Ora, tenho notado, neste último ano, que essa imagem tem mudado um pouco. Várias pessoas chegam à minha beira e cumprimentam-me com um certo esgar de orgulho. Há nos seus olhos um reconhecimento folclórico equivalente aos rituais de passagem e crescimento masai, na concordância de que estou numa nova etapa e de que agora posso ser olhado com respeito. Percebo com rapidez que tudo isto se deve a passar a ter sido babysitter e enfermeiro do meu pai, no seu caminho pedregoso de doença e frustração. Não quero que isto soe a queixa, porque a maior parte das pessoas que me interrogam sobre o estado do meu pai, e até sobre o meu próprio estado, são incrivelmente bem intencionadas. Posso não querer falar com boa parte delas, como já aqui escrevi, mas isso não significa que não reconheça o mínimo, e máximo, de preocupação nos seus rostos, e até mesmo aquele ligeiro ar de quem não sabe bem o que dizer. Eu reconheço-o tão bem, já dancei com esse ambiente sonoro, e é de um desconforto atroz, que partilha a mesma impotência de quem vê alguém a desintegrar-se atomicamente a cada pequena detonação tumoral. Ainda assim, não entendo esta congratulação e sentimento de que estou a fazer algo de louvável. Não vejo a coisa assim, nem poderia. O que estou a fazer é a única coisa possível.
Ele é meu pai. Quando eu não tinha sequer capacidade de juntar letras para escrever "Pai", vigiou-me e conduziu-me e levou-me a que estivesse aqui, sem saber o que quero fazer da vida, mas com a certeza de que a vida dele é algo de que vou fazer parte até que ele deixe de ser parte da Vida. É aquilo que tem de ser feito, é o que está certo e tanto como a memória, é a maneira que ele tem de se perpetuar e garantir que o construiu não foi apenas uma casa ou uma vida, mas sim pessoas que sabem o que deve ser feito, porque deve ser feito e acima de tudo, que o maior feito é ser pessoa completa e atenta, procurando estar lá com a simples intenção de se querer bem. Para mim, não é mais do que isto. É o meu dever, é aquilo que sinto e o que me dá alguma paz interior, no meio desta turbulência. Talvez ele não saiba, mas faz-me crescer: não funciono como adulto, mas vou-me sentindo, um bocadinho mais, como tal. Como sempre, o meu pai a conduzir-me.
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