civilização, talvez seja disso. Talvez seja um hub entre
países onde o fantasmas das burkas e da Sharia não esteja tão presente. Ou
talvez tenha aparecido na hora da Tolerância e algures depois das oito,
apareçam os verdadeiros facínoras.
Duas horas e meia separam-nos da
capital georgiana. À noite, a Anatólia é tão obscura quanto o nosso
conhecimento sobre as culturas que daqui até às estepes mongóis, assombram a
visão do comum ocidental. Não sei o que esperar dos georgianos. Não o mesmo que
dos quirguizes, ou sequer dos chineses. Se serão mais europeus, mais asiáticos.
Se serão uns mestiços culturais. Perdidos entre dois mundos ou bem encontrados
num seu, com parcelinhas de todos os que fizeram destas terras casa temporária
e por aqui semearam mais do que vinhas. Consigo ler um pouco durante o voo. Um
livro sobre as consequências da Revolução Bolchevique na Ásia Central e os
velhos jogos entre os Russos e os Britânicos nesta importante geografia. Os
capítulos finais do chamado Grande Jogo. Algures no livro, após a morte de
Lenine, Estaline abre caminho para liderar a União Soviético. O paizinho dos
povos José nasceu na Georgia, é talvez o mais famoso dos todos os que deram por
si vivos neste país. Com o nome de Ioseb Besarionis Jughashvilli, nasceu em
Gori. Os mais lúcidos entre nós reconhecem nele um dos homens mais sinistros do
século XX, essencial para entender alguns dos seus principais eventos e
assustador para quem ainda se impressiona com a crueldade humana. Revelou algo
dela quando pôde dispor dos povos da Ásia Central. Teria ainda muito mais para
gastar até morrer em 1953; mas a história de Estaline é para ser contada mais à
frente. Quando me deparar no impacto desta figura num país em vários episódios,
nomeadamente num mercado de rua. Mas é incontornável. Portugal tem a sorte de
não ter um Estaline para recordar. Salazar, ditador conservador e de casual e
efectivo desprezo por quem pensava diferente, marca-nos pelo seu período de
governo, pela repressão e perseguição do que é diferente, pelo atentado contra
a liberdade que a sua existência representou na nossa História, pelo tratamento
dado aos que vivendo num espaço dito português, eram tudo menos isso no
além-mar. Mas no grande contexto da História, é aquilo pelo qual tanto lutou:
um provinciano, uma figura paroquial, um idoso desenhado na capa da Time sem
expressão mundial. A vilania de Salazar é, como Portugal, nossa e de pouco
interesse para os que marcam recordes de vítimas. Estaline está na primeira
liga. É um papão do mundo, é verbo de encher, é insulto fácil. Todos sabem que
foi Estaline. O que representa verdadeiramente. Alguém tão virulento na sua
impiedade, na sua iniquidade, que todo um regime de brutal repressão sentiu
necessidade de se afastar e renunciá-lo. Como o apóstolo Pedro fez a Cristo,
ele apóstolo misógino e misantropo. O legado deste fantasma é algo com que a
Georgia ainda hoje lida. A União Soviética era um espaço único, mas os males
são individuais. Estaline não é russo: é georgiano.
A viagem é tranquila. No
aeroporto, rapidamente encontramos o caminho para a zona dos passportes. Vou
estrear o meu. Uma jovem mulher interroga-me num inglês engasgado. Por debaixo
da máscara, fala baixo. Temos de nos repetir várias vezes, mas sorri-me com os
olhos várias vezes, pede-me mais documentos, o certiciado. “Welcome to Georgia”,
carimba-me e tenho a primeira marca no meu quase imaculado documento de
viagens. Há algo no ar e não é o perfume de uma nova terra. Um burburinho de
infecção não covidiana preenche as paredes. Não luz nem é ouro, mas revela-se
precioso. Enquanto espero a chegada da minha mala, vejo o constante abrir e
fechar da porta que dá acesso à entrada do aeroporto. Uma multidão imensa,
cheia de cartazes, enche o espaço. Por momentos, comovo-me. Sinto Portugal
brilhando alto, o orgulho da nação. Porque só pode ser uma de duas coisas: ou
esta imensa turba georgiana quer celebrar connosco a medalha de prata da
saltadora Mamona ou, atrevo-me a sonhar, são espectadores fiéis da RTP
Internacional. Há uns meses, participei no programa televisiso “Joker” e com certeza
sabem que chegava hoje. Querem parabenizar-me, aplaudir-me por não saber qual é
o elemento base de uma queijada de Sintra. Levar-me em ombros por ter posto
Vasco Palmeirim na ordem ao mostrar-lhe que há uma parvoíce maior para lá de
Alvalade e que ele desconhecia. Saudar com aparato militar o entretenimento
puro que a minha presença sempre desperta. Com ansiedade mal contida, lágrimas
transparentes nos cantos dos olhos, encaminho-me para aquele vasto magote,
pronto a abrir os braços, a receber aplausos. Mas desilusão: não é a mim que
esperam. O meu rosto não consta nos cartazes, a minha semelhança é pouco com um
outro homem que faz dois de mim e veste um kimono. Branco, ainda por cima. É
difícil exagerar o número de pessoas que ali estão. São centenas por certo, há
grupos folclóricos vestidos a preceito e dando música, bandas filarmónicas,
militares em peso com armas carregadas e prontas e render a guarda. Cartazes
toscos, demonstrações de admiração popuçar, bandeiras georgianas insufladas de
orgulho num quantidade capaz de enciumar Cristiano Ronaldo, melhor ser humano
português de toda a História e destinado a trocar de lugar com Afonso Henriques
no Panteão de Santa Cruz. Saberei mais tarde que o aparato se destina a receber
Lasha Bekauri, judoca que trouxe o ouro de Tóquio a uma nação de 4 milhões de
habitantes. Ao todo, o país trouxe 8 medalhas, metade delas no Judo. A de
Bekauri foi a primeira de ouro, à qual se seguiu outra no halterofilismo. A
luta livre completa o trio de modalidades que trouxeram a glória olímpica. Um
país de força e de defesa. Quando Bekauri chegar, verei mais tarde, está-lhe
guardada a volta em ombros que julguei minha por conta da aparição que fiz num
concurso de cultura geral. Ninguém dá o devido valor aos acumuladores de tralha
na cabeça.
Uma viagem de carrinha separa-nos
do hotel. São vinte minutos de aceleração até ao centro de Tbilisi. O nosso
hotel recebe-nos às onze e meia da noite. Sinto-me meio morto, mas não
completamente. O interior é meio bruto, o aproveitamente de uma estrutura
industrial. Cinzentos, azuis e esculturas a atirar para o contemporâneo. Mas o
pessoal é simpático, prestável, acolhedor. É o nosso primeiro contacto com
estas pessoas de um país diferente e saberei que, no geral, é um prenúncio
certo. Vou para o quarto. Tbilisi recebe-me abafada, estão quase trinta graus à
noite. Da varanda, contemplo uma cidade estranha. Por entre as luzes nocturnas,
despontam inércias arquitectónicas que parecem não ter lugar, parecem de outro
espaço. Têm cores berrantes, não se escondem nem disfraçam. Tecem as vozes que
vêm da rua e escondem a identidade tbilisiana, guardam um mistério que talvez a
luz do dia desvende. Depois de alertar os que me são queridos de que tudo
correu bem, de que não foi mais este país com nome esquisito a afastar-me do
seu convívio, estendo-me na cama, ainda nebuloso, ainda perdido. Talvez por
estar numa fronteira, talvez por eu próprio ser fronteira. Entre o que sou e o que
quero. Ou talvez esteja a complicar demasiado. Isso seria tão meu que até na
Georgia sou capaz de me sentir em casa.
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