sábado, abril 05, 2014

A(mo)r



Um corpo de algodão mirra com a chuva, mas o teu cresce e esmaga-me. Não fico surpreendido, pois só tu conseguirias, ao mesmo tempo, saltar à corda com as leis da Física e jogar à macaca com a tabela periódica. Já encostaste a cabeça ao meu ombro, mas não deixou marca, o que ainda te entristece. Os três passos que ofereceste ao chão à nossa esquerda serviram para ganhares novo balanço. Estamos aqui há alguns minutos só para descobrires se é verdade o que leste, ontem, acerca da densidade do ar. O ar é denso. Riste e entregaste a essa afirmação o mesmo desprezo que se oferece a um bolo que não nos sacia a fome. Como pode o ar ser denso se quase te consegues vestir com ele? E é quando ficas mais bonita, respondo, quando mais nada para além do fino tecido do éter te cobre, te modela e me separa de ti sem que estejamos separados. Um pequeno sorriso corta a chuva, a leve risada que te provoquei é breve, mas embora esteja ensopado é quase como se tivesse ganho três quilos de tecido impermeável e pudesse agora receber o dilúvio bíblico na esperança de ser eu próprio uma arca. Talvez concordasses. Numa noite, pelo menos, admitiste que havia um animal dentro de mim.

Onde leste isso? Não me respondes, pois a tua pergunta foi bem mais longe do que o ar, e já  saltaste para as estrelas. Sem poderes vê-las, acreditas que lá estão, mas é tudo uma questão de fé, pois as estrelas, como se diz tantas vezes, podem não estar lá de facto, e nesse caso, se um nevoeiro aparecesse do chão, como se as ervas fumassem cigarrilhas de anti-matéria, e nos separasse e eu não te pudesse ver, será que estarias e eu também embora não nos pudéssemos ver. Talvez estivéssemos. Estar não é ver, e mesmo que não te ver seja estar uma coisa, que é triste, és e não estás. És em mim, desencarnada, e existes bastante nos meus dias. Existes quando me levanto de manhã e descubro que saíste para o trabalho. O teu calor ainda treme a cama, e é como se estivesses mesmo que tenhas desaparecido e num outro canto da cidade sejas estrela. 
Não, não sou estrela, sou mais asteróide. Apareço de fogacho, queimo, mas trago comigo uma cauda enorme de rochas e detritos, e se acelero demais e apanho algum planeta desavindo na minha órbita vou fazer mossa. Recordas-te daquele documentário sobre a cratera do Iucatão? É isso que posso deixar. 

O ar frio condensa-se em torno da tua boca enquanto te lanças nessa arenga sobre crateras e sobre seres uma arma de destruição maciça. Eu sorrio e no meio da tua insegurança, encontras uma espécie de porto de abrigo onde podes guardar o teu porta-aviões e tirares o dedo do botão vermelho. Esticas os braços e eu sou velcro. A chuva mantém o seu metrónomo e questionas a escolha de sair de casa, naquelas condições, sem qualquer chapéu. Não estamos assim tão longe da porta. Podemos voltar. E voltamos. Enquanto o teu corpo se reencontra em mim, decido decorar o teu pavilhão auditivo com palavras: se fosses um asteróide prestes a colidir com a Terra, o ar denso iria abrandar-te e talvez até desfazer os teus detritos. Eu sou o ar, eu sou o amor que tritura essa causa de devastação que preferes envergar como se fosse a tua farda, e não te lembras que a maior densidade é a dos corpos que atravessam o ar e que são atravessados pelo amor. Não consegues parar de rir. Eu também.
Gostaste? Sim, foi piroso, e tu és pirado. Combinam bem.
Beijamo-nos e regressamos para o interior de casa.

Já agora, ela comprovou que o ar era realmente denso. Uns anos mais tarde, numa viagem ao Planetário. Fico feliz por informar que o mesmo ficou de pé e que a cauda de detritos foi enterrada umas semanas antes quando ela deixou de ser ela e passou a ser nós a sério. Desde então que somos uma constelação, e quem olha para nós vê sempre uma figura. Ou duas, a fazer figurinhas à chuva.

Sem comentários: