sexta-feira, novembro 13, 2015

Presença



É tão certo como um metrónomo: ao dia 5 de cada mês, entro neste restaurante, arrastando chuva ou fazendo sombra à luz do sol, e numa floresta de odores, caris e especiarias de ementa indiana, procuro a mesma cadeira que já me conhece. Sento-me e guardo para mim uma hora de tempo que não existe no relógio. Eu sei que os minutos se apagam, mas não estou no presente, apenas algures para trás da cadeira e da porta e até da própria cidade. Volto a ti. Não me lembro de agora de nos termos conhecido, e isso significa que talvez tenhamos sabido um do outro durante toda a vida, que uma vez postos no mundo, o ar foi a primeira memória que inspirámos, e algures entre as moléculas, como espaços onde se habita sem corpo, estava eu e estavas tu. Recordo-me, e recordar é dar movimento ao coração, segundo os gregos, de me sorrires pela primeira vez, e de tudo o que desfilou desde então, de como pode ser mais perigosa uma fila de dentes que convida a mãos agarradas do que um pelotão de fuzilamento alinhado, com a nossa cabeça na mira das armas. A tua imagem consegue, na simples virtude de ser indelével, tornar-te presente passado todo este tempo, e ver à minha frente, e não dentro da minha mente, um momento há quinze anos, uma simples troca de opiniões sobre um livro de Borges entre dois estranhos num banco de jardim. Era de filme, nas cenas seguintes, a cadência certa do hábito fez-nos trocar muito mais opiniões, voltando ao banco como  se de um duche quente se tratasse, nas folhas e nas árvores, no vento e no sol. Eu e tu como constante do solo, pés que afagam a terra e avivam o inanimado, transformam lugares em confortáveis corpos onde conversas se espraiam e olhares são  feitos ganchos.

Um dia disseste "jà alguma vez experimentaste indiano e livros", e nunca combinara nada de tão exótico, aliás eu era um daqueles homens maçã, que na dúvida entre que fruta comer escolhe a mais banal e nem nunca pensar comer diospiros ou romãs ou fisális, é sempre mação ou pêra. Tu, a evidência de uma fisális mulher, puxavas-me a ser outro, e aceitei o convite porque me podias levar até às selvas indonésias. Ouvira falar de gente que hipnotiza com os olhos, mas quando abrias a boca, não tinha outra hipótese senão ser vidro entre as tuas palavras, não que estilhaçasse, mas sim transparente, pois nessa altura podias ver exactamente quem era¨. A tua pergunta amarrou-me e almoçámos nesse dia, rindo bastante, reparámos pela primeira vez que nos tínhamos tocado, e que as palavras podem arrepiar-te a epiderme mesmo que sejam mera invocação do desconhecido em sons perceptíveis; e foi nesse momento que se constatou o medo que existia nessa simples iniciativa, como se fôssemos diáfanos, talvez até imagens e hologramas, projecções de vontades e anseios, da ideia de gente que não pode existir. Mas o mundo é tão grande que se quisermos desenhar alguém no quadro negro da hipótese, é bem provável que algures um giz lhe tenha dado pó e traço. Decidi não te tocar, e tu na mesma, sem dizermos um ao outro, e a partir desse 5 de Janeiro, cada dia 5 cinco era de almoçar no restaurante. Começou com palavras, mas à sexta ou sétima refeição, o silêncio era um embalo e já nem sabia o que comia, pedia sempre o número 1 da carta, e ficava uma hora apenas a olhar-te e a existir na tua cara. Sabia o teu nome, mas eras tão mais do que letras e ordem. Nos meus dias, tornaras-te na razão pela qual, de manhã, te convences de que a verticalidade do teu corpo não é uma dor, e que os zumbidos eléctricos que te alimentam o pensamento são não um enxame, mas a luz da respiração.

Parou tudo um dia, e porque não apareceste. Não o entendi, mas se surgiras sem explicação mal te apresentando, existindo apenas num banco de jardim como se na minha vida não tivesse um único motivo para justificar pegadas e o meu tempo neste planeta e agora pudesse fazê-lo. Nunca me refiz de que prescindisses de mim como razão, e era isso que mais me matava, não me sentir em ti. Era como se eu estivesse a viver numa dimensão paralela, onde desejava com braseiro nos lábios, e me podia até desfazer só para te ter à minha frente. Sem qualquer outro rumo, não consegui impedir-me de ser como Vasco da Gama e aportar nas Índias, de nos trazer, a mim em corpo e a ti em ilusão, de me sentar à mesa e lendo sempre um livro diferente, memoriar apenas. Pergunto sempre se já chegou alguém, e há dois anos que a resposta é não, mas guardam-me sempre este luar, nunca se deve desperdiçar um cliente fixo e os indianos percebem bastante de Matemática normalmente, disseste-me tu uma vez. Hoje leio Wodehouse porque não quero que a minha cara seja fronha de almofada, e pedi desta vez o número 3, nem sei o que é, mas assim como assim, davas sabor a tudo e agora tudo me sabe ao mesmo.

O ar muda atrás de mim, ouçou-o e deve ser a jovem de nalini na testa, que acho nem ser dela, que me veio servir há pouco. Desvio-me para o lado, dando-lhe paisagem, mas um pano tapa-me a visão e deixo cair o livro, páginas que em bloco se protegem, e alguém o apanha e me recoloca no colo.  O pano desliza e desaparece, e a minha cara pressente pele e calor, algum suor, tremores e espasmos nos músculos, uma ansiedade, medo. Toco nas mãos e mais pele, uma face, inclina-se e cola-se à minha. Uma voz que me cresce no coração anuncia "São páginas, mas podes ler sem luz, aliás até é melhor", e quero perguntar-lhe tanta coisa, e no sofrimento encontro o valor da ignorância, ou pelo menos de adiar a iluminação, e se calhar é isso que ela me está a pedir, escuridão, e nem quero ver quem conheço de cor, apenas ser um prolongamento do seu mundo, e o valor seguro das terminações nervosas. Por mim, ficava ali até todos os relógios terem passado de validade, tornando-se obsoletos.

Mas estou a enganar-vos, pois quero beijá-la desde o nosso primeiro livro.


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