quinta-feira, dezembro 03, 2015
Fachada
Há muito tempo atrás éramos quatro garotos, e depois virámos quatro gandulos, cheios de si, cheios de tudo, vazios de juízo, e quando crescemos, fomos durante alguns anos quatro gajos a fingir que sabiam o que fazer, quando no mais básico que a vida tem iam inventando trezentos esquemas, a maior parte para poderem dizer que sim, que sabiam o que era ser adulto, quando na verdade ainda estavam bem na infância da maturidade. Hoje, somos só três, e ainda não consegui bem olhar para o meu carro a pensar que vai estar um lugar vazio. Nunca desconfiei que o Tiago cumprisse o que sempre prometeu. Achámos sempre que no seu estilo habitual, eram papéis para a rua, confettis de uma festa deprimente que ele montara, entrada exclusiva para os que tinham o azar de orbitarem em torno daquele carisma que o levou a chumbar três anos seguidos, e mesmo assim não ficar retido nenhum ano. Aldrabices, petas, mas acima de tudo uma capacidade quase sobrenatural de transformar um evento comum num desígnio divino e endovélico, num obstáculo que nenhum ser humano conseguiria ultrapassar e justificava assim clemência das altas autoridades. É estranho como, sentado aqui com um caixão aberto e o Tiago saído daquela que, desejava eu, fosse a mentira mais evidente, a única clemência que ele nunca alcançou foi a sua própria.
Tiago, o super homem, o devorador de noites, o criador de dias que pareciam saídos de filmes e invenções, daquelas histórias que se contam em bares e são incríveis, inacreditáveis, e os homens de mulheres de bom senso seriam acusados de estupidez caso acreditassem, mas também de idiotas se não acreditassem, porque pelas mesas, pelas paredes, sobre canecas de cerveja e copos de whisky, bastava que o nome "Tiago Ferraz" se propagasse num sopro e num bafo etílico e de súbito, o mundo virava ao contrário e sim, contar que se vira um indivíduo meio baixote, mas encorpado, a usar os cornos de um touro para dar piruetas já não parecia tão bizarro assim. "Tiago Ferraz" era a senha do enigma, a solução da pergunta da esfinge, e ao mesmo, em si mesmo, um mistério de supimpa enormidão. Se calhar, a ilusão era nossa, que o Tiago nunca quis iludir alguém ou esconder-se do mundo: de duas em duas semanas, dizia "Um dia destes, faço-o" e depois de lhe darmos palmadas nos ombros, sorríamos e pensávamos que este homem estava a ser doido. Porque uma coisa é vermos alguém macambúzio pelos cantos, a apagar-se, a entregar-se ao ar para que o sorvesse de uma vez e assim pudesse inventar-se como sombra branca. Mas nunca, ele era a alma da festa, era a corda que puxa o motor de arranque e se possível fosse, o carro vassoura que, estando os outros queimar os últimos vapores de combustível, ainda seguia em rally com a multidão. Há pessoas que são a alma da festa: na sua ânsia gulosa de tratar a vida como um banquete de rodízio, o Tiago era a alma do mundo, e como podemos acreditar quando a alma do mundo nos diz "Um dia destes, acontece, vão ver"? Não podemos, mas ali, à minha frente, à nossa frente, tornámo-nos três em vez de quatro.
Eu era um, os restantes nem interessam porque íamos a reboque. Eu conhecia-o há mais tempo, porque crescemos na mesma rua, e só quando acordei para as coisas importantes da vida, como as pessoas, é que percebi que o Tiago tinha uma vida paralela, num túnel que se afastava da superfície, algures longe de toda esta azáfama de homem de todos. Uma vez, levou-me ao cabo da Roca. O vento cuspia-nos, e nem assim ele se demovia, bem apertava o casaco e eu, encolhafado, apenas o olhava, perguntando-me o que raio via ele naquele promontório ocidental, a cauda ou o nariz da Europa, e num repente o Tiago abriu os braços, e pensei que ia mesmo voar, mas não voou. Inspirou fundo e foi como se uma epifania lhe empurrasse o sangue para os orifícios, e ele se pudesse desfazer ali em hemoglobina, mas não. Puxou a minha mão e apertou-ma. Durante uns segundos, deixou-se estar, assim imóvel, assim a sentir-me, e disse "Ela é a tua. Não a deixes, e nem te enganes", e percebi que estava a falar de ti, sabes, mesmo que nessa altura eu não soubesse o quanto queria ficar contigo, e o quanto o cabo da Roca, esse promontório do Ocidente, seria o local onde encontraria o meu absoluto Norte, segurando a tua mão com aquela que o Tiago apertava. "Sabes, continuou, eu não pertenço aqui, e daqui a cinco anos sumo, e não me vês. Não te estragarei o Cabo da Roca, não te preocupes, vou para outro lado", e lá estava ele novamente com aquela conversa em que nunca acreditámos. Na nossa cabeça,, só existia o Tiago das polkas em cima da mesa, das cantigas em plena explosão da voz, das ruas estreitas que se tornavam praças de fandangos e arenas do riso. Se o Tiago não era feliz, quem podia ser?
Mas ele sempre nos avisou, sempre. Que a vida era uma festa, mas num canto, bebendo um absinto negro, havia alguém que se sumia a cada grito, a cada passo, a cada instância em que crescíamos e nos tornávamos mais leves, abandonando tudo. O Tiago era um mártir, e a verdade é que cedo deve ter entendido isso, que por mais que lutasse, nunca conseguiria deixar o seu outro para trás, e que aquelas festas foram simplesmente a sua tentativa de nos dar a vida onde só existia, lenta e imparável, como ponteiros de um relógio que vai sumindo os seus minutos, a morte se assumiu corpórea à nossa frente. Aquele não foi o verdadeiro fim do Tiago: durante os anos seguintes, viemos a descobrir mais façanhas, mais aventuras e vários Tiagos, até: um de 15 dias na Tailândia, outro de dois meses na Islândia e até um que, fugindo de tudo, plantou um pinhal numa área de três hectares na zona de Almeida. Quando chegar a altura, montaremos lá um piquenique, com tudo a que o Tiago tivera direito. Excepto um cabo. Aquele cabo. De qualquer forma, ele já levantou voo, não sei para onde penso sempre, quando um vento mais forte me leva o guarda-chuva em dias de Inverno, que é apenas ele a ser o Tiago, e que toda a rua é uma imensa área onde me puxa para mais uma partida, mais uma brincadeira, mais uma voltinha.
Mas eu nunca acreditei nele, por isso que sei eu de ventanias?
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