segunda-feira, março 25, 2013

Dolce droga


A propósito da descoberta de "Una mattina", há quase sete anos e meios, escrevi o seguinte acerca desse álbum: "A música é leve, e Einaudi parece tocar piano com a mesma gentileza que eu gostava que me lavassem o cabelo". No espaço de tempo em que coloquei o ponto final deste post  escrevi este, esse Einaudi, que é também Ludovico, tornou-se num dos maiores accionistas de tudo o que se passa na minha mente, e no que seja que congela as minhas emoções e as deixa expostas ao sol, de quando em vez, para me derreterem. No sobe e desce da minha cotação, do meu próprio índice, é ele o factor que evita crashes definitivos e me permite, uma e outra vez, voltar ao positivo, em vez de continuar no vermelho durante longos meses de uma economia de mercado em queda livre. Há uma relação de união siamesa entre a minha capacidade de renovar o meu humor e as cordas de piano que ele martela e estica ao ponto de me esticar também a mim até à varanda de uma qualquer paisagem que só existe no segredo que a sua musica partilha comigo.

A manhã transformou-se no amanhã, e num livro nocturno que num lapso de tempo lembrou uma onda, em dias de espuma, que rebenta num quarto fora deste mundo. As mãos de Einaudi deixam de tocar um piano, e passam a carregar nos meus botões. O pianista italiano é o meu quadro eléctrico: desliga os curto-circuitos dentro da minha cabeça, e carrega em alta voltagem aquilo que de criativo brota dela, permitindo-me equilibrar-me numa fina linha de desequilíbrio controlado. Não posso exagerar a importância de Ludovico para o meu bem-estar pessoal. Se uma pessoa pode ser uma pauta, ele desenha em mim boa parte das minhas notas, e em períodos muito negros foi mais do que um psicólogo. Bem sei que é costume retratar a importância da música em termos hiperbólicos, mas não aqui. Sem Ludovico, eu seria certamente um destroço humano mais acentuado; e por isso, vê-lo ao vivo era uma obrigação, em que falhei duas vezes, porque ainda que ele me torne um ser humano mais completo, não faz de mim uma pessoa mais corajosa para vencer os meus pequenos medos picuinhas, que me rebaixam e me aprisionam. Em 2013, venci-os, finalmente, e peregrinei, em direcção à cidade do Porto, para me sentar num auditório e deixar que o italiano fizesse de mim o que ele quisesse.

Ele fez. Tudo o que eu consenti, e mesmo aquilo que, em resistência, apenas cedi porque nunca deixaria de ser eu. Na música de Einaudi, descubro aquilo que escondo até de mim mesmo, e numa composição que voa, saltei para um pequeno lago de água salgada que produzi em golpes de vista catrapiscada. Foi uma experiência que a palavra "magnífica" apenas pode traduzir em sombras baças para os não-iniciados. Mas aqueles que, como eu, fazem de Einaudi um refúgio e uma fonte de prazer quase invisível, inefável, sabem do que falo. Em duas horas, saí deste mundo, e passei algum tempo (um lapso, até) fora daqui, num lugar onde viver é algo que pouco tem a ver com a sobrevivência, e a melhor das existências possíveis é uma só, sem qualquer vislumbre do que possa ser pior. Porque não existe. Pode conseguir-se isto com música e por num tempo em que nos querem reduzir a números, e a importância dos nossos gostos, escolhas e actos a aritmética económica, lembrarmos de que há momentos e actos que simbolizam a nossa divindade interior é mais importante do que nunca. Encontrar-me em Einaudi lembra-me disso, que ser agnóstico é precisamente o que me define como crente: o sentido é aquilo em que acreditamos, nada mais. Tudo o resto são ideias impostas; e nada disso está em Einaudi. Nele, encontramos o que quisermos, o que acreditamos e em pequeninos momentos, até aquilo que somos. Ludovico não é um génio musical, mas a sua música é uma lâmpada mágica onde cabem os desejos mais importantes do mundos: os nossos.

No final, os aplausos. Foi uma paga simbólica. Nunca na vida poderíamos devolver o que Ludovico Einaudi nos tinha dado, com a sua orquestra. Sorrimos todos uns para os outros, e nem nos conhecíamos. O pianista italiano sorriu-nos também. Agradeceu com uma timidez exuberante, e desapareceu do palco com os seus realizadores de sonhos. Naquele momento, estava eu, e não o outro eu. Podia ter dito tudo o que me ia na alma, se as pessoas certas ali estivessem. Em silêncio, fechei-me e guardei com aconchego as memórias daquele par de horas. Vão para aquele local especial onde guardo os sorrisos da minha avó, os jogos de futebol com molas aos 8 anos, o meu primeiro beijo dentro de um carro e uma pequena meia hora onde fiz um pão com alguém que podia caber na composição de Einaudi "Bye bye, mon amour". Há lá mais coisas. Mas as que disse, como a música de Einaudi, partilho-as com os meus amigos. As restantes, são minhas, e vão continuar a compor-me durante o resto da minha vida. Um pouco como os passeios no teclado de um certo italiano.

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