segunda-feira, outubro 07, 2013
O horror de não pensar
Há algo de estranho neste livro. Não o conteúdo, que é, como de costume quando Judt pega na palavra, vivaz, inteligente, erudito e lúcido em demasia, mas em saber que a lenta desagregação física do corpo do historiador inglês (que viria a morrer em 2010 de esclerose amiotrófica) é incapaz de deter um dos intelectos mais activos e ágeis do final de século passado e início deste, um homem para quem a intelectualidade era uma arma, uma obrigação e um dos pilares estruturantes de uma sociedade justa e funcional. Longe de ser um espectador, Judt, durante toda a sua carreira, fez viver a sua crença de que o intelectual é interventivo e lutador, e usa o seu ponto de vista como algo de atingível e real, por muito utópico que possa parecer. A sua defesa do Estado-Providência, o modelo de governo que preferia, devia ser a leitura de cabeceira de Pedro Passos Coelho. Judt soube ser sempre um desses, com toda a classe: polemista como poucos, sem medo de afirmar à boca grande o que se comentava à boca pequena, a sua crítica à política de Israel tornou-o num judeu muitas vezes apelidado de anti-semita, como se tivesse um ódio à sua própria origem. Ele, melhor do que ninguém, sabia do que falava: um sionista convicto, a sua vida num kibbutz durante a Guerra dos Seis Dias abriu-lhe a pestana para a realidade. Ao contrário de muitos intelectuais actuais, ele viveu o que pensava.
Na conversa que manteve durante vários dias com outro colega historiador, Timothy Snyder, Judt parte do seu percurso de vida para se lançar em reflexões sobre os temas que marcaram o seu percurso académico como historiador, e as suas lutas públicas como intelectual e pensador: o sionismo no pós 2ª Guerra Mundial; os fundamentos intelectuais do Marxismo; a memória do Holocausto; o estado-providência; a invalidade do estado de Israel como hoje existe; a Europa depois a 2ª Grande Guerra; o declínio do papel do intelectual, e da Esquerda, nas sociedades actuais. É inevitável que o "Thinking the 20th century não soe a epitáfio intelectual, e é-o de facto, quanto mais não seja pelas ideias que Judt deixa livros que, sabemos agora, nunca poderá acabar, e da chama e vontade que existe dentro de um cérebro ao qual a esclerose não chega e continua a articular, entre intervalos temporais, os caminhos que julga serem os necessários para o triunfo e felicidade do percurso humano. A sua defesa do historiador como um participante na actividade pública e política, sem nunca esquecer o seu papel como anotador (e não intérprete abusivo) dos factos, figuras e acontecimentos é constante, e esta discussão intelectual com Snyder serve não só como a prova cabal da perda precoce de um dos nossos grandes cérebros como colectivo humano, mas também é prova de que o raciocínio livre e informado, numa era obscurantista onde grassa a estupidez e meia dúzia de bitaites passam por opiniões com fundamento, é um bem tão precioso quanto um orçamento equilibrado. Para que se possa pensar, devidamente, o vigésimo primeiro século.
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