terça-feira, novembro 12, 2013

F.


Doeste-me duas vezes. Uma quando partiste, a outra quando ficaste. Na primeira, a dor foi acamada pela certeza de que a história continuava a ser escrita; na segunda, o desgosto levedou com o fermento da nossa quebra, e durou até ao ponto onde não te conseguia distinguir do que era certo. Certamente que te diluíste no rio do tempo, mas sem nunca saíres da superfície dos seixos. De vez em quando, regresso às margens do rio e faço os seixos dançar sobre a superfície da água. Saltam pingos, tornam-se estilhaços, e a ironia está saber o quanto me dóis.  É tudo truque de prestidigitação, pois cria uma ilusão: a de que conseguiremos transformar a dor em prazer, pela simples vontade e desejo de confiar no coração. Mas a cabeça sabe o que o coração não reconhece, que os barcos partem rio acima e não regressam. Por muitas pedras que lancemos, por muito que esfomeemos, por muito que tracemos mapas. São viagens de ida, que nunca têm volta.

Ou têm. Tu tens. Vais ter, pelo que me disseste. Eu nunca parti, de facto, da margem do rio, mesmo que tenha escrito a mim próprio uma longa missiva dizendo o contrário. Quando soube que regressarias, o fim transformou-se em entretanto, e o talvez num definitivamente perpétuo de viagens em torna da minha mente. O paradoxo é que me anulas a racionalidade. Se não confio no coração, nem posso seguir a cabeça, fico sem saber para onde me virar, ou se nasci torto sem hipótese de me endireitar. Não existe ter amado alguém: ama-se, e vai-se gerindo mesmo quando acaba a pulsão de revolver e correr e mudar tudo o que se move para mover quem amamos. Mesmo que não haja esperança ou solução, mesmo que não haja saída. Amar é saltar à corda com a realidade, e esperar não tropeçar, mesmo sabendo que as pernas se cansam e a corda passa debaixo de nós em modo perpétuo. Mas não nos cansamos de tropeçar, até que outro alguém pega na corda; e mesmo aí, o suor do outro continua lá, na ponta que apertou na mão.

Sei que quando te vir, vou sentir a energia de cem milhões de sóis. Sei que quando te abraçar, vou criar galáxias. Sei que quando começarmos a falar, ou haverá um Big Bang, ou uma Anã Vermelha. Sei que quando caminharmos lado a lado, terei sempre de me vigiar. Sei que me vou guardar, com a noção de que me arrobarás com um sorriso. Sei que me vou defender, porque, afinal, também contribuíste para que fosse assim. Sei que vou perceber o inglês que não sabes, mas nunca entenderei o que não falas quando olhas para o chão. Não sei se nos vamos reconhecer, porque oito anos são muito tempo. Temos ambos menos cabelo, talvez um pouco mais de sabedoria, mas acumulámos mais dor. Tu perdeste o teu pai, eu vejo o meu a trilhar um caminho numa floresta escura. A par e passo, as nossas vidas não andaram emparelhadas, mas houve sempre qualquer coisa que me fez voltar àquele momento em que chegaste e eu parti de mim em direcção ao que ainda não conhecia. Antes de me teres doído a primeira vez; e apesar da energia do reencontro, sei que me vais doer uma terceira vez, quando chegares. Um bocadinho, e uma boca de dor a engolir-me, e a cuspir-me. Mas contigo, a dor devora-me outra vez. Porque sempre me foste indigesta. É isso que acontece com refeições demasiado condimentadas e saborosas: custam a digerir.

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