Para alguém a quem é regularmente
requisitado um relato das viagens que faz, sou um péssimo viajante. Digo-o
várias vezes e praticamente ninguém acredita. Mas é verdade. Os grandes
viajantes, pelo menos aqueles que leio e que conheço e que sigo, têm um grande
sentido de aventuras e disponibilidade. Alinham em tudo e arriscam, são
arrojados, estão lá para disfrutar das diferenças. Eu pertenço a um clube
diferente, que não tem todas as modalidades; e uma delas é a da alimentação.
Dizem que a comida é uma óptima maneira de percorrer um novo país, mas aí sou
turista de sofá. Tenho vários problemas de gosto e desgosto, desgosto na
maioria, que me cortam a iniciativa no que à culinária concerne. Petisco aqui e
ali, mas com o cuidado de um celíaco deixado numa feira de francesinhas. Mas
gosto de saber o que é o quê, os ingredientes, a alma de um país nos excessos e
ascetismos alimentares; e até mais do que ns restaurantes ou bancas de rua, um
bom método de conhecê-los é através dos pequenos-almoços nos hotéis onde durmo.
Invariavelmente, há um buffet onde o hóspede pode livremente escolher o que
mete na pança. Em quantidade e género. O “Brim”, o nosso primeiro hotel na
Geórgia, oferece uma vasta gama de panificação, desde o universal pão de forma
até outros de sementes ou mistos. Há também panquecas para gulosos. O queijo
abunda, juntamente com os enchidos, mas há também pratos com quadrados de
manteiga e vários potes de doce. A fruta faz-se representar pela família dos
melões, em três géneros. Para beber, há café, chás vários e noto que existe o
hábito de beber o leite frio, não quente, e se o quisermos, temos mesmo de
pedir, não está disponível para consumo imediato. Presumo que não seja parte
tão integral dos pequenos-almoços caucasianos como dos nossos. Há alguns bolos
e tartes também, que considero sábio afastar-me logo na minha estreia. Um
contacto medido, calculado. O suficiente para alimentar o corpo para um dia
longo, cansativo, de tonificação das pernas. Sento-me algures juntos dos meus
companheiros e viagem. Optei por pão de sementes com manteiga e uma caneca de
leite. A simplicidade que Buda tão bem apregoava. Talvez Buda fosse um
cobardolas alimentar como eu. Os historiadores deviam pesquisar sobre isso.
À saída do hotel, é visível o Palácio da Presidência da Georgia e uma rua que desce em direcção ao centro da cidade. Mas a opção é subir. A uma certa distância, avisto uma cruz no topo de um texto triangular muito angulado. É a pontinha da Igreja da Santíssima Trindade de Tbilisi, conhecida popularmente por Sabema. Os georgianos são uma população profundamente religiosa, em sentimento e em preconceito. Semanas antes de ter aqui chegado, uma marcha do orgulho gay foi cancelada porque os seus organizadores foram atacados por elementos da extrema-direita política local, provando para lá de quaisquer dúvidas o quanto os partidos de extrema-direita têm lugar numa sociedade democrática. A marcha fazia parte de um evento de cinco dias, organizado para celebrar as várias e distintas identidades sexuais do país. Indivíduos menos abertos à iniciativa simplesmente invadiram o escritório dos organizadores, num terceiro andar, uma boa parte dos sevandijas trepando as paredes exteriores, partindo tudo, agredindo gente – incluindo jornalistas – e queimando os símbolos identificativos da comunidade gay. Não é como se o ataque fosse inesperado u até uma aberração dentro dos sinais que o Governo dera. O primeiro-ministro do país, Irakli Gharibahvili, avisara que tais demonstrações de orgulho seriam vistas como inaceitáveis para a generalidade dos habitantes do país. A Igreja Ortodoxa, principal entidade religiosa da nação, invocara um dia nacional de oração contra a marcha, como se algures uma entidade divina tivesse feito da sua vida uma missão contra quem é diferente. A ironia maior é que apesar de tudo, Tbisili tem uma orgulhosa comunidade gay, sem grande medo de demonstrá-lo em público. Nos dias que passei na cidade, vi várias vezes casais de pessoas do mesmo sexo passeando de mão dado, beijando-se e acariciando-se em público; e os anos anteriores viram marchas e festivais de orgulho desenrolando-se na cidade. Ocasionalmente com problemas, outras vezes pacificamente. Mas a estratégia de quem usa a violência para calar o que se celebra na diferença é precisamente obrigar a esconder, a ocultar… o que nunca deu bom resultado, pelo que sei da História. Quase como se a ignorância fosse morte, e em várias maneiras até, estes ogres são prova disso. Os ogres em questão mexem-se no espectro da extrema-direita e nas mangas da Igreja Ortodoxa nacional, que a pretexto de valores tradicionais e outros que, baseados num livros escrito há milhares de anos por povos antigos com uma concepção de vida muito diferente da nossa, são arcaicos e retrógrados, pretendem impor uma visão do mundo que nem sequer se pode chamar de antiquada, visto que até povos antiquados como os Gregos e os Romanos a aceitavam.
A Igreja da Santíssima Trindade é de 2004, recente para os padrões dos grandes edifícios religiosos que conhecemos; mas é um dos mais largos edifícios religiosos do mundo e a terceira catedral ortodoxa mais alta de toda a cristandade. Sendo recente, a ideia foi sintetizar no seu desenho algumas das grandes tendências da monumentalidade da fé georgiana. A início da sua construção, em 1989, marcou uma afirmação da identidade nacional, baseada na religião, contra a opressão soviética e num país que adoptou uma bandeira com cinco cruzes de São Jorge, não é difícil perceber a motivação e o sucesso da escolha. Porque a minha religião é melhor que a dos outros, o Patriarcado de Tbilisi decidiu destruir um cemitério arménio que se encontrava no local, que por sua vez já tinha sido vandalizado pelos soviéticos. É de notar que os Arménios são ortodoxos, mas de um ramo diferente dos georgianos. Os países são vizinhos e, no que talvez não seja coincidência, ambos reclamam para si o título de primeiro país cristão em toda a História. Como o Cristianismo revela paz e amor, claro que os Georgianos optam pelo preconceito e desprezo. É algo tão velho quanto o próprio tempo e chama-se subjectividade. Claro que Cristo falava da amizade entre os povos, mas será que alguma vez conheceu um Arménio? Pois. Portanto, a Georgia sentiu-se legitimada a destruir um importante património histórico e espiritual num bairro historicamente arménio. Acho sempre curioso como a construção de um edifício simbólico pode reflectir o espírito de uma comunidade, a sua caminhada; e concretização desta Igreja acompanhou os avanços e recuos do progresso da Georgia, dentro dos seus problemas e tumultos e guerra civil, avançando e parando conforme os ímpetos da estabilidade. Daí só ter ficado completada em 2004. É estranhamente simples nas suas linhas. O complexo que a rodeia inclui as residência do Patriarca de Tbilisi, um jardim, um mosteiro, um seminário e outra logística de apoio a fiéis e peregrinos. Há um portal de entrada ainda longe da própria igreja e temos de percorrer a distância que os separa agredidos pelo sol da manhã, quente, deixando antecipar um dia de calor abafado. Ainda são nove e meia da manhã e já estou a suar como se fosse um gato num bairro recheado de restaurantes chineses.
Depois de algumas fotos, ouço um
murmúrio grave e com o ritmo regular de um metrónomo vocal. Não reconheço a
língua, como tal deve ser georgiano. Sinto-o planando do interior do edifício e
não estou sozinho. À entrada, duas senhoras idosas vestidas de preto parecem pensar sobre as suas escolhas de vida; e o negro é a cor que mais se repete
no vestuário de quem está e de quem chega. O espaço é largo e muito alto, sem
decoração na pedra que não linhas directas, verticais, relevadas. Em cada uma
das seis colunas interiores, olha-nos o desenho berrante de um ícone ortodoxo,
invariavelmente um idoso de túnica azul segurando uma relíquia e um livro com
os olhos tenebrosos de quem julga sem vergonha, de quem pede penitência e não
dá clemência, só oportunidade. Na parede sobre o altar, há uma gigante versão
de um destes ícones, um imenso homem de vermelho e ciano que ergue a mão em
bênção. É Jesus, o Nazareno. Por debaixo, numa versão menor, o patrão maior do
Cristianismo ensina alguns históricos patriarcas ortodoxos, provavelmente na
melhor maneira de conseguir comida infinita. Enquanto capto estes pormenores,
os cânticos tornam-se opressivos, inescapáveis, pesados. A ideia parece são ser
celebrar, mas punir. Vigiar e punir. Não há instrumentos, apenas vozes de
homens, das profundidades de uma caverna já de si profunda, clamando num idioma
que me é estranho pela vibração do arrependimento. Os fiéis presentes alternam
entre o macilento e o dramático. Enquanto passeio, não ouso fotografar, a não
se alguns cliques discretos que carrego com a máquina junto ao peito. Não sou
cristão, mas momentos de devoção carregada de desespero de alguma forma
comovem-me num certo antro cá dentro que não sei bem como apagar. Tenho
simpatia por quem chega ao fim do caminho e só encontra de bom para si o
inacreditável. É preciso atingir um certo ponto de angústia, ou de crença
inquestionável, para se ser religioso. As instituições religiosas costuma
jogar com isso, com essas duas capacidades: a de perder a esperança num saco
roto ou a de se entregar sem qualquer tipo de hesitação ao que é
incompreensível. Sei-o racionalmente, devia olhar para estas pessoas como
papalvos, e sei que parte de mim o faz e fará e está a fazer enquanto escrevo
isto. Mas quando beijam os quadros e as figuras com devoção, e total
desrespeito para com as regras higiénicas contra a COVID-19, quando estacam
minutos desfilantes numa tentativa de desfibrilhar a vida pelas letras que
constam num pequeno livro de oração, quando mulheres entram de cabeça coberta
numa reverência maquinal, há algo que não se consegue bem transmitir nas
palavras e que só as grandes mentiras permitem: a comunhão de uma ilusão que
não percebe nem entende, mas que se abraça sob pena de vivermos mais
solitários, mais abandonados. Dando uma volta a pé pelo espaço da igreja, vejo
bastantes pessoas. Sou apertado por cada nota musical cantada, num momento que
me é raro deixo-me deslizar à maneira de uma bola que num jogo de bilhar se
encaminha para o buraco, mas bate três vezes nos cantos e sai. Observo,
tentando não invadir o espaço de cada um. Reparo que sentado uma cadeira, um
homem ricamente vestido, preside a tudo com uma cara menos beatífica e mais
feroz. Barba de derviche, longa e grisalha, óculos redondos e uma postura de
quem está muito para lá de oferecer consolo. Sinto que os ícones espalhados,
atrás de vidros, limitados por molduras, oferecem mais empatia que aquela
figura. O momento é solene, tem a sua beleza, mas até naquele antro interior
cuja localização me é desconhecida, entendo que o que vejo no mundo está para
lá das vibrações da voz que empurra para as brasas. Sem pressa, com paciência,
encaminho-me para a saída. O espaço luminoso não esconde as ondas tenebrosas de
uma ortodoxia escura, à moda eslava, mas perdida entre a Europa e a Ásia. Um
cristianismo feito por gente dura e dada ao sacrifício, cuja História está
carregada de episódios de abnegação perante uma força maior, como se o
indivíduo se submetesse a vontades insondáveis de morte alheira para a
celebração de valores universais se o universo estivesse mais carregado de anãs
vermelhas de sangue do que de supernovas de esperança. Oferecem algo naquela
igreja, mas não vou aceitá-lo, porque há algo em mim que se repele quando vê
mulheres cobertas de negro da cabeça aos pés como se essa fosse a sua única
missão enquanto vivas. Antes de me retirar, a última imagem que me fica é a de
uma idosa encostada a uma coluna, em transe, com um caderninho nas mãos que lê
em sofreguidão existencial. As carnes da cara afundam nos espaços entre os
ossos do crânio e por momentos, sinto que quanto mais reza, mais paga em saúde
física. Dias depois de ter voltado de viagem, a face daquela pessoa ainda me
lança em inquietações sobre o mundo. Quando li pela primeira vez sobre a
vitória dos Taliban em Cabul, foi nela que pensei. Gente que parece viver, mas
que na verdade se esfuma numa altar pírrico como filhos de um deus menor,
desconhecido e inconcebível no seu desprezo e da sua indiferença perante o que
é realmente importante. Nós.
Uma rua, do nosso lado esquerdo,
atravessa um bairro antigo de Tbilisi e é por ela que vamos aceder ao centro da
capital. Casas velhas e decrépitas alternam com casas destroçadas. Tijolos
persas associam-se a novas cores berrantes e há, espreitando de portas
espaçadas, desejos de transformação turística. Existem ocasionais negócios, mas
acima de tudo a confusão que aprendi a associar às cidades asiáticas, um caos
organizado onde todos se entendem, menos os pobres estrangeiros que não
receberam o manual. A certo ponto sinto-me a alucinar, porque juro ter visto
condutores em posições diferentes de veículos. Uns guiando à esquerda, outros
à direita; mas percebo que é o comum, que os carros com volante destro são mais
baratos e afinal, uma das grandes capacidades do ser humano é a adaptação.
Passamos por um pequeno parque onde velhotes jogam à sueca e continuamos a
descer, ladeados por trânsito aleatório até um pequeno miradouro que oferece
uma vista de grande quilate sobre o parque Rike, um dos locais mais
frequentados de Tbilisi. Situado junto ao rio Kura, é um espaço para se estar e
ficar, muito verde, com fontes luminosas, um skate park e várias construções de
aspecto modernaço. É um dos símbolos da transformação da Georgia numa pátria de
inspiração ocidental, europeia, contemporânea. Tenta fazer pelos seus
habitantes o que a perseguição de gays desfaz rapidamente. O parque têm outros
objectivos simbólicos. Visto numa perspectiva aérea, e é possível fazê-lo
através de um balão estacionado mesmo no centro da área, cria um mapa em grande
escala da Georgia, com as suas linhas fronteiriças regionais. Espalhados pelo
espaço, há objectos curiosos e claramente colocados para oportunidades
fotográficas: um grande piano branco de mármore, um tabuleiro de xadrez gigante
com peças a condizer e uma sala de espectáculos construída para se destacar,
pois termina em dois mastodônticos tubos de metal que dominam o lado leste do
parque. Brincam com a opinião alheia acerca da sua harmonia ou cacofonia
relativamente ao espaço. Mas destacam-se e convidam-nos a explorar e ver. Todo
este espaço chama-se, apropriadamente, a Praça da Europa. É um piscar de olho à
União Europeia, um convite ao convite. Uma demonstração de simpatia pela Europa
ou a reflexão da ideia de que se a Polónia e a Hungria podem fazer parte dos
valores europeus, porque é que não temos os mesmo direito?
O miradouro é um varandim onde podemos tirar
fotos e contemplar os elementos mais
evidentes do parque e também a outra margem do rio, que visitaremos de seguida
e inclui o que de mais importante compõe o seu centro histórico. É o nosso
objectivo seguinte. Temos de descer umas escadas íngremes, atravessar o parque
e depois o rio. Vou presumir, porque adoro presumir sem certezas, de que existe
uma ponte para atravessar. É a beleza da presunção do que não se sabe, a esperança
e a fé de que existe. Enquanto caminhamos, vejo crianças brincando, artistas de
rua, vendilhões que não do templo. Neste parque, Tbilisi é uma cidade de tempo
que há-de vir e não o amontoado confuso de casas inabitáveis onde mora gente,
de poeira e sujidade que vi no caminho que desci. Da mesma forma que se pode
perceber muita coisa sobre um por aquilo que come, também se intui a ideia que
fazem de si através das suas cidades. Esta capital procura-se num meio caminho
entre o que o passado fez e o que um futuro pode trazr de novo ou manter de
antigo. O parque Rike e a Igreja da Santíssima Trindade são ambas modernas, mas
não da mesma maneira. Um abraça a ruptura, a outra mantém uma continuidade de
algo necessário, mas pernicioso. Como a paixão da qual não desligamos e nos vai
mirrando. Talvez seja assim a Georgia. Um jogo de corda que puxa de um lado,
puxa de outro, mas não parte nem acaba. Só estica e vai esticando. Numa encruzilhada
que não sei bem onde vai dar; mas numa cidade que ainda que dividida, tem muita
personalidade, sinto-me com vontade, apetite e abertura de mente para tentar
descobrir o que mais há. Se sou renitente em encher o bandulho de comida
internacional, dou graças a esses deuses da viagem chamados curiosidade e
caminhada de ser felizmente muito guloso nos cozinhados da descoberta.
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