terça-feira, novembro 17, 2015

O que é verdade



Lá porque vos vos conto isto, não pensem que é verdade. Melhor, assumam que é, mas não assumam que eu assumo, porque senão sumo da vossa presença e nada conto. Aconteceu, mas quem teceu, não conto. Porque não sei. Quando os pés escorregam para as sapatilhas de caminhada, em volta higiénica por outro lugar que não eu, as estradas tornam-se borracha de apagar, mas nunca até agora se haviam tornado num livro que escrevo enquanto caminho. Desta vez deu-se, e o pior é que não dá para devolver. Caminhar tem destes perigos: uma vez saídos do conforto e do conhecido, entramos numa zona onde tudo pode acontecer, por muito a banalidade dos dias seja certa, e a previsibilidade da vida nos seja uma garantia de 2 anos, com a eternidade da certeza. Quando as pernas se decidem a contar uma história, o corpo segue, a cabeça simplesmente pára, porque não é com ela a narrativa.

Ora, tanta volta, e mesmo que o percurso seja circular, pelo curso desta história ainda não vos levei e agora é que vai ser. Não sei se conhecem o Vale de Embolo. É uma pequenina povoação que se sente orgulhosa pelo facto de lhe chamar povoação. Quando montes de pedras formam rectângulos, a convenção exige que lhes chamemos casas, e eu não sou a convenção, mas a minha mãe ensinou-me a, pelo menos, respeitar o mundo e as pessoas e as coisas, e a minha mãe não está aqui, por respeito à morte e ao seu poder infinito, mas se em espírito já me olhar com carinho, e reprovação, decerto ficará satisfeita, em parte, por vos apresentar de embalo Vale de Embolo como um fantástico e típico local, daqueles onde se está e se convive, e até nem apetece sair. Imaginem Vale de Embolo assim, porque, vá lá, de que serve a realidade? È um estorvo, e se vos conto isto, se o podem imaginar e não ver, mais vale que imaginem em estilo. Vale de Embolo, património da Humanidade, igreja de magnífica e onerosa ruína, ruas escavacadas em homenagem aos Antigos. Era assim, e fora neste pedaço esplendoroso da nossa História civilizacional que decidi parar para beber uns goles de água. Passeio-me sozinho, habitualmente, e a companhia da música é suficiente, por hábito, mas desidratante por esforço. Engatei-me numa laje de pedra, que fazia as vezes de banco junto à igreja. Vale de Embolo, no coração do Caramulo, fora ideia de um grupo de camponeses e pastores, fartos de viajar, e que se decidiram por armar um povoado pela simples razão de estarem cansados. Naquele momento, consegui ter empatia por aquelas simples gentes, embora me tenha perguntado se, nos horrores do Inverno beirão, pelo menos três ou quatro gerações não tenham questionado a localização.

Como turista, estava aprovadíssimo: a laje de pedra servia ao mesmo tempo de miradouro, e lá ao fundo, numa linha do horizonte desenhada por uma mão tremelicante, a neblina formava um lençol, enrugado e enxovalhado, e por isso mesmo natural como o mundo, e todas as manhãs que dele sopram. As minhas costas tomaram a parede da igreja como suas, e pude, por fim, respirar em pausas, massajar as pernas, sentir os pés levitar. Vi então, a surgir por detrás de uma casa, um braço peludo. Hirsuto e musculado, apertava a pedra como se disso dependesse o sangue que lhe corria nas veias. Durante alguns segundos, arrancou pedaços de granito, e neste ritmo caíram também pêlos do braço, e diminuíram músculos, e o braço, que antes parecera uma coluna de templo romano, era agora como que uma lança de um soldado romano, fino e frágil e branco, um pouco como me sentia naquele momento. Não se avistava vivalma na rua, eu era a única testemunha e lembrei-me, dois quilómetros antes de me ter cruzado com uma palavra que indicava uma direcção, e essa direcção, na altura cómica, enfeitara-se festivamente de horror: a cova do Lobo. Eu sou da aldeia, sim, mas de uma aldeia que cheiro bem a monóxido de carbono da cidade, e já os meus avós me contavam histórias daquelas, mas era só um braço, e que estava a ver eu, pensei, senão uma alucinação da hipoxia? Mil metros de altitude, a respiração torna-se turva, mas não o suficiente para confundir o que seja com um par de mandíbulas que espreitaram por detrás da parede, pontiagudas e assertivas, mas em simultâneo a minguar e assumindo camaleónicas a forma humana dos lábios.

Preparei-me para tudo, fosse o que fosse tudo, ali em ermos solitários. Com lentidão e calma, arrumei a água e preparava-me para assumir a minha masculinidade vertical e partir para expô-la ao resto da montanha, quando a lincatropa visão se apresentou total, ou melhor, não se apresentou de todo: por detrás da casa, surgiu uma adolescente com os seus 14 anos, nua como só a montanha se costuma apresentar, e olhando para mim como quem se assusta com as frinchas do vento à noite. Aqueles olhos negros que me fitavam, meio incomodados e meio incómodos, foram o que me convenceu de tudo. Podia explicar-me os braços e os dentes e as lupinas feições, mas aquele olhar é de quem guarda segredos de betume em cofres de betão. Mesmo na fragilidade de um corpo, as pupilas podem ser como socos, e de momento, estava a ser esmurrado sem piedade. No entanto, tomei conta de mim, num pigarreio, e olhando em redor, vi um lençol estendido numa casa vizinha. Quando ela o tomou da minha mão, respirou um pouco melhor e eu observei então nódoas negras que podiam ser de várias origens, mas eram todas nas virilhas, três ou quatro, com a forma de mãos, e percebi que por muito que te transformes e mudes, certas coisas permanecem. Ela percebeu, e mesmo que não se tentando justificar, agarrou-me com força o pulso e puxou-me a mão para o cabelo. Farrapos colados, peganhentos, vermelhos de óxido: era sangue. "Nunca mais", aliviou então a alma, e não era um motivo, mas aquela solidão de monte era outra realidade afastada, sem protecção, sem ninguém a quem prestar contas, e quando tudo aperta, sermos outros é a sobrevivência possível.

Não me quis esforçar para perceber o que para mim seria ininteligível, mas afaguei-lhe cara. e mesmo humana, encolheu-se canina e pela primeira vez nalgum tempo, sentiu algo mais do que a selva e a floresta e o distante. Vim-me embora, preso por uma trela aos seus olhos até que me afastei da aldeia e pensei no que vira, no que sentira e no que pode ser verdade ou mentira. Mas a realidade, quando estás longe do topo do nenhures, é sempre uma percepção.


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