Sou especialista em proclamar votos que nunca cumprirei. É isso que me torna num dos mais paradoxais críticos do político português. Quem me segue deve lembrar-se, ou então nem isso que não foi nada de assim tão importante, que há uns meses prometi a mim próprio, e aos próprios que a mim me lêem, que escreveria um livro no prazo de dois anos. Depois de algum tempo a marinar todo aquele caldinho de troviscal interior que gera os dramas que nos predispõem a carpir perante um vasto auditório de egocentrismo, gostava de anunciar que o processo começou e que por ora, a promessa será cumprida. A história está urdida, começa o processo de escrita. Gostava assim de partilhar convosco um pequeno excerto do que já está produzido. Mesmo que não comentem, mesmo que as vossas palavras não me cheguem, saber-vos aí foi uma das cordas que me levou a tratar a escrita como um amigo pessoal, um motivo para viver e uma maneira de me aperfeiçoar, desse por onde desse. Todos os dias em que escrevo são de desilusão pela imperfeição das imagens, o aquém das frases; mas são também um momento onde comungo do vosso apoio, do vosso gosto, do vosso entusiasmo. Considerem isto uma tentativa ténue de agradecer.
Lembrou-se de
uma história que o pai lhe contara havia anos, era ele uma criança de olhos
abertos, com uma lista de perguntas do tamanho do fémur de um mamute na ponta
da língua. Não lhe era difícil recordá-la, pois fora um evento único este, não
porque o pai fosse avesso a contar histórias, pois era alguém de quem as tretas
brotavam da boca como o suor assoma à pele, mas sim porque fora uma das poucas
que lhe contara, e afinal é difícil trocar palavras com o filho quando de
repente se some e este, com oito anos e agora de olhos bem fechados, com forte
possibilidade de aguaceiros, lança ciclones de dúvidas a uma mãe presa para sempre numa frente fria. De
qualquer forma, e onde ia, ia na história, era sobre Mitologia Grega, algo que
Paulo aprendeu a adorar, e depois desaprendeu de todo: a mitologia organiza a
vida numa estrutura bela e clara e linear, e Paulo chegara aos 30 anos com uma
certeza assinada por baixo a sangue de que a caminhada respiratória do ponto A
do paro ao ponto B do cadáver era tudo menos isso. O Pai contou-lhe que Cronos,
deus do Tempo, era um filho da mãe paranóico, mesmo sendo o mais poderoso dos
Titãs, cheio de força e poder. Mas Urano e Gaia, deuses do Céu e da Terra,
revelaram-lhe que estava destinado a ser substituído pelos seus filhos. Cronos
decidiu então enveredar pelo negócio do homicídio canibalista. De cada vez que
sua mulher Rhea dava à luz um filho, Cronos devorava-o sem se deter: o tipo de
divindade clássica a quem o clássico Hannibal Lecter dedicaria um altar feito
de dedos. Todavia, Rhea fartou-se, e ao sexto filho, sabendo do apetite e
loucura do marido, embrulhou uma pedra num cobertor e enganou-o, tendo o titã
engolido a rochosa oferenda, e daí talvez fosse forte mas pouco inteligente,
porque qual paladar confunde o sabor da carne com a rocha? Bem, mas este sexto
filho seria Zeus, futuro deus dos deuses, que cresceu e passou anos a planear
uma vingança daquelas contra o pai. Na altura certa, já adulto, Zeus tomou o
assunto nas mãos, sob a forma de uma foice e abriu a barriga de Cronos como
quem escancara as portas da prisão, fazendo sair de lá Demeter, Hestia, Hera,
Poseidon e Hades, seus irmãos e futuros compinchas de Selecção Olímpica. Ficara
sempre em Paulo a imagem irreal de homens e mulheres feitos saídos de um
abdómen como árvores que rompem por necessidade tão essencial de viver que tudo
o mais é paisagem. A vingativa prole armou então uma guerra contra o pai e seus
companheiros, e acabou por matá-los ou bani-los ou prendê-los, e Cronos acabou
os seus dias acorrentado numa gruta profunda, longe da luz do mundo e de tudo o
mais. Com o tempo, percebeu que os Gregos davam voltas às rotundas da linguagem
e da narrativa para dar lições de moral e descrever o mundo, e o que aquela
historieta contava era que o Tempo, ou seja Cronos, é a força criadora e
destruidora, que sem obstáculo devorará tudo aquilo que insufla de vida, Senhor
Supremo, põe e dispõe e pega na nossas vidas num baralho para voltar a dar sem
ordem, e só divindades conseguem domá-lo. Compreendeu que os Antigos veneravam
os deuses gregos não por serem mais inteligentes, mais fortes, mais belos ou mais
artilhados, mas porque num assomo tão humano como é a retribuição, conseguiram
descerrar o antro que tudo sorve num redemoinho indiscriminado. Várias vezes,
em noites como aquela, Paulo se vira como o Zeus que chega sorrateiramente,
empunhando uma lâmina de agoiro, e que o Pai deixara de ser tempo comum por ter
medo de si, de ser substituído e ultrapassado, sufocado de morte pela sua
presença. Na sua mente, era um inimigo, uma nódoa, e por isso ele se fora
embora da sua vida. Várias noites podem ser vários, e tudo isto uma vida inteira
de uma terceira mão a misturar o caldeirão que dentro de nós remexe cordas para
cima e para baixo no estômago.
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