sexta-feira, dezembro 11, 2015

Não ser eu



Era como se o mundo fosse a redoma dos dias, ali, visto daquele ponto. Lá em baixo, crespo e agressivo, o mar percussão pontilhava os rochedos no sopé do cabo, e eu acabara ali três dias de caminhada, e para quê? Para andar, só. Partir de um ponto, não ter sequer um fim e simplesmente despir-me de ideias e de consciência, abandonando o meu corpo aos solavancos do acaso. Nunca fora assim, nunca mesmo: era, sou, serei até quando os meus pés se cansarem de fincar a rocha, o homem do plano e do objectivo. Se saio de casa, é porque existe onde estar; se levanto, não é só para esticar a coluna; se me deito, estou cansado; e se falo, nunca é para outra coisa que não exprimir o inevitável. Tudo em mim tem um motivo e um esquema onde juntas se ligam a culatras, onde as vírgulas são apenas pequeninas pausas para grandíssimas respirações de movimentos longos e efectivos. Há quem viva: eu funciono, e um dia, concluí-me disfuncional.

Nem foi por qualquer choque ou súbito horror, mas num simples esgar pela janela do autocarro, que nem costumo apanhar, vi um homem aninhado no passeio, e estava a chover, e o autocarro parou, ali, trânsito diabólico antes da grande rotunda. Vi o homem primeiro sozinho, depois com público e queriam arrancá-lo, mas ele nada,. ali estático, e vestido de cinzento, parecia até fundir-se com as pedras do passeio. Um pateta, pensei para mim, e conclui que estávamos apenas a assistir a um espectáculo grátis de mais um maluco. Mas nem se mexia, nem falava, nem gritava, nem endoidecia. Estava, apenas, como se o corpo tivesse ficado e tudo o mais que anima o que é humano fosse uma lenda, um mito, uma história que se conta à noite. Não era doença, não era nada, ou era tudo: alguém imóvel num simples acto de incapacidade, de nem se consegur mexer, e aquela contorção dos membros junto ao tronco, a cabeça que quase desaparecia para dentro da camisola amarrotada. O mundo esmagara-o, assim. Num golpe de rasgo, paralisara-o, sem soluções, sem nada que não fosse entregar-se à infância do movimento, ao feto que não vivera ainda e assim parado, assim a pedir talvez a misericórdia da inconsciência, ficara no passeio.

Pensei que também ele um dia funcionara e e olhara para agendas e tabelas e fora de X a Z porque Y ficava no meio, e que talvez num destes dias, também eu, um indivíduo completo de corpo, ficasse assim sem mente e sem futuro nos olhos, e abandonando tudo o que fazia de mim funcional, simplesmente me desligasse e deixasse que o meu contorno no passeio fosse a minha herança para a paisagem dos dias. Fiz por mim o que se deve fazer: dar-me oportunidades, porque só em mim existe esse poder. Escolhi tudo invertido, e ao contrário então, deixei-me estar numa aldeia, nas linhas de um mapa, na borda de um espaço imaginado que de real tinha apenas aquilo que lhe desconhecia. Comecei junto de uma árvore, acabei numa falésia e na ironia das escolhas que se fazem às escondidas do hábito, parei numa falésia que não queria abandonar. Cobrindo o céu cinzento e arejados por ventos poentes, por recados do verde que cobria as minhas sapatilhas molhadas, projectados sobre mim como um impermeável que molha, mas protege e seca lágrimas que ainda nem tinha chorado, quis desistir de funcionar e entregar-me simplesmente à existência. Quis esquecer a minha vida, o que fiz, o que sonhei e perdi, e simplesmente desaparecer naquele pequenino espaço das coisas imensamente pequenas na sua simples grandeza. Quis ali também chorar o vento e as bátegas do mar projectadas, e quis se fosse possível, só existir naquela redoma, esquecer o passado, ignorar até que o tive e simplesmente ser, sem mais nada, sem peso, sem passado, só transmutar-me no que não tem tem memória e não recorda.

Se hoje lá voltarem, que isto foi há dez anos, encontram-me lá. Algo de parecido comigo, pelo menos. Já fui outra substância, já carreguei outra bola de negrume. Hoje, a única coisa que carrego é a leveza dos suspiros.

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