quarta-feira, maio 29, 2013

Sociopatia




A ala de oncologia de um hospital foi criada para ser a sala de aula do curso de sociopata. Quando entramos e olhamos a sala de espera, é obrigatório fazer crescer em nós uma distância emocional em relação à miséria. As cadeiras estão cheias de pessoas em diversas fases de tratamento, e vemos desde indivíduos com a saúde suficiente para se sentirem quase invencíveis e optimistas, até espécies de árvores encarquilhadas, ainda não velhas, mas conhecendo que a sua folha está caduca, e o Outono dará lugar a um Inverno de descontentamento de quem as amam. É como se uma súcubo cruel passeasse pela divisão, dando beijos de morte a toda a gente. Alguns, sortudos, levam apenas com chochos leves, deixando apenas um leve travo a acre e amoníaco. Um punhado tem o azar de ser vitima do linguado mais desagradável de todos, que revira não apenas a boca, mas todo o corpo numa convulsão que apaga o brilho que há nos olhos e a dignidade última que é podermos estar erguidos pelos nossos próprios meios.

Podia ser só isto. Mas no caso dos HUC, o edifício de oncologia tem dois andares adicionais.

A visita ao intermédio prolonga esse sentimento de biasma, onde já nem se consegue sentir medo, que é um primo muito afastado da esperança, em grau zero. Existe resignação, e espera, e ainda assim o espaço para a incerteza que as situações extremas ainda têm. Existe uma gigantesca clarabóia que dá a ilusão de não estarmos dentro do que seja, mas sim num elísio espaço, com uns toldos e cadeiras, como se fosse a esplanada onde alunos de um mesmo curso se reúne nos intervalos das aulas. As conversas parecem de adolescentes: fala-se de Radio, de como correm os testes de Quimio e das novas tecnologias da TAC, um novo Ipod que coloca o som realmente dentro do cérebro. No entanto, tal como a clarabóia, serve apenas para disfarçar o desconforto, um faz de conta requintado e misericordioso. É um acordo de cavalheiros entre colegas da mesma canalhice, ao compreender que não se pode estar ali a falar Daquilo a toda a hora e a todo dia, mesmo que seja Daquilo, a partir do momento em que o mundo lhes cai em cima, que todos os dias e todas as horas se vão preencher a partir de então. Tenta-se fugir Daquilo, mas dos outros que sabem Daquilo, porque só vão conseguir falar Daquilo e de nada mais, à tonelada.

Assisto a isso todos os dias; e assisto com a desconfortável sensação de saber mais sobre o real estado Daquilo do que quem tem de carregá-lo. Vejo sorrisos de abençoada ignorância, quando me apetece cair por dentro e desfazer-me. Felizmente, como disse ao início, a ala de oncologia cria sociopatas. Ou, no meu caso, reforça-os. Se nunca ninguém fez uma defesa da falta de empatia como uma dádiva social, serei eu o primeiro. É tão ou mais útil do que o seu oposto, quanto mais não seja porque nos permite ser nós mesmos, completos, em situações que claramente nos ultrapassam em curvas. Só podia, porque se a vida fosse uma recta, não chocávamos tantas vezes.

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