sexta-feira, dezembro 18, 2015

Perguntas e respostas



Era eu criança e ia com o meu avô salpicar-me de verde. Quem nasce na aldeia, não foge ao tractor e quase todos os dias, pelo menos aqueles em que não tinha trabalho em casa, era pegado por cabelos brancos que me depositavam numa caixa aberta e ouvia "Os trabalhos são para mais tarde", e lá íamos. Lembro-me das várias camisas de fazenda que usava, longe da moda, perto do pragmatismo, como eram todas diferentes à ida e irmanadas no mesmo castanho quando regressávamos. Os meus braços, que nessa altura eram apenas arrancas, pouco faziam. O avô levava-me porque gostava da companhia, porque sempre quisera ser professor e nunca tivera alunos, e a sorte, ou os genes, se forem científicos, deram-lhe um neto com línguas de perguntador. Eu queria saber tudo, e cruzava-me por vezes com a ideia de que os meus pais não me deixavam passar tempos com os meus avós: apenas faziam uma pausa da minha incessante metralhadora com dois lábios. Ao início, o meu pai achava mais piada do que a minha mãe, mas rapidamente ambos se uniram na sua macambúzia vontade de me ver calado e em silêncio. A televisão não me calava, nem sequer a comida, e lembro-me de ter ficado de castigo por falar enquanto comia. O castigo fora o silêncio, a que me obrigaram jurando que enviariam a comida para o lixo e que os meninos de África, que tantas vezes via cobertos de moscas no jornal, chorariam muito e a culpa era minha. Aí calava-me.

O meu avô nunca me calou. Era o que ele mais adorava, ouvir-me, e até evitava tantas vezes usar a moto-serra para cortar lenha só pelo barulho. Abria todos com o machado, balançando um corpo maciço, um carvalho perene e velho, mas resistente, e escutava todas as questões. Porquê disto e daquilo, o que é aquela fruta, esta folha, a árvore que vimos no caminho, e também porque é que a avó ri tão pouco, e essa resposta tive de esperar ainda uns anos, pois não é aos oito anos que nos contam histórias de desastres de automóvel, e percebi porque é que tinha tão poucos tios na família. Mas tudo o que era o mundo, ele respondia. Pinheiros ciprestes, plátanos; pêssegos, laranjas, nêsperas; é granito, é xisto, pode ser calcita. O mundo era para ele um desfile, só de modelos, e era como se, qual estilista, ele conhecesse de cor as forras dos vestidos. Um dia, saímos mais cedo e fomos de carro, não de tractor, e o avô levou-me ao topo de um monte. "Chama-se Trono do Mundo", disse-me", e contou-me o meu pai, e até o pai do meu pai, que aqui se sentavam os reis quando visitavam a zona. Vinham a pé, nunca de cavalo, e apenas com quem mais confiavam, sentavam-se e contemplavam. Ficavam como nós, sabes, à mercê do esplendor, à mercê da beleza, com o peito e o coração arrancados pelo que vês daqui, e não é especial por ser de um só homem, mas único porque pertence a todos". Olhei e senti-me rei, não daquele pedaço de terreno, mas de qualquer outra coisa superior. Disse "É granito", e sentei-me, e aquele professor que sempre trabalhou sem salário no corpo do meu avô ficou satisfeito e puxou-lhe os cantos da boca num sorriso que valia mais do que qualquer "Excelente" a vermelho". Gostávamos os dois daquilo.

Quando o avô morreu, felizmente ainda anos suficientes depois para te ter conhecido, prometi-lhe que te levaria numa aula permanente pelos cantos do Reino. Morrendo aos poucos, mas vivendo mais do que muitos, o avô deixara-me um documento mais importante do que qualquer testamento, e também a última fotografia que conhecemos da avó, e ela está a sorrir, acho que o fez só para mim que era o neto de quem ela mais gostava, por ter sido o primeiro. Com a fotografia, a folha trazia um retrato ainda maior do futuro que ele me pedia. Chamava-se "Nós e as serras". Desatei-me a rir, e depois a chorar. Os nós apertados podíamos ser eu e ele, ou nós, lado a lado, na reinação do solo. A lista era enorme, todas as serras que ele visitara em vida, comigo ou ainda antes de eu ser um montinho no mundo, e pedia-me agora que como ele me dera tudo, eu não podia ser menos. Escolhera-te, e a escolha era tudo o que podíamos ser, uma escolha somos nós e o que desejamos e podemos ser e projectamos, e em ti eu via-me na perfeição, muito mais distintamente do que alguma vez me vira ao espelho. Perguntei-te se querias ir, e tu pensaste, nem respondeste e só na recolha de um abraço a resposta surgiu, e eu sabia qual era. O avô continuaria a viver e a ensinar-me, mas agora numa outra sala de aula, com outra professora. Éramos os dois alunos, a bem dizer. Eu fora do avô, tu contavas-me histórias sobre a tua irmã mais nova, e do quanto aprendias com ela, e das férias com o teu pai perdidas na montanha, e invejava-te. Com o desafio do avô, a inveja acabara e íamos partilhar um reino. Não era herança, era projecto, e nas tuas mãos, como várias vezes nas do avô, encontrei todas as respostas que alguma vez desejei.

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