domingo, novembro 17, 2013

Matriz de avaliação



Antes de começar a exposição, anuncio que acredito piamente na teoria das camadas da verdade do meu caro amigo Bruno de Figueiredo: as cabeças que vemos nas notícias têm cordelinhos agarrados, puxados por mãos que fazem parte de uma outra camada da verdade, e que por sua vez tem uma terceira a controlar tudo o que se passa. Por isso, perdoem-me a falta de ingenuidade, e não aprofundar a terceira camada, ou seja, o feiticeiro que por detrás de um biombo, tudo vê e controla. Annuit coeptis, o rei que tudo vê. Posto isto, comece a liça.

Já várias vezes exprimi por aqui a minha opinião sobre o estado da Educação em Portugal. Tenho uma posição mais privilegiada do que muitos (inclusive o próprio crasso que dirige a educação, e que chamando-se Crato, julga ser o Prior máximo de quem ensina). Chamar-lhe "Educação" é esticar a palavra até desaparecer, pois não é esse o objectivo das escolas em Portugal. O seu papel, na visão de anteriores governos, é ocupar o tempo das crianças enquanto os pais trabalham, com baixos salários e alimentando uma mecânica social e económica que usa as pessoas como instrumentos. A escola pública, acolhendo os filhos dessas pessoas de condição social mais baixa, tem o papel apenas e só ocupacional. É por isso que a escola privada tem sido mais protegida: é onde os filhos das pessoas com mais pessoas podem estudar confortavelmente longe do caos e do pânico. Por aqui se percebe que a falta de aposta no ensino público por parte da classe política não lhe causa problema: o plano é este, e quanto menos dinheiro se injectar mais se pode dar ao ensino privado, ou simplesmente guardar para outras acções. Não é que sirvam para equilibrar as contas: para isso, era necessário haver um plano orçamental e económico que justificasse cortes, e já se viu, em três anos de governação em PSD, que isso não existe. Há um guião, mas não reforma o Estado: serve de guia a um filme de terror sem fim, com facalhões a trabalhar. Corta-se nos gastos, e pelo meio uns membros em forma de pessoas. Para quem tem ilusões, é isto a Educação em Portugal.

Daí o meu espanto quando se sugeriu uma prova de avaliação de conhecimentos a ser realizada por professores; e não todos os professores: professores contratados. Há aqui um requinte que tem escapado a muita gente: esta prova não é dirigida a toda a classe docente, mas precisamente aos seus elementos mais novos, frágeis e que urge despachar. Nada que não mude, a política sindical dos últimos dez anos tem defendido aqueles que há mais tempo se encontram no ensino, a começar pelos moldes em que é realizado o Concurso Nacional de Professores. Por isso, quando me dizem que os professores são uma classe protegida, é preciso pôr travão no mito. "Alguns", não fazem todos, e colegas meus, da minha idade, que tiveram de cirandar de norte a sul nos últimos anos, a troco de um ordenado que servia para pagar alojamento, gastos mensais, viagens, e pouco mais, não são favorecidos por nada mais do que uma vontade de sofrer em prol de algo que gostam e, acredito, da única competência que aprenderam no seguimento da grande luta nacional do Ensino Superior. O saldo da luta é claro: derrota em toda a linha da esperança de emprego, e uma vitória retumbante da precariedade. Talvez o Ensino Superior se tenha tornando numa roleta Darwiniana onde os mais fortes sobrevivem, e os mais fracos se acumulam à entrada de Centros de Emprego. Tendo em conta a visão economicista dos nossos tempos, muitos considerarão isso a perfeita prova das teorias de Educação mais extremas. Batem palmas e parabenizam-se com o Estado do mundo. Logo, estende-se essa visão mais longe, e o passo mais lógico é escolher, de entre os mais fracos, aqueles que têm mais força de vontade e a coisa que mais se possa parecer com competência docente. Algo que, como disse, acredito ter muito pouco valor nos dias de hoje, naquilo que se pensa como "a Escola".

Depois de abrir a ferida, o ministério adiciona-lhe sal: professores que fazem a prova (e cuja realização determina se podem participar no concurso de professores seguinte) são obrigados a pagar. Todos. Quer estejam a trabalhar ou não. Tenham ou não fundos para isso. Quem não tem, pede emprestado, e não há de mal com isso, pois segundo Nuno Crato "Vinte euros não é nada". Parece-me adequado que para uma prova que vale tudo, vinte euros não sejam nada. Também me parece adequado que uma prova que torna em "nada" toda a formação de um professor (sejam três ou quatro ou cinco anos), seja nada o valor que se paga. Num país onde a política de Educação é irrisória, vinte euros são risíveis, não é? Nuno Crato, que muitas esperanças suscitou quando agarrou num ponteiro laser desse quadro interactivo que é o sistema educativo português, tem mostrado que não é incompetente, ao contrário do que se apregoa: é bastante sagaz, dividindo para conquistar, traçando a propaganda com mestria, e fazendo crer que não só os docentes são parasitas que nada fazem, mas que é justificável tirar a superioridade científica dos professores perante os alunos para que seja mais fácil despedir os docentes. Numa profissão onde essa superioridade é tudo o que pode eventualmente garantir que um aluno acredita naquilo que sai da boca de um professor, vê-se que o interesse não é a estabilização ou a valorização do ensino: como em tudo que tem sido feito nesta legislatura, o interesse é o de ver números a diminuir.

O Ensino português tem muitos problemas, e entre todos os que se relacionam com as escolas, o maior está fora delas: a falta de organização política, e também uma retirada total de escrúpulos e paixão pela arte de educar e aprender. Interessa menos a aprendizagem, e mais a avaliação. Como se as duas coisas tivessem muito pouca relação entre si. Avaliar mal e porcamente professores não é diferente de avaliar mal e porcamente alunos, com programas demasiados extensos para as aulas que se têm, sobrecarregar docentes com tarefas que lhe tiram tempo de preparar aulas e o constante favorecimento de docentes mais velhos, e desinteressados, que se tornam numa esclerose militante, prejudicando alunos e colegas mais novos com genuíno gosto e vontade de tornar o Ensino em algo de atraente e positivo. A prova que querem fazer não avalia nada disto. É um soundbite, um estandarte de batalha que serve para um lado e outro se distraírem do que realmente interessa e de um ataque que nem sequer é encapotado à capacidade da Escola Pública. Sou fruto dela, e não me dei mal. Uma fraca Escola Pública é reflexo de um fraco Governo; e um fraco Governo nunca poderá avaliar o que seja, porque não tem capacidades ou competências para ser respeitado. Não tem a superioridade científica inerente ao cargo de professor.

Uma nação decente faria a única coisa que pode ser feita: entraria nas salas de avaliação no dia 18 de Dezembro e rasgaria as provas. Sem medo. Desautorizava todo um ministério que só está nisto para estragar; e num só dia ensinava aos seus alunos uma lição muito mais importante do que as que poderiam aprender nas restantes aulas: o bom uso do nosso direito natural à libertinagem.

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