quinta-feira, fevereiro 21, 2013

A expressão, antes da liberdade



Não consigo pôr de lado a minha opinião de que Miguel Relvas representa um tipo de decadência cínica. A culpa não é inteiramente dele: como país, ajudámos a construir e a aceitar, com a nossa passividade e o mau trato que damos à inteligência, estes ciborgues que se instalam no sistema nervoso central do sistema que nos governa. No entanto, o que direi a seguir é algo puramente de lógica e de raciocínio, baseado numa crença de que embora o mundo e os valores não sejam inteiramente subjectivos, como alguns relativistas algo idiotas querem fazer crer, há mesmo situações que são caleidoscópios à espera da perspectiva correcta.

Uma amiga minha defende que cantar durante o discurso de um político não lhe cerceia a liberdade de expressão, e está certa. Por natureza da profissão, um político terá sempre um exercício desse direito superior ao meu, por exemplo, que muito raramente na vida de tive um microfone à frente, e nunca para me dirigir a um potencial auditório de centenas de milhar para exprimir aquilo que realmente penso acerca do estado de país. Relvas e eu estamos no mesmo patamar no que toca a liberdade (embora isto seja discutível), mas no que toca à expressão, vai uma distância como daqui ao Brunei. É por isso que não consigo entender em que é que aqueles cidadãos que para lá foram usar "Grândoa, vila morena" com o uso que Zeca Afonso intentou afectaram a liberdade de Miguel Relvas. Este, no final, deve ter dobrado a folha de papel e regressou ao carro apenas melindrado por ter apanhado, surpresa, cidadãos descontentes com as suas argoladas constantes e reocupados com a situação de sobrevivência em que, na generalidade, se transformou a vida de quem continua a ser cidadão no próprio país. Se amanhã lhe abrirem o microfone nalguma reunião do PSD, ou conferência no Hotel Sheraton de cinco estrelas, ou numa comissão parlamentar, as palavras continuam lá, serão ditas e manter-se-ão iguais a tantas outras que ele já disse. Não é que eu seja muito mais original, mas tenho ao meu serviço apenas o Facebook e este canto onde só passo de vez em quando, e o meu público é muito restrito, na medida em que se quantifica nas poucas pessoas que me vão querendo ouvir. Na verdade, quem protestou fez um favor a todos: se há coisa que normalmente irrita, é a repetição, excepto quando usada por motivos artísticos, e se bem que Relvas seja um artista, não é um daqueles a que queiramos assistir.

Já que estou a falar sobre política, não posso deixar também de notar como a oposição é, de facto, das piores coisas da Democracia quando,como hoje, a política deixou de ter o monopólio da inteligência. É também por aqui, pela quantidade de labregos e energúmenos que ocupam cargos de relevo que a noção de Serviço Público se expõe a crítica facilitistas quando comparada com o Serviço Privado. A constante exigência de demissões, de forma a precipitar novo sufrágio, sem apresentar qualquer ideia ou conceito estruturado acerca da resolução da crise, e a falta de coragem de assumir ideias que fracturem realmente (quando já se viu que depois de Irlanda e Grécia, Portugal será nova vítima do fenómeno "Falhou nas outras, mas nesta tenho a certeza que fazemos o mesmo e dá!"), de ser criativo, cria em mim o tipo de dúvidas que até agora estavam reservadas às parvoíces internas da minha mente. Liberdade de expressão, dada a quem não tem grande coisa relevante a exprimir.

E depois, perguntam-me por que sou pessimista.

4 comentários:

Anónimo disse...

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João Saro disse...

Só vi isto agora e já escrevi sobre isto no Sábado. Não posso concordar no caso do ISCTE... é a caixa de pandora aberta ao livre arbítrio de cada um. A partir de agora, pode-se silenciar porque decido que não tenho as mesmas oportunidades que o outro?

Mas o que me preocupa não é tanto estes affairs, eles passam e, de facto, o Relvas vai ter bem mais oportunidades para falar. O que me preocupa é o espírito das acções... que pode parecer bonito porque estamos todos zangados, mas que têm ainda mais problemas que as tais manifestações apartidárias.

http://efeitosifao.blogs.sapo.pt/30764.html

João Saro disse...

A última frase parece que estou a colocar intenções malignas na coisa. Não verdade, até acho que as manifestações apartidárias têm as suas virtudes (apenas não me consigo rever nas mesmas). No entanto, não vislumbro ali uma ideia para melhorar/alterar a democracia... é uma espécie de "queremos participar, mas apenas a protestar"... pior só quando vem acompanhada de falta de tolerância sobre as opiniões dos outros.

Post-It disse...

A cantiga é uma arma :)
Pessoalmente, não concordo com os comentários do João Sardo.
Acho que, pelo contrário, a psrticipação directa das pessoas nas decisões que nos afectam é uma solução promissora.
Quando se canta "o povo é quem mais ordena", o que se quer dizer é que as decisões políticas não cabem apenas a uma elite, cada vez mais enterrada em interesses económicos e corporativistas.
Mais, há uma vontade de igualdade e justiça social e uma noção de que a democracia está "doente".

(Mas) Há ainda outra cantiga do Zeca que diz isto tudo muito melhor do que eu:
"Quando a corja topa da janela
O que faz falta
Quando o pão que comes sabe a merda
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta

Quando nunca a noite foi dormida
O que faz falta
Quando a raiva nunca foi vencida
O que faz falta
O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é acordar a malta
O que faz falta

Quando nunca a infância teve infância
O que faz falta
Quando sabes que vai haver dança
O que faz falta
O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é empurrar a malta
O que faz falta

Quando um cão te morde uma canela
O que faz falta
Quando a esquina há sempre uma cabeça
O que faz falta
O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é empurrar a malta
O que faz falta

Quando um homem dorme na valeta
O que faz falta
Quando dizem que isto é tudo treta
O que faz falta
O que faz falta é agitar a malta
O que faz falta
O que faz falta é libertar a malta
O que faz falta

Se o patrão não vai com duas loas
O que faz falta
Se o fascista conspira na sombra
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta dar poder à malta
O que faz falta"