O céu era o seu dono, mas o cardume de mar alugava-o em dias de tempestade: o farol, no topo da falésia, embalava o sono dos aldeões quando estavam acordados, e só os despertava no sono, quando se corre onde se quer porque se está seguro. Segundo se lê num livro quase carcomido na gaveta da casa paroquial, os Celtiberos mantinham uma fogueira naquele preciso local, quando se tornava obrigatório estender a mão a quem guardavam dentro dentro de si, mesmo que os braços fossem pequenos. A luz ajudava os barcos a contornar o perigoso promontório, e desde então que a falésia tomava para si os medos das pessoas, apenas para dissipá-los. O rei D. Sancho I ali mandara erguer uma pequenina torre, um ensaio do farol, e como os séculos nunca levam consigo os temores, deixando-os apenas mais reforçados para o tempo que se segue, cada pessoa que vivia na aldeia sentia o súbito apelo de ver a figura entrecortada de um pilar luminoso, quase em contacto com a esfera que servia de tecto às suas cabeças, como uma antena que reúne os desejos íntimos e os põe em contacto com o que de mais externo existe. O farol era uma necessidade, e de riste em riste, o século XIX cravou aquele empilhamento de tijolos ordenado que resistia a praticamente tudo, exceptuando uma tempestade em 1949, quando as lâmpadas estilhaçaram, vítimas da cirurgia brincalhona de um relâmpago. No entanto, a estrutura manteve-se com a seriedade devida aos garantes da estabilidade mental de toda uma aldeia, e se todos tremem, nunca o farol pode sequer abanar. Não abanou, não caiu e apenas se despenteou.
Tiago olhava-o todos os dias, antes de dar o mundo aos seus pés. O seu olhar, numa tentativa de fazer do mundo um esboço de casa, tentavam trazer a Tiago algum conforto que aquele assertivo pilar com alma parecia encerrar no seu silêncio. Há muito que na aldeia se perdera a mística dos tempos antigos, mas em Tiago, reverberava ainda um lampejo do que não se descreve porque não se sabe, mas que se sente, pois nunca se esquece. Já só aqueles que tratam o tempo como um expoente elevado ao cubo erguiam, pelo menos, um reflexo gesto de saudação a quem lhes protegera os sonhos de criança. Tiago imitava-os, já adulto, mas tudo tinha um sentido: afinal, ele guardava em si ainda o que sonhara em criança.
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