terça-feira, agosto 19, 2014

Ruído


Saiu da festa porque havia gente. Não era a mais, nem era a menos: era gente. Gente que respira e sorri, gente que é feliz; e gente que é feliz lembrava-o dela. Não se movia contra a felicidade dos outros, mas podia impedir, pelo menos, que esta se movesse contra si a toda a velocidade, estampido sónico na sua passagem, choque frontal com a realidade que ele queria virtual, bem longe num ecrã, longe do espaço da rua. A rua já fora sua, já fora a dela, já fora sua, não, dela e sua, nossa... Ainda era, mas na confusão, já fora também, e era agora uma outra coisa que não conseguia determinar. Sabia que tinha pedras e folhas e lixo, e tudo o mais que as ruas têm... Agora, por causa do barulho até ele era na rua, embora sem estar.

Estava algures longe dali. Por isso o barulho o incomodava tanto. Queria crer que no silêncio, ao menos, dava por si num qualquer outro local onde ela não aparecesse. Deixa-se alguém, mas é só na vida e na morte: nunca na ressurreição. Ressuscita por aí, nos nossos tempos mortos, e vem bem a tempo de nos matar em horas adiantadas, atrasando-nos o caminho e o tempo. Antes, quando a via, pensava numa pena; agora, era uma espada, que já nem fazia parte da sua luta. Imaginá-la com outro era ter vertigens debaixo de terra, ou ver-se em transe numa festa onde o barulho assalta os sentidos e furta os momentos, deixando-nos nus perante a vergonha da solidão. Ali, despido, com as colunas a estardalhar o que resta do espaço de sanidade onde ainda habitava, vi-te, na múltiplas valências do meu choro, onde encontrei outras lágrimas que desconhecia. Sem qualquer motivo, o barulho eras tu, em gritos por vezes, em gemidos noutras, e a confusão de tudo o que vivi em ti, e vivo ainda fora do que éramos. No barulho, eras surda ao que lamentava, e nem as minhas lágrimas, como decibéis salgados de punhal em riste, conseguiram retratar a fotografia que me tiraste naquela noite em que o teu peito foi a minha tela de lágrimas, quando me deste corda ao cabelo como quem acelera um relógio, e deixaste que te tocasse e beijasse porque nos beijos os abismos são de mergulho e não de queda; e eu, que sou ele, viveu aí momentos que nem o barulho podia roubar.

Mas antes que pudesse, saiu da festa. Porque havia gente, e não havia ela. Muitas elas havia, algumas que queriam ser ela no olhar, mas não as via. Estavam ali. Ele não as queria. Enquanto caminhava pela rua, não sentiu a mínima vontade de voltar, ou sequer de estar com outra ela.  Apenas de se sentar, reorientar a bússola e não se perder mais uma vez. Era impossível, mas sempre sem que fosse impassível ao desejo que rasteja e envolve. Ela é um abraço que fica e prende. Ele recebe, sem nunca cobrar, mas também sem pedir, ainda que no entanto não a negue. Sentado, longe do barulho, abraçado por quem não está, é pela primeira vez que se equilibra e não escuta nada, a não ser ele mesmo a traçar os seus próprios pensamento.

Finalmente sou eu, e ele. Talvez, por fim, queira deixar de ser Ela. Hoje sim.

Amanhã é sempre um não em potência. 

Sem comentários: