sábado, novembro 09, 2013

O que está certo


A imagem que existe de mim é a de alguém meio desligado da realidade. Entendo como é que ela surge, e provavelmente está mais certa do que aquilo que gostaria de admitir. Defino-me sempre como um adulto não funcional, o que está dentro do limite da crença. Não estou bem equipado para lidar com as responsabilidades de ser crescido, mas já aprendi, pelo menos, que isto vai lá de tropeção em tropeção, construindo fisgas com erros para apedrejar os vidros que nos separam dos nossos objectivos. Os cortes ficam, mas cicatrizam e transformam-se em histórias para contar. Nunca é mau. Apenas quem não esteve na sala de espera de um centro de saúde não dá valor a ter-se memória e mundo interior. De preferência cheio de selvas para uma pessoa se perder e andar embrenhado para não ouvir problemas alheios.

Ora, tenho notado, neste último ano, que essa imagem tem mudado um pouco. Várias pessoas chegam à minha beira e cumprimentam-me com um certo esgar de orgulho. Há nos seus olhos um reconhecimento folclórico equivalente aos rituais de passagem e crescimento masai, na concordância de que estou numa nova etapa e de que agora posso ser olhado com respeito. Percebo com rapidez que tudo isto se deve a passar a ter sido babysitter e enfermeiro do meu pai, no seu caminho pedregoso de doença e frustração. Não quero que isto soe a queixa, porque a maior parte das pessoas que me interrogam sobre o estado do meu pai, e até sobre o meu próprio estado, são incrivelmente bem intencionadas. Posso não querer falar com boa parte delas, como já aqui escrevi, mas isso não significa que não reconheça o mínimo, e máximo, de preocupação nos seus rostos, e até mesmo aquele ligeiro ar de quem não sabe bem o que dizer. Eu reconheço-o tão bem, já dancei com esse ambiente sonoro, e é de um desconforto atroz, que partilha a mesma impotência de quem vê alguém a desintegrar-se atomicamente a cada pequena detonação tumoral. Ainda assim, não entendo esta congratulação e sentimento de que estou a fazer algo de louvável. Não vejo a coisa assim, nem poderia. O que estou a fazer é a única coisa possível.

Ele é meu pai. Quando eu não tinha sequer capacidade de juntar letras para escrever "Pai", vigiou-me e conduziu-me e levou-me a que estivesse aqui, sem saber o que quero fazer da vida, mas com a certeza de que a vida dele é algo de que vou fazer parte até que ele deixe de ser parte da Vida. É aquilo que tem de ser feito, é o que está certo e tanto como a memória, é a maneira que ele tem de se perpetuar e garantir que o construiu não foi apenas uma casa ou uma vida, mas sim pessoas que sabem o que deve ser feito, porque deve ser feito e acima de tudo, que o maior feito é ser pessoa completa e atenta, procurando estar lá com a simples intenção de se querer bem. Para mim, não é mais do que isto. É o meu dever, é aquilo que sinto e o que me dá alguma paz interior, no meio desta turbulência. Talvez ele não saiba, mas faz-me crescer: não funciono como adulto, mas vou-me sentindo, um bocadinho mais, como tal. Como sempre, o meu pai a conduzir-me.

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