quinta-feira, março 14, 2013

O que é uma palavra



O novo século trouxe uma multiplicidade admirável de novos elementos que enriquecem as nossas vidas. No entanto, em companhia paralela, soltou igualmente na nossa existência mínimas alterações que, na sua pequenez, viram ao contrário algumas das nossas construções mentais. A bastardização de alguns termos é apenas uma releitura dessas mesmas alterações, dando de barato conceitos que já foram exclusivos ou pelo menos restritos, e agora se vêem invadidos por falsos ídolos e enganadores camaleões que se fazem passar por eles. Duas delas, que me irritam particularmente, são as palavras nerd e "génio".

A sério que me irrita o (ab)uso da primeira. Um qualquer indivíduo que viu todos os filmes da saga "Star wars" chama a si esse título, porque o paradigma dos últimos anos mudou: hoje, ser nerd é algo bem fixe, até porque a própria significação da palavra mudou. Basta alguém saber meia dúzia de tangas sobre um assunto mais obscuro e pimbas, é nerd. Ou geek, que é uma coisa diferente... É passar em lojas de informática ou telemóveis, e há lá um "Ponto Nerd" ou "Canto do Geek" ou algo semelhante. Há um aproveitamento comercial em redor do que é se "nerd", que apenas acontece porque se convencionou que nerd é cool. Não é. Por definição, não pode ser. Parte do encanto de ser nerd reside na falta de aptidões sociais e dificuldade de enturmar que apenas advém de muito tempo passado em casa a obcecar com objectos de pop culture ou erudição. Ser nerd é, por exemplo, não ir a um encontro com uma miúda porque na noite em que ela marcou isso contigo, dá um episódio de "The X-files" e por acaso, a Internet ainda é uma coisa da pré-história, e tu não tens video porque só apanhas a TVI na casa do forno da tua avó, e se perdes o episódio, corres o risco de nunca mais voltar a ver. Usando uma história que, obviamente nunca se passou comigo. Vocês sabem que não. Gostar de "The big bang theory" não faz de vocês nerds; mas ter lido livros de Carl Sagan ou Stephen Hawking sobre o assunto e com gosto, isso sim, já vos pode trazer algum bem. Como em tudo, para sê-lo, é preciso trabalho, dedicação e saber que a perda de virgindade não tem, de facto, um timing, e que andam miúdas lá fora, mas livros e filmes são objectos de devoção e dissecação que estragarão a vossa vida social, mas vos tornarão, a longo prazo, pessoas mais interessantes para quem realmente se deve interessar: vocês mesmos.

"Génio" atingiu também uma banalização que me aflige. Devia ser das palavras a ser usada com mais tempero, e no entanto, quão facilmente é brandida num jorro instantâneo de fascínio. Qualquer boa satisfação nos faz dizer de alguém que é um génio; uma simples piada que nos provoque uma risada faz-nos sair essa palavra; e surgem, assim em moldes de hipérbole, nomes que ganham contornos míticos e exagerados. Dei já como exemplo aqui, há uns anos, Quentin Tarantino e a sua mania de fazer mash-ups com filmes. A quantidade de vezes que lhe é colado o rótulo de genial é já o suficiente para se tornar num adjectivo automático quando se gosta de um filme do texano. Ora, para melhor se comparar e ter a distinção do que é ser genial, nada como numa semana nos embrenharmos na cabeça de um outro realizador cuja complexidade e valor da obra deita a de Tarantino por terra e cujo nome, colocada na mesma frase com este, só pode ter como motivo uma diferenciação cabal da habilidade de ambos: Stanley Kubrick. Ver "The shining", "Eyes wide shut", "Full Metal Jacket" e "2001 - a space odissey" na mesma semana é não só perceber a vastidão de inteligência e ideias que existe entre ambos (e outros supostos génios que todos os anos são brandidos nos escaparates), como pedir uma espécie de desintoxicação de cinema durante uns dias, pois ficamos tão habituados ao gosto de picanha argentina que mudar para bifes de pá só pode dar mau resultado no paladar e no sistema digestivo. Um Génio é alguém cuja obra permanece isolada, inalcançável, intemporal, que nos desafia completamente a pensar e a ver o mundo de uma maneira diferente, e desperta em nós 380 sóis a explodir, apenas para entendermos que fomos apanhados no respectivos buracos negros de fascínio no resquício da experiência.

Tarantino, não o nego, é bom, nerd. Mas comparado com Kubrick, como disse alguém, é um berlinde; e daqueles que nem têm muitas cores por dentro.

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