quinta-feira, abril 10, 2014

Viagens


A sensação mais agradável que existe em viajar é a de não sermos nós próprios durante uns dias. Não é que escapemos à nossa natureza própria, ao que nos empilha solidamente e é reforçado por cada rotineira acção e movimento que constrói aquilo que conhecemos como o nosso quotidiano. Apenas, como se fosse um poliedro cristalino, varia o ângulo e a refracção da luz e aparece assim, como se nunca lá tivesse estado, uma outra pessoa que vagamente reconhecemos mas sem certezas que alguma vez a tenhamos encontrado. É por isso que viajar é diferente de ir dar um giro, uma volta, de passear, de ver as vistas, espairecer a cabeça ou ir ali e já voltar. Tudo isto se faz até na nossa rua. Viajar é alguma de muito mais profundo e importante, porque retira-nos do ovo e espalha a casca por todo o lado. Em vez de supormos aquilo que pode haver, vamos de facto ao encontro daquilo que é; e a certeza é a de que nunca voltaremos iguais ao que partimos, como se os quilómetros fossem um cinzel que por nós passa e altera feições e formas, sem nunca nos deformar. As viagens mudaram o mundo, mas viajar raramente é mundano, e quando se o for, então é porque nunca se viajou de todo.

Possuo uma lista do tamanho do meu fémur com os países que gostava de visitar sem alguma vez ter tido a coragem, acima de tudo, de fazê-lo. Vai desde a Nova Zelândia até à Argentina, e pelo meio cabem habitats tão variados como a Escócia, o Chile, o Canada (com o apêndice Alasca), a Noruega e um lado simplesmente masoquista da minha parte adorava espreitar por detrás da cortina que nos mostra o Irão em tons foscos. Estende-se a lista, ficam os meus pés. Um mapa é um campo de sonhos, e a cada colheita novas raízes caem no chão para originar novas searas. Uma pescadinha de rabo da boca sai ao prato de cada vez que se cumpre uma tarefa de viajante: já se está a pensar na outra. Acredito que seja isto que sentem os verdadeiros viajantes que sabem de cor as companhias aéreas mais vantajosas, os spots de dormida onde há menos percevejos e cuja desenvoltura pessoal permite passear sem grande medo num mercado de armas em Cabul. Invejo-os, a todos, e apetece-me bater-lhes e louvá-los em doses muito semelhantes. O conhecimento que se traz de uma viagem reduz os dos livros a uma obsolescência ridícula, e de cada vez que converso com alguém que encheu a mochila de nada e a trouxe com valores maiores do que o NASDAQ só por ter conhecido a desconstrução da dúvida, sinto-me um berlinde. Um viajante guarda para si a vantagem do mundo, e eu só possuo o handicap do sedentarismo.

Tenho a minha dose de viagens, principalmente sozinhas, principalmente em torno do meu rectângulo que me serve de país. Guardo muito delas, mas o que não guardei, porque se tornava estéril, foi o quanto cresci com elas, o quanto descobri em mim e de forma egoísta, pouco procurei no mundo por estar demasiado concentrado em mim mesmo. No Renascimento, acreditava-se que o Homem era a medida de todas as coisas, mas o meu mundo é demasiado pequeno para engolir aquele maior onde há demasiado para ver e descobrir. No entanto, e no meio de todo o novelo de pensamentos, a galeria dos meus passos encontrados exibe em exposição quadros com o estranho efeito de cristal que falei ao início: vejo os Penedos de Góis, vejo a Fonte Fria, vejo o Cântaro Magro, a Costa Vicentina, a familiaridade da serra da Lousã, os monstros benévolos que habitam no final e aquele dia onde estive acima de tudo o que conhecia e viajei acima do que se conhece, até um ponto onde deixam de existir lugares e o destino é o local onde tudo se desaparece para ser, de facto, um todo. Mas reservo para mim esse sorriso, como quase todas as viagens que tenho a solo. Agora, numa outra sala, tenho o Castelo dos Mouros, as Portas de Montemuro, o Portinho da Arrábida, o Cabo da Roca e um pedacinho de terra que é meu património. Sei que também lhe vou juntar aquela lista do tamanho do meu fémur, mas as pernas serão nossas, não minhas. O sorriso, esse, para ti. Como sempre, aliás.

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